O presidente e o chanceler: relações internacionais pautadas por ideologia

O isolamento brasileiro

Como a política externa de Bolsonaro e Ernesto Araújo está deixando o Brasil cada vez mais ilhado no cenário internacional
26.02.21

No último dia de novembro, o telefone da Casa Rosada, a sede do governo da Argentina, recebeu uma chamada importante. Do outro lado da linha estava o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, ligando por iniciativa própria, para conversar com o presidente Alberto Fernández. Os dois falaram sobre o papa Francisco, conhecido de ambos (Biden e Fernández são católicos), sobre a dívida argentina que se arrasta com o FMI e, mais genericamente, sobre a situação econômica da América Latina. Para o ego de Fernández, não poderia haver agrado maior. Além de receber atenção da Casa Branca, o argentino tem se movido com extrema desenvoltura pelo continente. Hospedou o boliviano Evo Morales e parabenizou seu escolhido, Luis Arce Catacora, pela vitória nas urnas no ano passado. No Equador, o vencedor do primeiro turno da eleição, Andrés Arauz, orgulha-se de contar com o seu apoio. No dia 22 de fevereiro, Fernández participou de uma teleconferência para celebrar o aniversário de 41 anos do PT. Depois, viajou para o México para participar dos 200 anos da independência do país, ao lado do presidente Andrés Manuel López Obrador.

Com uma economia que retraiu 12% no ano passado, é improvável que a Argentina se torne um colosso a liderar o continente. O interesse na influência regional de Fernández se dá mais pela possibilidade de ele se tornar um contraponto ao cada vez mais isolado presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Salvo visitas dos presidentes do Paraguai e do Uruguai, que dependem diretamente do Brasil, outros mandatários do continente não parecem dispostos a botar os pés em Brasília. Também evitam enviar convites a Bolsonaro, que tem sido igualmente ignorado por Joe Biden.

A solidão do presidente brasileiro decorre de um tropeço estratégico. Ao assumir a presidência em 2019, Bolsonaro repetiu o erro do PT, que dividiu os governantes dos demais países em grupos ideológicos. Enquanto o ex-presidente Lula e Dilma Rousseff se aproximaram do venezuelano Hugo Chávez, da argentina Cristina Kirchner, do equatoriano Rafael Correa e do boliviano Evo Morales, Bolsonaro inverteu o sinal. A política externa brasileira então passou a evitar todos os que se aproximavam da esquerda bolivariana, os quais eram considerados uma extensão do inimigo interno do bolsonarismo, o petismo. Ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, coube a missão de idealizar e implementar a política para enfraquecer forças de esquerda na região, amalgamadas na figura do ditador Nicolás Maduro. “Sabemos que não podemos dar trégua ou oportunidade para eles. Caso contrário, eles voltam, como voltaram no importante país para o mundo ao sul da nossa querida América do Sul”, disse Bolsonaro em uma reunião com empresários na Flórida em março do ano passado. Na viagem, ele afirmou ainda que queria “transformar, de fato, o Brasil como uma referência dentro da América do Sul”. “Vindo a prosperidade, outros países se associarão a nós e deixaremos de ter o pesadelo de outras Venezuelas aparecerem em nossa América do Sul”, emendou.

ReproduçãoReproduçãoAlberto Fernández em carreata na Argentina
O governo brasileiro chegou até a impulsionar, em 2019, uma iniciativa que congregaria os aliados da região, o Prosul, em oposição à capenga Unasul, criada pelo venezuelano Hugo Chávez. Também foi um dos mais ativos integrantes do Grupo de Lima, criado para tentar dar uma solução à crise venezuelana. Contudo, um a um, os países da região tomaram um caminho distinto do sonhado por Bolsonaro. Em 2019, Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, venceram a eleição da Argentina. Foi um resultado amargo para Bolsonaro e seu filho 03, Eduardo, que se envolveram pessoalmente na disputa eleitoral do país vizinho. Após a eleição de Fernández, o Itamaraty reduziu as funções de seu representante em Buenos Aires, concentrando o relacionamento político com os argentinos na sede da chancelaria, em Brasília. No ano passado, o candidato de Evo Morales ganhou na Bolívia. Neste ano, o Equador tem dois candidatos de esquerda no segundo turno: Andrés Arauz e Yaku Pérez.

Ao manter uma política externa alicerçada na ideologia, o Brasil acabou sendo sabotado pelos vizinhos. Na reunião de cúpula do Mercosul, realizada por videoconferência em julho, a Argentina chegou a se desconectar do encontro quando a então presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez fez um discurso como convidada. Os argentinos também se distanciaram das negociações de acordos comerciais com países como Canadá, Coreia do Sul e Singapura, as quais vinham sendo aceleradas pela diplomacia brasileira.

ReproduçãoReproduçãoEncontro do Prosul, em 2019, com Sebastián Piñera
O paradoxo da estratégia argentina está na influência que Nicolás Maduro e seus asseclas ainda exercem sobre parte da base aliada de Fernández. Foi o lobby bolivariano, encabeçado pela vice Cristina Kirchner, que freou uma declaração da Casa Rosada rejeitando o resultado das eleições legislativas organizadas pelo chavismo no ano passado. Oficialmente, o governo peronista defende o retorno à democracia na Venezuela e não apoia Maduro descaradamente. Ao mesmo tempo, os argentinos tomam distância das estratégias adotadas pelo Grupo de Lima e preferem outra organização com o mesmo fim, o Grupo de Puebla. Uma ala do governo argentino já anunciou que está preparando uma retomada da Unasul, incluindo a Bolívia e talvez o Equador. Se o plano der certo, a região ficará dividida entre o Prosul, de direita, e a Unasul, de esquerda.

O frustrante é que Bolsonaro nem sequer pode contar muito com o Chile no Prosul. Fontes próximas a Sebastián Piñera garantem que o presidente chileno não se dá bem com o brasileiro. Seus funcionários viveram momentos tensos em 2019, quando o Planalto bateu o pé e rejeitou qualquer ajuda para a Amazônia financiada com dinheiro da França de Emmanuel Macron. Em agosto daquele ano, Piñera tinha negociado com países do G7 uma campanha de doação de recursos para combater incêndios na América do Sul. O estresse foi tamanho que Santiago teve de redirecionar o dinheiro enviado por Paris a outros países, como a Bolívia, enquanto dois aviões mandados pelo Chile atuavam contra incêndios no Brasil. Mais recentemente, o governo chileno se queixou da falta de coordenação entre os dois países no combate à pandemia. Em março de 2020, Bolsonaro faltou a uma reunião do Prosul – presidido pelo Chile – para tratar do assunto. A Argentina também tem se ausentado dos encontros. O ministro de Relações Exteriores, Felipe Solá, não participou da videoconferência entre chanceleres do bloco no início de dezembro.

A situação é tão desalentadora que até mesmo integrantes do governo interino de Juan Guaidó, na Venezuela, têm criticado a condução feita pelo Brasil dos assuntos relacionados ao regime de Nicolás Maduro. O sentimento de integrantes da oposição ao ditador chavista é que o governo de Bolsonaro poderia ter sido mais efetivo para asfixiar o chavismo com inteligência. O Brasil decidiu ficar isolado, ao passo que políticos de esquerda recuperam suas forças. Na ânsia de reorganizar a região segundo uma linha ideológica, o país viu não apenas os fatos seguirem na contramão, como seu papel de potência regional ser desafiado pelos demais. De Brasília, não se vê qualquer tentativa de enfrentar esse declínio.

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