Reprodução/STJA sessão da Quinta Turma do STJ que anulou a quebra de sigilo de Flávio: alívio no clã

A abolição do crime

Na nova ordem de Brasília, com a impunidade de volta à cena, Flávio Bolsonaro dá um passo importante para enterrar as investigações sobre o rachid na Assembleia Legislativa do Rio. Até Wassef voltou ao palco
26.02.21

No fim do ano passado, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região anulou um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, que listou movimentações bancárias suspeitas nas contas de Frederick Wassef, advogado da família presidencialSigilosa, a decisão só viria a público no início deste mês, como uma espécie de aperitivo do que a nova pax brasiliense vem preparando para blindar os agentes do poder que temem as barras da Justiça. Nesta semana, a tese usada para trancar o inquérito de Wassef e investigar o próprio Coaf pelo simples trabalho de comunicar transações atípicas ao Ministério Público foi replicada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento que descartou as provas mais importantes da denúncia contra o senador Flávio Bolsonaro pelo rachid na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Transmitida pelo canal do STJ no YouTube, a decisão que anulou a quebra dos sigilos bancário e fiscal do filho 01 do presidente Jair Bolsonaro e de outras 94 pessoas físicas e jurídicas envolvidas no caso configurou a primeira vitória na batalha para enterrar a investigação que trouxe à luz Fabrício Queiroz, faz-tudo da família presidencial. Se forem acolhidos outros dois recursos das defesas de Flávio e de Queiroz que serão julgados na próxima semana – e isso é o que se desenha –, a corte não apenas aniquilará o escândalo que mais incomoda os Bolsonaro como abrirá uma enorme brecha para que outros investigados também escapem ilesos.

A reviravolta no caso, que já tinha levado o MP do Rio a denunciar Flávio, seu ex-assessor e outros 15 suspeitos em novembro do ano passado, contou com todos os elementos da atmosfera pró-impunidade que passou a reinar em Brasília desde que Jair Bolsonaro se aliou ao Centrão no Congresso e à ala mais política da cúpula do Judiciário. Coube ao ministro João Otávio de Noronha, por quem o presidente já declamou “amor à primeira vista”, construir dentro da Quinta Turma do STJ a tese que resultou na fragorosa vitória de Flávio, por quatro votos a um, na última terça-feira, 23, derrotando o relator Félix Fischer, que já havia rejeitado em duas ocasiões os recursos do filho 01 do presidente. Fischer chegou a trocar farpas com Noronha durante o julgamento porque o ministro tentou votar todos os recursos de uma única vez, o que poderia ter sepultado a apuração do rachid de baciada. O voto que balizou a anulação da quebra dos sigilos decretada em 2019 pelo juiz Flávio Itabaiana, do Tribunal de Justiça do Rio, fez o nome de Noronha subir na bolsa de apostas para saber quem será o indicado de Bolsonaro para a próxima vaga no Supremo Tribunal Federal, a ser aberta em julho com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello. O ministro é candidatíssimo para ocupar a cadeira do decano e desde 2019, quando era presidente do STJ, tem dado decisões favoráveis ao governo Bolsonaro.

O argumento de Noronha, que foi acolhido pelos ministros Reynaldo Soares, Ribeiro Dantas e Ilan Paciornik, é o de que a decisão do juiz do Rio que autorizou a medida cautelar contra os investigados carecia de fundamentação. “Ele (Flavio Itabaiana) afasta o sigilo de 95 pessoas, cada investigado tem uma situação, numa decisão de duas linhas”, defendeu. Como já pretendia liquidar o julgamento de uma só vez, na mesma sessão, o ministro sinalizou acolher outro pedido da defesa de Flávio que pode provocar a exclusão de mais provas, levando a investigação de volta à estaca zero. Noronha disse que os relatórios do Coaf foram produzidos de maneira irregular. Segundo ele, os dados sobre as transações de Flávio e de Queiroz excederam o padrão de notificação usado pelo órgão, detalhando, por exemplo, todo o valor movimentado pelo ex-assessor e expondo o banco, a agência e as contas. Também argumentou que um segundo relatório do Coaf, mais amplo do que o primeiro, foi “encomendado” pelo Ministério Público antes da instauração da investigação, prática que seria “condenada” pelo Supremo Tribunal Federal –  uma meia verdade, já que STF autorizou o compartilhamento de dados do Coaf com o MP no julgamento de outro recurso de Flávio em 2019, desde que respeitado o devido rito processual.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisO filho 01 do presidente e Queiroz: investigação pode voltar para o início
Para João Otávio de Noronha, o nível de detalhamento dos relatórios complementares do Coaf, produzidos antes da decisão do juiz do Rio, representou uma quebra ilegal do sigilo bancário de Flávio, tese que vem sendo defendida há quase dois anos pela defesa do senador. “Coaf não é órgão de investigação, muito menos de produção de provas. Ele tem que fazer o relatório de inteligência e mandar. Não pode ser utilizado como auxiliar do MP em termos de investigação. O conjunto dos fatos narrados convence, sim, da atuação irregular do Coaf buscando informações a pedido do MP para fortalecer a acusação. A invasão à esfera da intimidade e privacidade do paciente somente seria possível com autorização judicial”. Esse é um dos pontos que ficaram para ser julgados na próxima semana, quando os ministros voltarão a se debruçar sobre os outros dois recursos. Um deles foi ajuizado pela defesa de Flávio, que pede a anulação de todas as decisões do juiz Flávio Itabaiana, o que inclui os mandados de busca e apreensão cumpridos em dezembro de 2019, como aquele na loja de chocolates do senador, as quebras dos sigilos telefônicos, que flagraram as conversas da mulher de Queiroz com a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega, morto naquele ano, e até da ordem para prender o ex-assessor, que está em prisão domiciliar. O outro recurso foi apresentado pela defesa do próprio Queiroz e pede a anulação do compartilhamento dos relatórios do Coaf.

A vitória, ainda que parcial, animou tanto a defesa de Flávio Bolsonaro que até uma figura controversa que havia sumido de propósito da cena de Brasília reapareceu. Com meia hora de sessão, enquanto Noronha lia seu voto, Frederick Wassef surgiu no julgamento virtual ao lado da advogada Nara Nishizawa, autora de um dos recursos em nome da defesa de Flávio. O advogado havia submergido após a Operação Anjo, que prendeu Queiroz em sua chácara de veraneio em Atibaia, no interior de São Paulo, no ano passado. À época, o senador chegou a divulgar uma nota pública informando a saída de Wassef de sua defesa. Depois do julgamento, contudo, a dupla até reuniu alguns jornalistas em um hotel de Brasília para comentar o resultado no STJ. Wassef, feliz por poder voltar a aparecer diante de câmeras e jornalistas, afirmou nunca ter deixado a defesa de Flávio e que ele era o mentor de toda a estratégia jurídica da defesa. Já o filho 01 de Bolsonaro comemorou a decisão e afirmou que “não se considera mais denunciado”.

Na prática, a julgar pelo resultado preliminar do julgamento na Quinta Turma do STJ, todas as provas obtidas a partir da decisão do juiz Flávio Itabaiana que determinou as quebras de sigilo bancário e fiscal ficariam invalidadas. O problema é que elas formam um dos mais sólidos pilares da denúncia contra o senador pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Foi a partir da análise de transações dos investigados que o Ministério Público confirmou, por exemplo, o valor de 2 milhões de reais em repasses feitos por assessores de Flávio Bolsonaro diretamente para contas em nome de Fabrício Queiroz. O cruzamento desses dados também permitiu que os investigadores desvendassem a cifra de 6,1 milhões de reais desviados pela suposta organização criminosa liderada pelo filho 01 de Bolsonaro, além da correspondência entre a compra de imóveis pelo senador e depósitos em espécie em suas contas. Outro dado que não embasa a denúncia, mas rendeu até mesmo pedidos de CPI no Congresso quando revelado por Crusoé, é a existência de cheques extras de Queiroz e de sua mulher para a conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro – o valor de 24 mil reais já aparecia no primeiro relatório do Coaf, mas a quebra de sigilo revelou que foram repassados, ao todo, 89 mil reais. Se na próxima semana os ministros decidirem anular o primeiro relatório do Coaf sobre Queiroz, toda a investigação corre o risco de ser extinta. A decisão abriria ainda um precedente para que todos os outros 20 gabinetes de deputados e ex-deputados estaduais listados no mesmo relatório também tentem anular as investigações de que são alvos. O efeito pode ir ainda mais além: a tese dos “relatórios ilegais” provavelmente será usada por advogados em todo o país para aniquilar os processos que contenham informações do Coaf.

Especialistas em combate a crimes do colarinho branco ouvidos por Crusoé afirmam que as diligências anuladas pelo STJ podem ser refeitas, mas não evitariam um grave prejuízo às investigações. Entre os riscos, está o de prescrição da pena, já que a contagem só é interrompida após o recebimento da denúncia pela Justiça. Até que a investigação seja feita de novo, e a denúncia seja reescrita e aceita, o cronômetro seguiria funcionando em benefício dos envolvidos. O outro perigo é o de a decisão do STJ enterrar provas obtidas a partir de buscas e apreensões, como as mensagens de celular entre assessores e homens de confiança de Flávio Bolsonaro, em razão do fato de elas terem sido obtidas após a quebra de sigilo bancário. O promotor Marcelo Mendroni, que coordena o grupo de repressão aos delitos econômicos do MP de São Paulo, afirma que a anulação da decisão de quebra de sigilo bancário não representaria, necessariamente, o descarte das provas. Bastaria a corte “suprir” as falhas identificadas na decisão do juiz Flávio Itabaiana caso entendesse que o pedido da quebra de sigilo estava bem fundamentado – uma hipótese que nem sequer foi aventada pelos ministros. “Estou vendo isso no meu trabalho, a dificuldade de processar e punir. Se não é o juiz da primeira instância, é o Tribunal de Justiça. Se não é o STJ, é o STF. Em algum momento o processo vai parar ou vai ser anulado. E esses grandes corruptos ou lavadores de dinheiro não são punidos”, queixa-se o promotor.

