Afanaram a razão
Desde que o presidente Jair Bolsonaro selou um pacto de sobrevivência com o Centrão e se rendeu de vez ao establishment político, seus gestos, atos e discursos tiveram que se amoldar à nova persona. Os gritos de “acabou, porra”, direcionados ao Supremo Tribunal Federal após uma operação policial contra aliados, em maio do ano passado, viraram palavras ao vento. Os radicais bolsonaristas, que marcharam contra o Supremo Tribunal Federal com tochas nas mãos, recolheram-se. Após nove meses de uma conveniente paz em Brasília, o clima de conciliação geral foi ameaçado por berros guturais, quase primitivos, de um parlamentar aloprado. Em um vídeo de 19 minutos publicado no YouTube na terça-feira, 16, o deputado federal Daniel Silveira, do PSL do Rio de Janeiro, lançou acusações, xingamentos e ameaças contra ministros do STF. Defendeu a destituição de todos os integrantes da corte, chamou o ministro Edson Fachin de “nata da bosta”, usou a alcunha “Xandão do PCC” para se referir a Alexandre de Moraes e acusou Gilmar Mendes de vender sentenças. Era só o começo.
O parlamentar conseguiu o que queria. A barulheira certamente lhe renderá pontos junto ao seu eleitorado: com ofensas incompatíveis até com o mais elástico conceito de decoro parlamentar, despertou os instintos de um ministro que, não raro, se investe de poderes absolutos para ajustar a interpretação legal aos seus próprios desejos. Na terça-feira, 16, Alexandre de Moraes mandou prender Daniel Silveira com base na tese de que o deputado, ao divulgar o vídeo e mantê-lo no ar, cometeu em flagrante um crime inafiançável – duas afirmações altamente questionadas por juristas. Sob o argumento da defesa do Estado Democrático de Direito, o ministro ainda usou a Lei de Segurança Nacional, uma excrescência criada pela ditadura e inexplicavelmente ainda vigente, para enquadrar o comportamento do deputado – reprovável e antidemocrático.
O mandado de prisão foi expedido no âmbito do inquérito do fim do mundo, inconstitucional na origem, já usado para obter informações sobre investigações da Lava Jato que miravam ministros e para censurar Crusoé. Um inquérito que dividiu a própria corte — mais adiante, os ministros que se opuseram acabaram por aceitá-lo, alguns deles a contragosto, para não se curvarem à grita das hordas bolsonaristas. Com todos esses elementos, o desenlace do caso Silveira era óbvio: sem saída, assim como quando chancelaram o inquérito inconstitucional, aos demais ministros restou encobrir mais um excesso de Moraes. À unanimidade, eles confirmaram a ordem de prisão. A Câmara ficou sem saber o que fazer, na dúvida entre afrontar os onze do Supremo, onde boa parte dos parlamentares responde a processos, e referendar uma medida que apanhou um dos seus.
Tudo seria muito mais fácil se os abusos do parlamentar bolsonarista fossem resolvidos de maneira institucional entre o STF e a Câmara, com a casa punindo o parlamentar, até com a cassação se preciso, ao término de um processo por quebra de decoro. Como escolheram o caminho mais difícil – e juridicamente equivocado – durante os últimos dois dias ninguém sabia o que fazer para desativar a bomba. O desafio era encontrar uma solução que agradasse a todos sem desagradar a ninguém. Tudo em nome da manutenção da “acomodação”, que foi o que uniu nos últimos tempos em Brasília o Palácio do Planalto, uma ala importante do STF, o Centrão e o establishment político em geral. Entre esses setores da nova pax brasiliense, não há mais inimigos a não ser a Lava Jato. Diante do impasse, não faltaram reuniões fora da agenda e telefonemas de teores inconfessáveis. Numa dessas ligações, Bolsonaro pediu a deputados bolsonaristas que submergissem. A normalmente estridente Bia Kicis, por exemplo, seguiu a ordem à risca e passou as últimas horas sem dar um pio sobre a prisão de Silveira.
Em outro contato telefônico, o presidente chamou o presidente da Câmara, Arthur Lira, para um encontro em seu gabinete. No final da manhã de quinta, ouviu que não havia clima para soltar o deputado. Lira falava em nome de ministros do Supremo, com quem passou os últimos dias em contato, ao mesmo tempo que tentava costurar um acordo com os advogados de Daniel Silveira e segurava o ímpeto do Centrão, que por sua vez aumentava a fatura de qualquer acerto presente ou futuro, como é de sua índole. Como as paredes em Brasília muitas vezes ouvem demais, as conversas chegaram rapidamente ao ministro Marco Aurélio Mello, que não escondeu o constrangimento. “Esse cachimbo eu não fumo. Não ocupo uma cadeira voltada às relações públicas. Sou juiz. (…) Que acordo faríamos? Um acordo para passar a mão na cabeça desse rapaz? O Supremo não pode fazer acordo”, disse.
