Adriano Machado/CrusoéFoi o próprio Gilmar quem apresentou a queixa contra Zappia

Missão: anular tudo

A decisão do STF de entregar a Lula as mensagens roubadas é só o começo: o plano dos detratores da Lava Jato é enterrar a operação com a anulação de processos e a absolvição de réus
12.02.21

Gilmar Mendes aguardava havia mais de dois anos o momento oportuno para tirar da gaveta aquilo que os algozes da Lava Jato acreditam que será o golpe fatal na maior operação de combate à corrupção já feita no país. Desde dezembro de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal segura em seu gabinete o habeas corpus no qual a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pede a suspeição de Sergio Moro para processar e julgar o petista e a anulação de todos os atos do ex-juiz de Curitiba nos processos dele, o que inclui a condenação no caso do tríplex do Guarujá e as demais decisões nas ações do sítio de Atibaia e do Instituto Lula. Gilmar pediu vista do habeas corpus depois que seus colegas Edson Fachin e Cármen Lúcia votaram contra o pleito de Lula — que estava preso à época —, abrindo 2 a 0 no placar da Segunda Turma, composta por cinco magistrados. Desde então, o ministro prometeu, mais de uma vez, colocar o recurso em pauta, o que não ocorreu. Agora, o momento de virar o jogo chegou. Com a entrada de Kassio Marques na corte e o uso retórico das mensagens roubadas da força-tarefa para desqualificar a Lava Jato, Gilmar pretende retomar depois do Carnaval o julgamento do recurso que hoje não apenas simboliza uma possível vitória de Lula sobre Moro, mas também a derrota do modelo de investigação que conseguiu, ainda que por um breve período, acabar com a impunidade de corruptos e corruptores no Brasil.

A sanha para tornar os diálogos apreendidos pela Operação Spoofing em provas lícitas para anular sentenças de condenados por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa ao longo de quase sete anos de Lava Jato ficou escancarada na sessão da Segunda Turma do STF na última terça-feira, 9, nos efusivos votos de Gilmar e de Ricardo Lewandowski. Ambos foram acompanhados de forma mais discreta por Cármen Lúcia e Kassio Marques, convalidando o acesso da defesa de Lula a todo acervo de conversas obtido ilicitamente por hackers. A medida tinha sido deferida por uma liminar de Lewandowski a pedido do advogado Cristiano Zanin no dia 28 de dezembro, durante o recesso do Judiciário, e contestada pelos procuradores, após uma manobra jurídica feita para direcionar o caso ao ministro notoriamente crítico da Lava Jato, no escopo de uma reclamação que tratava do acesso a documentos da delação da Odebrecht. Esse mesmo pedido de compartilhamento do material roubado já tinha sido distribuído anteriormente a Fachin, que encaminhou o julgamento ao plenário do STF, onde votam todos os onze ministros da corte. Depois da liminar favorável de Lewandowski, Zanin, espertamente, desistiu do recurso que estava com Fachin, numa artimanha classificada como “burla do juiz natural” pelo Ministério Público Federal. O caso foi, então, para o colo de Lewandowski.

