MarioSabino

Perdi o ritmo

12.02.21

Laudos de exames específicos forneceram o veredicto: sofro de arritmia cardíaca. A minha arritmia manifestou-se pela primeira vez em 2012, mas foi diagnosticada como fruto de ansiedade passageira. Os episódios, então raros, começaram a se tornar frequentes com o passar do anos e, não faz tanto tempo assim, fiz os exames que me jogaram na realidade. Arritmia. Foram-me receitados, então, dois remédios, que funcionaram bem até dezembro último, quando tive um episódio violentíssimo: o meu coração chegou a 206 batimentos por minuto, no que foi identificado como arritmia ventricular causada por um flutter atrial — um upgrade do ponto de vista de risco. O descompasso elétrico que ocorria num dos átrios conseguiu romper o filtro do nó atrioventricular e chegou com plena potência a um dos ventrículos, na forma de taquicardia.

Ao sentir a aceleração, ainda tentei segurar a onda, tomando os remédios que me haviam sido prescritos. Não funcionaram. Telefonei para o meu clínico geral, que mandou uma ambulância vir me pegar em casa. O auge do episódio ocorreu no pronto-socorro. Uma vez controlada a tempestade elétrica, fui transferido para a UTI. O meu cardiologista trocou um dos remédios e acrescentou um anticoagulante, para evitar a formação de trombos que podem causar AVC. Uma prescrição banal para quem está do outro lado do cateter — e a banalidade é tudo o que se espera para quem está deste lado.

Quando se tem arritmia, e muita gente tem, você ouve do cardiologista que não precisa preocupar-se porque ela não mata, mas logo em seguida ele diz que você pode morrer disso. De qualquer forma, não é a pior das doenças. Ao ser levado para fazer cateterismo, ouvi o seguinte do cardiologista, enquanto ele apontava para uma senhora deitada no leito que rodava em direção contrária à do meu: “Essa paciente tem uma doença mais grave do que arritmia, o coração dela está se degenerando. Há doenças mais graves e menos graves do que a sua”. Compadeci-me do sofrimento da senhora e, ao mesmo tempo, confortei-me com o sofrimento alheio. Pensei que, enquanto houvesse doenças piores, isso ainda era bom para mim.

Há treze anos, o meu problema de saúde era outro. Surgiram divertículos no meu intestino grosso, tentei controlar com antibióticos, mas as diverticulites começaram a suceder-se de tal forma que o único jeito foi arrancar a parte afetada do intestino — divertículos são vesículas que aparecem na parede intestinal; quando inflamadas, podem romper-se e você tem uma septicemia. Cortaram 40 centímetros do meu intestino e vida que seguiu. Hoje, raramente penso no meu intestino. Ainda que seja curado da arritmia, contudo, o meu coração jamais deixará de assombrar os meus pensamentos.

Na escala de gravidade das doenças, talvez diverticulite esteja acima de arritmia, mas quando o órgão é o coração, fica-se mais sensível à ideia da morte. Explicável, visto que o músculo cardíaco, responsável pela circulação da seiva que alimenta e oxigena as nossas células (perdão pela metáfora clichê, mas tenho fobia da palavra exata para o tecido líquido), é o centro vital do nosso organismo. Por tal motivo, adquiriu em todas as culturas uma dimensão simbólica muito mais intensa e mais abrangente do que a de outros órgãos. Como símbolo, é centro dos sentimentos, da personalidade e do pensamento. Os bondosos têm grande coração; os malvados não têm coração. Os amorosos têm coração apaixonado e, na desilusão, o coração despedaçado; os frios têm coração de pedra inexcedível à erosão. (Na peça Rei Lear, William Shakespeare define a ingratidão como um “demônio de coração de mármore”, e quem já teve um ingrato pela frente sabe que a imagem é perfeita). Aprende-se de cor, de coração, e Blaise Pascal, o matemático, disse que “os grandes pensamentos vêm do coração”.

A única víscera deixada no interior das múmias egípcias era o coração — ele seria pesado no tribunal de Osíris. O hieróglifo para coração é um vaso, por ser o recipiente do universo (ainda voltarei ao magnífico Museu Egípcio de Turim, o segundo maior do mundo, que abriga um Livro dos Mortos completo). No Dicionário da Civilização Egípcia, essencial para quem gosta do assunto como eu, Georges Posener registra que, na cosmogonia do Antigo Egito, “o deus Ptah pensou o universo com o seu coração antes de materializá-lo pela força do verbo criador”. A imagem é de uma beleza piramidal.

O universo expande-se em diástole e é comprimido em sístole: a mitologia indiana antecipa, com metáfora cardíaca, o Big Bang. Quando se tem arritmia, no entanto, o universo se esvai em caos por meio de um buraco negro no seu peito, que suga os sentimentos, a personalidade, o pensamento e l’amor che move il sole e altre stelle, que foi como Dante Alighieri definiu DeusO verbo que recria o universo é a amiodarona (esse é o principal remédio que tomo no momento), mas a recriação é temporária, até que o verbo seja engolido outra vez pelo tumulto. Mesmo depois de um procedimento que espero exitoso, o buraco negro continuará à espreita no meu coração, em definitivo indefinível.

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