RuyGoiaba

O grande museu das culpas do liberalismo

26.02.21

A história é antiga: bem mais antiga que o meme do livro infantil com o desenho de um Hitlerzinho sorridente escorregando por um arco-íris e o título Todo mundo de que eu não gosto é Hitler! — O guia emocional da criança para a discussão política. Em 1944, ainda antes de lançar A Revolução dos Bichos e 1984, o grande George Orwell já se queixava do uso indiscriminado do termo “fascismo” contra basicamente qualquer um na imprensa britânica, num tempo em que nazifascistas reais como Hitler e Mussolini seguiam em atividade.

“Não há quase nenhum conjunto de pessoas — certamente nenhum partido político ou organização de qualquer tipo — que não tenha sido denunciado como fascista nos últimos dez anos”, escreve Orwell, antes de citar a lista dos “fascistas” da época: conservadores, socialistas, comunistas, trotskistas, católicos, pacifistas, apoiadores da guerra e nacionalistas. “Vê-se que, do modo como é usada, a palavra ‘fascismo’ se tornou quase completamente sem sentido”, acrescenta.

Conhecemos bem essa história, que vimos se repetir como farsa — com as habituais doses de burrice e subdesenvolvimento — no assim chamado debate brasileiro dos últimos anos. Considerando quem está no Planalto agora, dá até saudade do tempo em que, sei lá, Aécio Neves ou Michel Temer eram os “fascistas” de plantão. Do outro lado do cercadinho ideológico, sabemos que “comunista” é qualquer um que discorde de Jair Bolsonaro por absolutamente qualquer coisa. Dois termos que deveriam ter significados bem definidos viram uma espécie de sinônimo pseudoadulto de “feio, bobo e cara de mamão”.

Este texto, porém, é sobre aquela triste figura que consegue ao mesmo tempo ser chamada de “comunista” por quem está à direita e de “fascista” por quem está à esquerda: o liberal, essa Karol Conká do mundo além-BBB. Todo mundo de que eu não gosto é liberal, que é igualzinho a neoliberal, que por sua vez é o mesmo que fascista (isso se apoiar a autonomia do BC; se também disser que o Paulo Guedes é um idiota, vira comunista). Há até um site do Museu de Culpas do Neoliberalismo — dica do meu amigo Leo Monasterio, economista — cujo catálogo inclui de “selfies de corpos malhados” à “obesidade dos pobres”, passando por BBB e Globolixo. Ainda bem que é na internet: se fosse um museu físico, nem a extensão do Louvre bastaria para abrigar e expor todas as culpas.

Não estou brincando: nas últimas semanas, vi doutos especialistas das redes sociais dizerem que “lugar de fala”, conceito hoje usado para silenciar quem não o tem, é uma “porcaria liberal” (esquerda, na boa: quem pariu esse Mateus que o embale), que pôr um general na Petrobras para controlar preços está “absolutamente dentro da lógica neoliberal” e que a depressão é “a forma de sofrimento compatível com o neoliberalismo”. (No último caso, eu gostaria de conhecer dados sobre a doença em lugares como a China, para comparar — não deve ser fácil, já que o PC lá não curte muito divulgar informações nem sobre a Covid. Se não há dados sobre depressão, logo não há depressão: todos felizes.)

Quando tudo é liberalismo, ou neoliberalismo, ou fascismo — a mesma porcaria, como eu já disse —, o resultado é óbvio: nada é. Não se trata de dizer “oh, coitadinho do liberalismo” nem de ignorar seus problemas reais: só acho que seria legal o uso do termo não ser uma Falácia do Verdadeiro Escocês ao contrário, em que QUALQUER COISA pode ser “o verdadeiro escocês”. Estou ciente de que Milton Friedman me espera com um sorriso no inferno, mas enquanto isso não ocorre sugiro trocar (neo)liberal como insulto por feio, bobo e cara de mamão mesmo. Combina mais com a idade mental de quem o emite.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Certa vez eu discutia com um amigo sobre a pronúncia correta de Roraima — é Roráima ou Rorãima? — e ele encerrou o debate com um comentário do tipo “chama de Rondônia e pronto: ninguém sabe a diferença mesmo”. Bom, era uma piada, e esse meu amigo não ocupa nenhum cargo no Ministério da Saúde. Ainda assim, a pasta comandada pelo JÊNIO da logística que é Eduardo Pazuello conseguiu confundir o Amazonas com o Amapá e trocar o número de doses de vacina contra a Covid-19 que foram enviadas a cada estado. Os amazonenses esperavam 78 mil doses, mas receberam as 2 mil que cabiam aos amapaenses.

