MarioSabino

Cuidado com o lobo

19.02.21

O procurador Helio Telho resumiu à perfeição, no Twitter, o que ocorreu no Supremo Tribunal Federal no julgamento da prisão do deputado federal Daniel Silveira, que ofendeu os ministros em vídeo publicado no YouTube e teve a prisão decretada por Alexandre Moraes avalizada pela unanimidade do plenário:

“Como disse um colega:

‘Finalmente o STF resolveu evoluir a jurisprudência para combater o crime…

Vejam os pontos positivos da decisão unânime de hoje:

  1. Audiência de custódia não precisar ocorrer em 24h;
  2. Pode ser por videoconferência;
  3. Na videoconferência, o preso fica na delegacia e não no Fórum;
  4. Prisão de ofício pode, sem pedido do MP;
  5. Risco de pegar Covid no estabelecimento prisional não é mais motivo para soltura;
  6. Mandado agora pode ser cumprido à noite, basta que o crime seja permanente;
  7. Se o traficante postar foto ou vídeo em rede social com armas e drogas, a polícia pode ir a qualquer momento fazer a  prisão em flagrante.’”
Daniel Silveira é um desclassificado, o vídeo que lhe causou a prisão é asqueroso e ele merece ser cassado pelos seus pares. Nada disso está em discussão, não perderei o meu tempo com ele. O que deveria estar em discussão é o fato de que o Supremo Tribunal Federal, primeiro pela ação de Alexandre de Moraes, em seguida com a anuência dos demais ministros, rasgou mais uma vez a Constituição, ao prender um deputado por emitir opiniões, por piores que elas sejam, ferindo a sua imunidade. Além disso, inventou o mandado de prisão em flagrante, como se flagrante delito pudesse ser objeto de decisão de um ministro do STF, independentemente do momento do cometimento do crime. E, como descreveu ironicamente o procurador Helio Telho, o tribunal ainda perpetrou atos que serviram, em outros casos, para que ministros soltassem criminosos e também o verbo contra o Ministério Público e magistrados de primeira instância.

A expressão “jurisprudência de ocasião” já não é suficientemente forte para definir o que ocorreu. Eu me pergunto como um professor de Direito ainda terá coragem de ensinar aos seus alunos que o Brasil vive sob o império da Constituição Federal. Já era difícil para mim, simples jornalista, dizer isso aos meus filhos, sem me envergonhar da mentira. Resolvi deixar de mentir. Até ontem eu mantinha um exemplar da Constituição sobre a minha mesa de trabalho. Devolvi-o à estante e o troquei por um lindo tomo das fábulas de Jean de La Fontaine, com ilustrações de Gustave Doré. Na dedicatória, está escrito: “Ao Marinho, com beijos dos titios Nice e João Jorge, 25-12-69.”

O meu tio João, irmão do meu pai, morreria seis meses depois, fulminado por um ataque cardíaco aos 37 anos. Minha tia Eunice se afastou da família depois que cunhadas quiseram avançar sobre a prataria e as joias dela. O tio João era o nosso tio rico e bondoso. Deu-me muitos presentes (inclusive umas açõezinhas da Petrobras, quando nasci), mas o único que guardei foi o tomo de La Fontaine. Mais de meio século depois daquele Natal de 1969, eu o agradeço publicamente por ter me presenteado com o melhor retrato geral dos homens e, em particular, deste nosso Brasil. Nada expressa melhor os tribunais superiores nacionais, em especial o STF, do que O Lobo e o Cordeiro, uma das fábulas mais famosas do moralista francês. Vou reproduzi-la na bela tradução do Barão de Paranapiacaba, que consta do tomo que ganhei do Tio João e da Tia Eunice. Ei-la:

Na límpida corrente de um ribeiro

Mata a sede um cordeiro.

Chega um lobo em jejum que a fome atiça,

A farejar a carniça.

“Ousas turvar-me as águas, malcriado?”

 (Uiva o lobo irritado).

              Cordeiro

“Rogo, senhor, a Vossa  Majestade,

 E com toda a humildade,

Que não se zangue com seu pobre servo;

Pois, respeitoso, observo

Que embaixo e no declive estou bebendo,

E a água vem descendo”,

“Turvas (retruca o bárbaro animal):

Demais, falaste mal.

Há seis meses, de mim”.

             Cordeiro

“Não é verdade;

Conto só três de idade;

Não tinha inda nascido”,

              Lobo

 “Pois então

 Falou um teu irmão”,

             Cordeiro

“Não o tenho”.

               Lobo

 “Foi um dos teus parentes,

 Que me tem entre dentes;

 E eu vingo-me de vós — cães e pastores,

Que sois tão faladores”.

Disse, e sobre o cordeiro se despenha

E o conduz para a brenha,

Onde o come do mato no recesso,

Sem forma de processo.

Qual a razão do mais forte predomina

Esta fábula ensina.”

Há cordeiros balindo de felicidade com a prisão da ovelha desclassificada, sem perceber que o lobo também poderá conduzi-los para a brenha e devorá-los no recesso, sem forma de processo.

Obrigado, Tio João (e também perdão, Tia Eunice, pela cupidez das cunhadas minhas tias).                                       

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