Inimigos íntimos
A República brasileira já foi palco de conflitos figadais entre presidentes e seus vices, o que contribuiu, ao longo da história, para conferir um certo grau de entropia à relação. Não faltam casos de conspiração, traições e profundas discordâncias políticas. O primeiro vice-presidente republicano, Floriano Peixoto, a quem era atribuída a alcunha de “esfinge”, foi de aliado na Proclamação a traidor dois anos depois, ao conspirar abertamente contra Deodoro da Fonseca e preparar o contragolpe de novembro de 1891. Eleito em 1950, Café Filho jamais teria sido vice de Getúlio Vargas se não fosse o estranho processo pelo qual o titular poderia vir de uma chapa e o vice, de outra. Os dois não se toleravam e Getúlio lembrava com nostalgia dos tempos em que governou sem vice — entre 1937 e 1945, depois do golpe de estado.
Já Aureliano Chaves, vice-presidente do último governo da ditadura militar, rompeu com João Figueiredo de olho na indicação de seu partido, o PDS, para ser o candidato dissidente à Presidência na eleição indireta que se avizinhava — Aureliano admitiria, anos mais tarde, que quando a relação se deteriorou teve vontade de “meter a mão” em Figueiredo. Mais recentemente, Michel Temer, depois de escrever uma carta na qual reclamava da falta de prestígio e se intitulava “vice decorativo”, também trocou de lado e assumiu a articulação pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Jair Bolsonaro, se tivesse de escolher hoje, faria como Getúlio no Estado Novo: governaria sem vice. Como Hamilton Mourão não pode ser demitido, e não há um golpe de estado em marcha, resta ao presidente tentar boicotá-lo de todas as formas. Em 2020, o presidente só esteve a sós com Mourão em seis ocasiões. Este ano, não há registro de encontro entre os dois. Bolsonaro desconfia de seu vice desde meados de 2019, ou seja, desde o primeiro ano de mandato, algo inédito na redemocratização. Embora Itamar Franco e Temer tenham entrado em rota de colisão com Fernando Collor e Dilma na reta final de seus governos, o clima na largada era de simpatia, quase amor.
O general, embora não fosse o predileto, tinha um handicap — e foi aí que ele superou a jurista Janaina Paschoal e o ex-senador Magno Malta, as alternativas preferenciais de Bolsonaro. Sua presença na chapa foi encarada, inicialmente, como um seguro contra o impeachment. Notório por enxergar conspirações e inimigos por todos os lados, Bolsonaro já se candidatou temendo ser apeado do cargo por um processo de afastamento.
No total, oito vice-presidentes assumiram o país, dois deles depois do restabelecimento da democracia. E isso atormentava o então candidato do PSL. Àquela altura, no entanto, o militar natural de Porto Alegre, conhecido por seus arroubos inconsequentes — num deles, considerou legítima a possibilidade de um autogolpe — não representava uma ameaça para Bolsonaro. “O establishment nunca vai aceitar Mourão como presidente”, disse ele durante uma conversa na casa do empresário Paulo Marinho, no Rio de Janeiro, que funcionou como uma espécie de comitê informal da campanha.
Em 13 de novembro de 2019, durante uma reunião com parlamentares do PSL no Planalto, Bolsonaro expôs pela primeira vez sua insatisfação. Dirigindo-se a Luiz Philippe de Orleans e Bragança, desabafou: “Você deveria ter sido meu vice, e não esse Mourão aí. Eu casei, casei errado. E agora não tem mais como voltar atrás”. Na primeira semana daquele mês, no entanto, o presidente já havia feito um movimento mais calculado. Conforme apurou Crusoé, ele chegou a consultar informalmente o então advogado-geral da União, André Mendonça, durante um encontro no Planalto, sobre a possibilidade de ser tomada alguma medida contra Mourão. Diante da resposta negativa, Bolsonaro resignou-se. Ali, no entanto, tomaria uma decisão irremediável: procuraria um novo vice para 2022.
A história ensina que o relacionamento em permanente sobressalto entre o presidente e o vice nem sempre resulta em boa coisa. Depois de tramar o contragolpe contra Deodoro, por exemplo, Floriano manietou o Congresso, decretou estado de sítio e censurou a imprensa. Ao romper com Getúlio em 1954, Café Filho não teve sossego, por ter seu nome relacionado ao que se considerava uma conspiração contra o titular do cargo. Após sofrer um ataque cardíaco, o presidente licenciou-se e repassou o cargo ao então presidente da Câmara, Carlos Luz, em novembro do ano seguinte — logo depois, houve uma sequência de dois estados de sítio. Na contramão, a solução Temer foi necessária num momento em que o país estava prestes a se inviabilizar política e economicamente.
Hoje, pode-se dizer que a relação do vice com o presidente experimenta o seu momento mais crítico. Para além das desconfianças sobre o comportamento do general, Bolsonaro passou a considerá-lo um inimigo. Recentemente, comparou Mourão ao conceito popular atribuído à “sogra”, alguém que ele precisaria aturar porque não haveria outro jeito. No gabinete presidencial, seus auxiliares costumam se referir ao vice como Walter Casagrande, uma referência ao ex-jogador de futebol conhecido por fazer comentários polêmicos sobre temas dos mais diversos.
O presidente ainda não engoliu o episódio do fim de janeiro envolvendo um assessor de Mourão, revelado pelo repórter Diego Amorim, do Antagonista. Ricardo Roesch Morato Filho trocou mensagens com o chefe de gabinete de um deputado na qual eles tratavam da hipótese de o vice assumir no lugar de Bolsonaro. “Eu tenho conversado com os assessores de deputados mais próximos é bom sempre estarmos preparados. (…) Sabe que Mourão dividiu a ala militar. Antes, Heleno dominava agora estão divididos — capitão está errando muito na pandemia. General Mourão é mais preparado e político. Você sabe disso”, escreveu Morato.
Por decisão de Bolsonaro, Mourão não participa mais das principais reuniões de governo — ele fez questão de não convocá-lo para o encontro mais recente com o seu primeiro escalão. O general também não faz mais questão de comparecer às solenidades públicas no Palácio do Planalto. “Tinha outras coisas para fazer”, justificou Mourão ao ser chamado para uma cerimônia há duas semanas.
Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do escritor Sérgio Porto, dizia que o vice-presidente da República é um político que acorda mais cedo para ter mais tempo de não fazer nada. Mourão sempre quis contrariar essa lógica, Bolsonaro é que nunca permitiu. E, assim, ambos seguem como inimigos íntimos. Até que uma nova eleição — ou um impeachment — os separe.
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