Quase escrevi aqui que, não contente com ter um Sargento Pincel na Saúde, Jair Bolsonaro ainda vai colocar um Pincel 2 no comando da Petrobras. Mas é injusto com o personagem dos Trapalhões, que deve pelo menos ter alguma noção das diferenças entre Amapá e Amazonas e entre tomada e focinho de porco.

Caio de Biasi/Especial para o MSCaio de Biasi/Especial para o MSO general Pazuello, condutor da carroça da vacinação contra a Covid no Brasil

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  1. Ainda vamos descobrir que o melhor presidente do Brasil, depois da era mlitar, foi Temer, mesmo com processo nas costas. É o tal do "o menos pior". Brasil, pais sem passado e sem futuro...

  2. Excelente!! Lembrei-me de um antropólogo explicando o que é sociabilidade com o exemplo de um grupo de canibais discutindo sobre continuarem ou não canibais por votação democrática. Evidente que a concordância ou não em comer carne humana pelo grupo dependia das manifestações da maioria. Se a maioria concordava, quem seria louco de discordar? Liberal, fascista, comunista...depende do lugar e o interesse de quem fala...isso quando se sabe o que é isso de lugar...

  3. De acordo com meus detratores, a depender da margem do rio , eu tanto.posso ser comunista, como fascista, capitalista, terrorista, jumentista, direitista, progressista, centrista em cima do muro, liberaloide,,debiloide, esquerdoide, velhota, idiota, vil, imbecil, ateia, sem ideia, esquerda festiva, pobre de direita, rica sem coração, conclusão: sou mulher sem noção!

    1. Palavras e discursos não tem mais valor algum. Talvez os índices „ números„fotos„ filmes„ objetos ainda signifiquem alguma coisa... Academia Brasileira de Letras deveria rever e resignificar os verbetes do Vocabulário Brasileiro... Como acreditar em Papagaios„ que somos...

  4. Em vez de feio, bobo e cara de mamão, pode ser burro, ignorante e desinformado mesmo? Junto com mau-caratismo, são talvez as características humanas mais democráticas que existem.

  5. Você é (e espero que sempre seja) um dos poucos como eu: não fio, não bobo e não cara de mamão. E a expressão "é o mercado"... ou o que quer que seja, que vá prá puta que pariu, neste mundo de imbecis.

  6. Excelente, como sempre. Sugiro uma solução para o problema: contratar dicionaristas para criarem um questionário de acesso às redes sociais. O cara só poderá abrir conta se acertar o significado exato das palavras. No Brasil, restariam 10 internautas no máximo.

  7. O sargento tainha sabe muito bem a diferença entre tomada e focinho de porco: a tomada não come farelo e o focinho de porco não resiste à eletricidade.

    1. Muito bem lembrado e sobretudo comparedo ELISABETE.

  8. Excelente texto, que mostra a deserto ideológico em que estamos mergulhados. É a Lógica de separar o mundo em “amigo” e “inimigo”, cabendo qualquer adjetivo para o inimigo, em que até os nazistas viraram “socialistas”, quando convém.

    1. Meu chapa... o nazismo se dizia nacionalista.. ou o nacional socialismo.. que era primo do fascismo.. cunhado do autoritarismo e sogra da democracia.. é tudo isso aî.. concorda?

    2. Nazistas eram socialistas (não comunistas). Não só o nome do partido é socialista, Hitler se definia como socialista e suas políticas eram socialistas/esquerdistas/social democratas: reforma agrária, salário mínimo, Volkswagen (carro do povo), estatização (em especial, do sistema financeiro), perseguiam judeus por causa do “judaísmo estrutural” (os judeus eram os donos de bancos e não permitiam os pobres arianos a ocupar certos lugares na sociedade..era o racismo estrutural..).

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