No dia 22 de janeiro, a defesa de Lula já tinha copiado a décima parte de um total de 7 terabites de arquivos apreendidos pela Spoofing que estavam armazenados em sigilo em um dos prédios da Justiça Federal de Brasília, onde os hackers estão sendo processados. Na sequência, Zanin e companhia passaram a abastecer o processo sob relatoria de Lewandowski com dezenas de páginas e petições com trechos selecionados dos diálogos da força-tarefa para impedir que o acesso ao material fosse revogado. Algumas mensagens foram completamente tiradas de contexto, como uma frase atribuída à procuradora Lívia Tinôco, na qual ela escreveu no grupo do Telegram em abril de 2018 que o “sonho de consumo” da Lava Jato era ter uma fotografia do Lula preso para ter “orgasmo múltiplo“. Na verdade, a procuradora apenas reproduziu aos colegas no aplicativo um trecho do discurso que o próprio petista fez pouco antes de se entregar à Polícia Federal em cumprimento à ordem de prisão expedida por Moro. Depois que Lewandowski tirou o sigilo do processo, na semana passada, a procuradora foi alvo de linchamento virtual nas redes sociais. Foi com base nesse material produzido pelos advogados de Lula com recortes das mensagens roubadas que Gilmar e Lewandowski foram além do que, de fato, estava em julgamento na última terça e rechearam seus votos com uma série de ilações sobre a atuação do ex-juiz e dos procuradores. Algo que, partindo de dois ministros do Supremo, são sinais claros de que o acervo obtido ilicitamente não deverá influir apenas no pedido que beneficia Lula, mas também para desfazer uma série de desdobramentos da Lava Jato.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéKassio, que chegou ao STF com a bênção do Centrão, já indicou a que veio
Embora o Supremo ainda não tenha se pronunciado sobre a validade das mensagens roubadas como prova, o que provavelmente ocorrerá no plenário da corte, Gilmar e Lewandowski não se furtaram a ler uma porção de diálogos selecionados pela defesa de Lula para colocar em xeque, por exemplo, o próprio acordo de delação premiada da Odebrecht, homologado no fim de 2016, e os sistemas Drousys e MyWebDay, usados pelo departamento de propinas da empreiteira para operacionalizar os pagamentos ilícitos feitos a mais de uma centena de políticos e agentes públicos ao longo de anos, e que têm funcionado como valiosos elementos de corroboração dos depoimentos dos delatores. Entre as suspeitas levantados pela dupla anti-Lava Jato do Supremo, estão “tratativas” informais que os procuradores teriam feito com autoridades da Suíça e agentes do FBI, a polícia federal dos Estados Unidos, e até a forma como os sistemas da contabilidade secreta da empreiteira foram transportados pelos investigadores. “Vejam o que foi arrecadado nessa Operação Spoofing. Não estou me manifestando sobre a validade desses documentos, mas não deixa de ser um indício que demonstra, justamente, a preocupação da defesa (de Lula) quanto à higidez do material colhido relativamente à Odebrecht, ao acordo de leniência e perícias. Aparentemente, foi manipulado sem o menor cuidado. Foi plugado em computador, desplugado, carregado em sacola de supermercado, não se sabe bem se do Carrefour, do Bourbon, do Pão de Açúcar ou de outra companhia qualquer”, afirmou Lewandowski.

Para quem acompanhou as quatro horas de sessão da Segunda Turma, não restam dúvidas de que o debate provocado pelos próprios ministros do Supremo não se restringe mais à tese de que Lula foi perseguido politicamente por Moro para ser impedido de disputar a eleição presidencial de 2018. A narrativa que se busca agora é a de que o ex-juiz e os procuradores “violaram o devido processo legal” em diversos episódios ao longo da operação, o que, sob a ótica da doutrina do fruto da árvore envenenada, teria contaminado toda uma cadeia de provas obtidas mediante delações, quebras de sigilo e buscas e apreensões. Ou seja, a intenção é matar a Lava Jato pela raiz – se possível, anulando processos e transformando condenados em inocentes. Tudo, enfim, que estiver ao alcance para humilhar Moro e os procuradores. Em meio aos seus conhecidos bramidos, Gilmar disse que o ex-juiz “criava suas próprias regras e fases processuais“, que a força-tarefa montou um “modelo soviético de monitoramento da defesa” e que a Lava Jato replicou no Brasil o método adotado pela Stasi, a polícia secreta que perseguiu opositores do governo comunista da Alemanha Oriental na segunda metade do século passado. Boa parte dos trechos sublinhados por Gilmar foram direcionados à ministra Cármen Lúcia, que já votou contra a suspeição de Moro há mais de dois anos. Mesmo que Cármen não altere seu voto, a vitória de Lula na Segunda Turma já é dada como certa no meio jurídico. Isso porque, além de Gilmar e Lewandowski, espera-se que Kassio Marques, o ministro indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, mantenha o alinhamento à ala anti-Lava Jato demonstrado na última terça.