A crise gerada pela truculência do deputado bolsonarista tem em sua gênese os mais sortidos elementos políticos e revela que, ao mesmo tempo que falta grandeza de espírito, sobra espírito de grandeza em Brasília. O que acabou incitando à primitividade de Daniel Silveira foi uma troca de farpas entre o ministro do Supremo Edson Fachin e o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas a respeito de um tuíte disparado por ele em 2018, pouco antes do julgamento de um habeas corpus apresentado ao Supremo pela defesa de Lula. Os bastidores do tuíte foram revelados agora no livro-depoimento Conversa com o Comandante, em que o general narra que o texto, encarado como uma tentativa de intimidação a ministros do STF, foi redigido em conjunto com “integrantes do Alto Comando” da caserna. Em nota, Fachin afirmou “ser intolerável e inaceitável qualquer forma de pressão injurídica sobre o Poder Judiciário”. Villas Bôas ironizou, em novo tuíte: “Três anos depois”. Foi nesse contexto que Daniel Silveira levou ao ar o vídeo ofensivo aos ministros. “O que acontece, Fachin, é que todo mundo já está cansado dessa sua cara de filho da puta. Dessa cara de vagabundo. Por várias e várias vezes já te imaginei tomando uma surra”, disse em um dos trechos.
A Constituição estabelece que deputados e senadores são invioláveis, cível e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Já é ponto pacífico, entretanto, que essa imunidade parlamentar não é ilimitada. “A verbalização da representação parlamentar não contempla ofensas pessoais, via achincalhamentos”, afirmou a ministra Rosa Weber, em um processo de crime contra a honra julgado em 2017. A fala vulgar de Daniel Silveira, portanto, poderia facilmente ser enquadrada nos crimes de ameaça, injúria ou difamação, mas é no mínimo controverso se ela realmente ensejaria a possibilidade de prisão em flagrante. “Não tem sentido a decretação de prisão em flagrante. O Supremo inventou essa moda lá atrás para prender o senador Delcídio do Amaral. Agora, fez isso de novo”, diz o professor de direito processual penal Gustavo Badaró, da Universidade de São Paulo.
O que é indiscutível é a truculência do parlamentar, conhecida desde 2018, quando ele protagonizou a destruição de uma placa em homenagem à vereadora morta Marielle Franco. Em abril do ano passado, Silveira passou a ser investigado no inquérito dos atos antidemocráticos, instaurado por decisão do mesmo Alexandre de Moraes para apurar o financiamento de manifestações em defesa do fechamento de instituições. Antes de ser eleito na onda bolsonarista de 2018, Silveira foi soldado da Polícia Militar do Rio, mas teve que deixar a corporação para entrar na política. Seus sete anos na PM foram marcados por sucessivos episódios de indisciplina e mau comportamento, à exemplo de seu padrinho político, Jair Bolsonaro, quase expulso do Exército. O episódio desta semana, claro, conferiu ao deputado uma estatura que ele nunca teve e, certamente, lhe renderá mais dividendos políticos e eleitorais. Se não for cassado e ficar inelegível até 2022, Daniel Silveira poderá lucrar com a imagem de vítima do sistema, que ainda faz sucesso em segmentos do eleitorado. E, talvez, ainda posar como um dos poucos políticos com coragem de enfrentar o Supremo.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, 17, o professor do Insper Fernando Schüler lembrou do episódio envolvendo Matthew Lyon, deputado americano que virou herói e foi reeleito mesmo quando estava preso, depois de condenado por desancar o ex-presidente dos EUA John Adams. Mas há diferenças cruciais entre os dois casos, como lembrou Schuler. À época, embora o Congresso tivesse aprovado a “lei de sedição”, que punia quem atacasse o presidente dos EUA, havia um sentido lógico na censura. Com a iminência da guerra com a França, a oposição atuava com extrema violência. Além disso, Lyon teve direito de defesa e foi submetido a um processo, com base na lei aprovada no Congresso. No Brasil, embora não haja uma “lei de sedição”, há o inquérito do fim do mundo aberto de ofício pelo STF. E os argumentos são parecidos com aqueles contemplados pela norma americana: falam em ataques à honra e em ações que provocam risco às instituições. No entanto, trata-se de uma discussão separada por dois séculos sobre limites da liberdade de expressão. Enquando nos EUA, no pós-Adams, seguiu-se o estabelecimento de uma cultura de respeito às liberdades individuais, aqui a liberdade depende do lado do freguês e da conveniência do magistrado. A razão, nesse caso, é sempre afanada.
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