RuyGoiaba

Nos deram espelhos, e vimos um mundo doente

12.02.21

O BBB é um programa que fica muito melhor quando é editado pelas redes sociais. Juro que tentei vê-lo sem mediações mais de uma vez (a última delas foi alguns dias atrás) e a conclusão foi sempre a mesma: que coisa chata. Quem “assiste” ao reality show indiretamente, pelo Twitter — o que é impossível de evitar se você está na rede, porque o negócio é um tsunami —, já recebe só os melhores momentos, não raro com comentários e memes bem mais engraçados que aquele quadro com o Rafael Portugal (sarrafo baixo, eu sei). Num mundo justo, a Globo remuneraria não só alguns tuiteiros, mas todos esses que têm trabalhado de graça para Boninho como editores e comentaristas.

Só nas redes, por exemplo, você assiste a um vídeo dos confinados cantando a insuportável “Pais e Filhos”, da Legião Urbana (“é preciso amaaar as pessoas como se não houvesse amanhããã”) com o único comentário possível (“quando você chega ao inferno, é assim que é recebido”). Isso a Globo não mostra!

Também sei, graças aos BBBólogos das redes, que esta edição do programa já definiu queridinhos do público, como o pernambucano Gilberto, doutorando em economia e gay, não necessariamente nessa ordem (espera só o pessoal descobrir que ele repostou textos de João Amoêdo nas redes: será execrado como NEOLIBERAL). Assim como já definiu seus vilões: Lumena, Projota, Nego Di e principalmente Karol Conká têm sido os maiores alvos do ódio da torcida.

A mim, telespectador ocasional e indireto, parece que a novidade deste BBB 21 é expor para a audiência de milhões de pessoas de um reality show, em horário nobre da Globo, o que quem circula pelo meio universitário (e outros, como o artístico e o jornalístico) já sabe: como militantes por “boas causas” e integrantes de minorias podem ser autoritários, intolerantes, agressivos, sem empadinha (ops, empatia), falsos e preconceituosos eles mesmos. E nem estou contando o traço mais comum em todos eles, da esquerda à direita — a chatice extrema.

No pior episódio, um dos participantes, o ator Lucas Penteado, foi acusado de querer “se aproveitar” da agenda LGBT ao dar um beijo em Gilberto e abandonou o programa. A rapper Karol, negra como Lucas, é detestada porque incorreu em basicamente todos os comportamentos descritos nos adjetivos do parágrafo anterior; idem para Lumena, também negra, que parece uma versão piorada do “militante” de Marcelo Adnet. (Para vocês terem ideia do nível, já vi militantes psolistas chamando a psicóloga baiana de insuportável — o que equivale mais ou menos a Milton Cunha, o carnavalesco, criticando alguém por ser “gay demais”.)

É claro que já apareceu muita gente dizendo que o comportamento reprovável desses brothers e sisters “não representa a militância” — além dos conspiracionistas que acreditam que a marvada Grobo (”Globo golpista” se você for de esquerda, “Globolixo” se você for bolsonarista) escolheu a dedo essa turma para “deslegitimar” os movimentos identitários. Imagino que a emissora faça todo tipo de manobra nos bastidores do BBB, mas ela não tinha como saber da “maldade” dos vilões antes de escolhê-los. Pelo contrário: eram todos populares em suas bolhas e foram deixando de ser à medida que se revelaram.

O que o reality show está fazendo é o que sempre fez: pegar gente humana, demasiado humana e colocar sob a câmera/lente de aumento, com milhões de pessoas observando o experimento. Ficou claríssimo que, por mais que se empenhem no “outro mundo possível”, os defensores profissionais das boas causas também são demasiado humanos, com todos os problemas e defeitos da espécie — o que talvez não dê a eles a moral que gostariam de ter para enfiar o dedo na cara dos outros. No fundo, o resumo da ópera é outra música ruim da Legião, “Índios”, aquela que diz “nos deram espelhos, e vimos um mundo doente”. Como cantava Renato Russo, tentei choraaar e não conseguiiiiii.

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A GOIABICE DA SEMANA

O site The Chronicle of Higher Education conta que, depois de semanas fazendo um curso on-line de história da arte numa universidade canadense, um aluno tentou contatar o professor que ministrava as aulas, François-Marc Gagnon — e só aí descobriu que ele estava morto desde março de 2019 (o título da reportagem é “Dead Man Teaching”). Como disse um amigo meu, o caso atualiza as definições de “aula remota”, mas posso apostar que mesmo morto Gagnon estava mais vivo do que alguns professores que me deram aula, por assim dizer, de corpo presente na ECA-USP há mais de 30 anos. Fica aqui a sugestão para as universidades brasileiras investirem mais no ensino médium.

Adi Leite/FolhapressAdi Leite/FolhapressO saudoso Renato Russo (1960-1996), aquele mix de Morrissey com Jerry Adriani

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