A certeza da vitória levou o advogado Cristiano Zanin a declarar publicamente, no dia seguinte ao julgamento, que não irá usar o acervo roubado no processo de suspeição de Moro. Nem precisa. Para o exército de réus sedentos para fustigar a Lava Jato e anular seus inquéritos ou condenações – e também para os julgadores predispostos a destroçar a operação – a munição foi exposta em praça pública. Entre investigados e condenados, já há uma espécie de fila de interessados no desfecho da trama para, logo na sequência, pedirem também a anulação das decisões que lhes foram desfavoráveis. Desde o mês passado, está em curso uma corrida de advogados ao tribunal para obter acesso à íntegra dos diálogos roubados. O objetivo é simples: tentar encontrar, no meio das conversas dos investigadores, possíveis “desvios de finalidade” relacionados a processos dos seus clientes, o que serviria para embasar pedidos de nulidade. Advogado de réus da Lava Jato no STF, o criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, aquele que vende seus préstimos sob a alcunha de Kakay, defende que todos os atos processuais de Moro ao longo da operação sejam anulados. “É claro que todos os advogados que atuaram em casos dele (Moro) vão fazer uma verificação para ver se ele também instrumentalizou o Poder Judiciário em outros casos”, afirma. “A regra é que a nulidade tem de ser arguida. Não se anula tudo de uma vez. Vai ter que se discutir o instituto jurídico da extensão da nulidade, caso a caso.”

Alguns dos interessados em pegar carona nas mensagens para se livrar das barras da Justiça deram as caras. O ex-tesoureiro João Vaccari Neto, o marqueteiro Valdemir Garreta e o operador William Ali Chaim, todos ligados ao PT, todos réus ou condenados na Lava Jato, já pediram a Lewandowski a extensão do compartilhamento do acervo apreendido com os hackers para usar em suas defesas. Entre as suspeitas levantadas por eles, com base nos trechos juntados nos autos pelos advogados de Lula, estão supostas “ofensas ao devido processo legal” em uma fase da Lava Jato deflagrada em 2018, no acordo de delação premiada de executivos da OAS e na obtenção dos sistemas de contabilidade do departamento de propina da Odebrecht, o mesmo mencionado por Lewandowski em seu voto. Só William Chaim, que já foi assessor de José Dirceu e militante do grupo MR-8 durante o regime militar, recebeu 22 milhões de reais em espécie da Odebrecht a pedido do PT entre 2014 e 2015, segundo registros da transportadora de valores usada pela empreiteira que foram obtidos por Crusoé. As provas são corroboradas com 74 gravações telefônicas feitas pelo doleiro da Odebrecht nos dias das entregas dos pacotes.

Giuliano Gomes/Estadão Conteúdo/AEGiuliano Gomes/Estadão Conteúdo/AEDallagnol, uma das caras da Lava Jato: a nova meta é humilhar os responsáveis pela operação
Dono da maior pena individual da Lava Jato, com 15 condenações que já somam mais de 300 anos de prisão, Sergio Cabral também vê na brecha aberta pelo Supremo com o acesso das mensagens roubadas a chance de conseguir um milagre: anular a Operação Calicute, que o prendeu em 2016 e deu início à avalanche de inquéritos e denúncias da força-tarefa fluminense contra a organização criminosa chefiada por ele. “O meu ponto é a delação da Andrade Gutierrez, que serviu de base para a Calicute. As mensagens mostram uma violação da confidencialidade do acordo da Andrade Gutierrez, o que pode torná-lo nulo. Por isso nós vamos pedir o compartilhamento da íntegra dessas gravações. Todos os 30 processos contra Sergio Cabral têm como origem as provas da Calicute. Se anular a Calicute, tem que anular tudo. Essa é a nossa pretensão. Acho temerário essa questão ser pontual, valer só para o caso do Lula“, afirmou o advogado Márcio Delambert, defensor de Cabral. A mesma menção à Andrade Gutierrez nos diálogos hackeados levou a defesa de Othon Luiz Pinheiro da Silva, o ex-presidente da Eletronuclear condenado por corrupção nas obras da usina de Angra 3, a pedir a extensão do compartilhamento das mensagens ao ministro Ricardo Lewandowski. Até agora, o acesso integral não foi concedida a mais ninguém.