DivulgaçãoDivulgaçãoNa nova onda de Brasília, até Wassef reapareceu
Nos últimos dias, o STJ desempenhou mais um papel simbólico na trama para asfixiar as investigações envolvendo poderosos. Além da anulação de provas legais que incriminam o filho do presidente da República na Quinta Turma, o presidente da corte, Humberto Martins, que tem seu filho denunciado pela Lava Jato do Rio por explorar prestígio no tribunal, abriu um inquérito de ofício para investigar integrantes da força-tarefa de Curitiba com base nas mensagens roubadas dos telefones de procuradores do Paraná. Segundo o ministro, os procuradores são suspeitos de terem investigado de forma clandestina magistrados da corte, atribuição que legalmente é da Procuradoria-Geral da República. O inquérito foi aberto por Martins nos mesmos moldes do “inquérito do fim do mundo”, instaurado no STF por Dias Toffoli em 2019 e entregue ao ministro Alexandre de Moraes, que chegou a censurar a Crusoé. Em outra frente, Martins avocou para o STJ uma investigação sobre suposto tráfico de influência e exploração de prestígio na Lava Jato do Rio, que tem entre os investigados um procurador que denunciou e bloqueou os bens do filho do ministro.

No Brasil, até juristas mais garantistas sabem que provas ilícitas, como as mensagens roubadas, podem eventualmente ser usadas pelo Judiciário para absolver acusados de condenações injustas. O contrário, porém, não é usual: alguém ser investigado ou punido a partir de provas obtidas sem amparo legal. Mesmo assim, a regra foi invertida por Humberto Martins quando se tratou de pôr na berlinda os procuradores. No STF, essas mesmas mensagens estão sendo usadas em processos para anular condenações como a do ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá, confirmada em três instâncias, e de outros investigados na operação. A nova pax brasiliense, que beneficia com a impunidade governo e oposição, se constrói a partir de valiosos trunfos que o presidente Jair Bolsonaro tem em suas mãos para estreitar sua relação com o Judiciário: as indicações às cortes superiores. Nomeado ao STF recentemente, com apoio do senador Ciro Nogueira, do Progressistas – réu no processo do “quadrilhão” e aliado de Bolsonaro –, Kássio Marques chegou alinhadíssimo à ala anti-Lava Jato da corte. Recentemente, ele acolheu um pedido de Lula para excluir a delação de Antonio Palocci de um processo sobre supostas propinas da Odebrecht e votou a favor do acesso da defesa do ex-presidente às mensagens roubadas. Sucessor de Noronha na presidência do STJ, Humberto Martins também almeja a cadeira de Marco Aurélio no Supremo e tem a seu favor o fato de ser evangélico, critério que Bolsonaro pretende levar em conta na escolha. Martins abriu ainda uma investigação sobre o juiz Flávio Itabaiana, algoz da família Bolsonaro, porque o magistrado declarou ter ficado frustrado com uma decisão do TJ do Rio que concedeu foro privilegiado a Flávio na apuração do rachid na Alerj.

Presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, o procurador de Justiça Roberto Livianu critica o possível conflito de interesses nas articulações ora em curso em Brasília. Diz ele: “Isso é bastante preocupante, porque esta agitação (em torno da vaga no STF) pode se traduzir em movimentos nem sempre ideais do ponto de vista do interesse público. O ministro Noronha acaba de emitir essa decisão que beneficia o filho do presidente da República, correto? É plausível que ele se coloque na condição de beneficiário do presidente da República, que pode vir a nomeá-lo como ministro do STF? É uma situação delicada”. Livianu lembra ainda de manobras no Congresso que têm ajudado na operação de desmonte do combate à corrupção, como a instauração de uma comissão para afrouxar a lei de lavagem de dinheiro e de outra destinada a reescrever trechos a lei de improbidade administrativa, sempre em favor dos políticos. “Essa conjuntura toda é absolutamente terrível. Não estamos só falando de dificuldades no combate à corrupção. Estamos falando em uma conjuntura que conspira gravemente para a impunidade”, afirma. Articulador e beneficiário da tal “conjuntura”, nesta semana o presidente Jair Bolsonaro preferiu novamente fugir quando foi indagado por um jornalista sobre o resultado do julgamento que favoreceu seu filho. “Acabou a entrevista”, respondeu, já batendo em retirada. Para ele e para o filho, o melhor a fazer agora é não falar mesmo. Abrir a boca poderia colocar em risco um plano que, até aqui, vem dando muito certo.

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