Como o próprio ministro Gilmar Mendes antecipou na sessão de terça-feira, as mensagens hackeadas devem provocar “muitos desdobramentos”, para além dos processos de Lula. Aguarda-se para as próximas semanas uma enxurrada de pedidos de compartilhamento do material por investigados, réus e condenados da Lava Jato. São 174 condenados só na primeira instância em Curitiba, jurisdição da força-tarefa que foi alvo do ataque hacker. A decisão sobre a validade dos diálogos como prova para anular sentenças, contudo, deve ser julgada pelo plenário do Supremo, como já tinha despachado Edson Fachin no habeas corpus impetrado por Lula anteriormente. Tanto Sergio Moro quanto os procuradores da República sustentam que as mensagens devem ser consideradas provas “ilícitas” e “imprestáveis” para qualquer processo, porque não foram periciadas e podem ter sido adulteradas quando ainda estavam em poder dos hackers. Em dezembro de 2019, a Procuradoria-Geral da República também já tinha se manifestado contra a suspeição de Moro e o uso dos diálogos obtidos mediante crime cibernético.

Juristas acreditam que a validação do uso das mensagens roubadas como prova lícita a ser usada em benefício de investigados, réus e condenados teria maioria no plenário do Supremo se a análise envolvesse um caso pontual, porque há doutrina e jurisprudência para isso. Mas diante do possível efeito dominó que eventuais anulações poderiam desencadear em todos os processos da operação, incluindo acordos de colaboração cujos réus confessos já devolveram bilhões de reais aos cofres públicos, crê-se que a corte adote um meio termo, legitimando o material como prova passível de ser usada para questionar decisões judiciais ou a imparcialidade do juiz, mas deixando a cargo dos tribunais regionais a palavra final. Lula, por exemplo, foi derrotado nas três instâncias inferiores com seu pedido de suspeição de Moro até chegar na Segunda Turma do STF. Uma anulação em massa poderia provocar uma grande revolta da sociedade e manchar a imagem do país no exterior. “A questão é que os discursos do Gilmar e do Lewandowski, que anteciparam seus juízos fora da matéria, causaram confusão e, por isso, as coisas saíram do prumo. Há uma falsa ideia de que anulação significa sentença absolutória. Não é isso. É tudo muito complexo. É preciso analisar cada ato processual para ver se houve prejuízo, alguma violação ao amplo direito de defesa e ao devido processo legal. Esse instrumento de revisão criminal já existe. Se essas provas forem validadas, serão abertos todos esses caminhos“, explica o ex-juiz Walter Maierovitch. “É preciso fazer uma análise de prova relevante caso a caso para saber em que medida a atuação do juiz e dos procuradores compromete o processo do acusado. Como Sergio Moro e o Deltan Dallagnol não atuaram só no caso do Lula, (os ministros) colocam sob suspeição todas as ações deles na Lava Jato“, observa o jurista Miguel Reale Junior. Como a narrativa já está dada – e foi devidamente comprada por parte das supremas excelências – , a Lava Jato poderá se tornar apenas uma pálida lembrança na história. Como se os esquemas bilionários de corrupção desvelados ao longo de sete anos nunca tivessem existido.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO