XinhuaReunião do Partido Comunista: atuação na ONU para evitar escrutínio em direitos humanos

O dragão na nova ordem

A troca de presidente nos Estados Unidos leva os demais países a reorientar sua relação com a China. Joe Biden, ao que tudo indica, terá dificuldades para conter a influência de Pequim ao redor do mundo
05.02.21

Nove dias após a posse do democrata Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, o governo de Jair Bolsonaro anunciou uma medida aguardada havia meses. Uma portaria do Ministério das Comunicações liberou a participação de empresas da China no leilão da telefonia 5G, prevista para este ano. Como essa posição — defendida pelas empresas brasileiras que já investiram em equipamentos da chinesa Huawei — poderia despertar a ira de Donald Trump, o governo brasileiro foi empurrando o assunto com a barriga enquanto o presidente republicano se mantinha na Casa Branca. Na divulgação da medida, no dia 29, as autoridades americanas não apenas tomaram conhecimento do sinal verde brasileiro para a Huawei como soube de uma cláusula que obriga a vencedora do leilão a construir uma rede privativa para atender ao governo – o temor de que os chineses poderiam espionar autoridades nacionais parece ter se dissipado totalmente.

O giro de posição em relação ao dragão chinês não é exclusivo do Brasil. A chegada de Biden à Casa Branca tem feito outros países reverem a maneira como lidam com Pequim. Da parte do governo americano, não se espera uma alteração radical. Não há sinais de que Biden será condescendente com as malcriações chinesas. Em uma coletiva de imprensa, o novo secretário de estado, Antony Blinken, confirmou que considera um genocídio o que o Partido Comunista está fazendo com a minoria muçulmana uigur na província de Xinjiang. Na primeira provocação militar chinesa, os Estados Unidos reagiram prontamente. O governo Biden repeliu com vigor a entrada de 15 caças e aviões de reconhecimento chineses no espaço aéreo de Taiwan no primeiro final de semana após a posse em Washington. Tanto americanos democratas como republicanos são críticos da China. Sendo assim, a expectativa com Biden é principalmente uma mudança na forma, e não no conteúdo, da maneira de lidar com os chineses.

Trump brigou com a China sozinho. Ao aumentar impostos para diversos produtos, deflagrou uma guerra comercial. A disputa fez as bolsas do mundo todo oscilarem para cima e para baixo, até que se chegou ao acordo “fase 1”, obrigando os chineses a comprar 32 bilhões de dólares em produtos agrícolas americanos. Governantes de outros países assistiram à rixa a partir de uma distância segura, imaginando como seriam afetados, ao mesmo tempo que viram os Estados Unidos se retirando dos organismos multilaterais. A recusa americana em nomear juízes deixou a Organização Mundial do Comércio inoperante. Trump anunciou a saída da Organização Mundial de Saúde, cobrou maiores aportes dos europeus na Otan e esbravejou contra a ONU. Biden também vai pelear com a China, mas fará isso dentro das organizações internacionais que Trump desprezou e tentará atrair os aliados para o seu lado.

ReproduçãoReproduçãoGoverno Biden condenou o voo de aviões chineses em Taiwan
Para a América Latina, que tem crescido nos últimos anos exportando commodities para a China, a preocupação era que a guerra comercial entre os dois gigantes espantasse os investidores dos mercados emergentes. Ou, então, que os americanos tomassem o lugar dos produtores latino-americanos no mercado chinês. Trump também pediu aos países do subcontinente que boicotassem a Huawei e prometeu o ingresso de Brasil e Argentina na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, a OCDE. No Banco Interamericano de Desenvolvimento, indicou pela primeira vez um americano, Mauricio Claver-Carone, que acenou com créditos para as empresas americanas transferirem suas fábricas da China para a América Latina. “Trump tentou restaurar a Doutrina Monroe de deixar a América para os americanos. Seu objetivo era impedir o avanço de potências estrangeiras no continente. Essa doutrina tinha sido reconhecida como terminada na administração de Barack Obama, mas foi retomada com Trump. Se o governo Biden se parecer com o que seria um terceiro mandato de Obama, observaremos a China mais à vontade na região”, diz Marcus Vinicius De Freitas, professor da Universidade de Relações Exteriores da China, em Pequim.

Na contramão do que queria Trump, a aproximação brasileira com a Ásia não cessou. Em plena pandemia, a China tornou-se o primeiro parceiro comercial do Brasil a superar a marca histórica de comércio superior a 100 bilhões de dólares. A conta é feita somando-se exportações e importações. As promessas de crédito para indústrias americanas transferirem linhas de produção depararam com a baixa competitividade brasileira e mercados fechados. Em janeiro, a Ford, primeira montadora americana a se instalar no Brasil, em 1919, anunciou sua saída. O apoio à entrada na OCDE ainda não teve resultados até agora e dependerá do consentimento dos europeus. “No momento atual, os Estados Unidos estão oferecendo à região possibilidades marginais de ganho, enquanto a China apresenta oportunidades exponenciais de crescimento econômico”, diz Freitas. O efeito que esses fatos causarão no governo Bolsonaro é incerto. Declarações públicas de integrantes do governo não permitem antecipar nenhuma estratégia, mas a decisão de permitir a participação da Huawei na competição pelo 5G é um importante sinal de aproximação, principalmente depois de o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ter entrado em conflito com os chineses — ele tem sido escanteado nas negociações com a embaixada da China em Brasília. A preocupação imediata do país é com a liberação de insumos necessários para fabricar as vacinas no Instituto Butantan e na Fiocruz.

Na Europa, a orientação que vigorará nos próximos anos foi explicitada por uma declaração da chanceler Angela Merkel no Fórum Econômico de Davos, realizado de maneira remota. “Eu gostaria muito de evitar a construção de blocos. Não acho que faria justiça a muitas sociedades se disséssemos que aqui estão os Estados Unidos e ali está a China e estamos nos agrupando em torno de um ou de outro. Esse não é o meu entendimento de como as coisas devem ser“, disse Merkel. Do ponto de vista da chanceler, não haverá, portanto, um alinhamento automático com os americanos contra a China. No dia 30 de dezembro, Merkel aproveitou seus últimos dias na presidência do Conselho Europeu para anunciar um acordo de investimentos com os chineses. O texto, que demorou sete anos para ficar pronto, amplia o acesso das empresas europeias ao mercado chinês em múltiplas áreas, como finanças, saúde, construção civil e tecnologia.

Tradicionalmente, os europeus sempre evitaram fechar as portas para parceiros comerciais, mesmo para desafetos dos americanos. Eles precisam do gás russo, fazem negócios com a Turquia, comercializam com suas ex-colônias no Oriente Médio, com o Irã e cobiçam os mercados asiáticos. Como são países com mais recursos, os europeus atenderam aos pedidos do governo Trump para bloquear a Huawei de suas redes, mas não bloquearam outras conversas com Pequim. “As cadeias de produção atualmente estão muito interconectadas e várias delas passam pela China. Não se pode repetir o que se fez com a União Soviética, que durante a Guerra Fria foi totalmente isolada. A economia da China é muito maior que a soviética e não permitiria algo assim”, diz o economista Roberto Dumas Damas, professor do Insper e autor do recém-lançado livro China x EUA.

ReproduçãoReproduçãoMerkel: “Gostaria de evitar a construção de blocos”
Uma maior desenvoltura chinesa na área econômica pode prejudicar demandas em áreas como propriedade intelectual e direitos humanos. Países ocidentais sempre reclamaram da pirataria na China e do roubo de segredos corporativos. O acordo de investimentos assinado com a Europa pede respeito à propriedade intelectual, mas a China teimosamente não tem obedecido aos acordos que já firmou. “O respeito à propriedade intelectual varia entre as províncias. Algumas afrouxam a vigilância contra a pirataria, porque seus governantes sobem na hierarquia do Partido Comunista quando há mais crescimento econômico”, diz Dumas Damas.

Na questão dos direitos humanos, nada até agora conseguiu fazer o Partido Comunista retroceder na lei de segurança em Hong Kong ou nos crimes contra uigures em Xinjiang. Como o país já não cresce a taxas de 10% ao ano como há uma década, o presidente Xi Jinping recrudesceu o autoritarismo do seu regime. Para não ter de prestar contas, a China ampliou sua presença em organismos internacionais que pode manobrar por dentro. Tornou-se membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU e se reelegeu no ano passado. Também emplacou vários diplomatas em instâncias internacionais. Em junho, uma carta assinada por 50 especialistas em direitos humanos e apoiada por 400 organizações civis pediu que a China fosse investigada por abusos. Nada aconteceu. No mês seguinte, uma votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou com 53 votos a lei de segurança nacional em Hong Kong, usada para prender dissidentes. Apenas 27 países foram contra. “O governo chinês não apenas busca neutralizar os mecanismos de direitos humanos na ONU para apurar o que acontece na China, como também quer neutralizar a capacidade do sistema de exigir que o governo responda por violações de direitos humanos”, escreveu Sophie Richardson, especialista em China na ONG Human Rights Watch.

Para governos que são contumazes violadores dos direitos humanos, como a Rússia e o Irã, a ação chinesa para neutralizar o sistema internacional serve como um alento. O governo chinês também tem sustentado que o seu sistema político é mais eficaz que a “decadente” democracia ocidental. Na invasão do Capitólio pelos apoiadores de Trump em Washington no dia 6 de janeiro, os chineses estavam entre os que mais comemoraram o caos nos Estados Unidos. Na sua posse no dia 20, Biden retratou sua vitória eleitoral como um triunfo da democracia e das suas instituições. Para se contrapor ao discurso chinês, ele precisará contar com o apoio de aliados, principalmente dos europeus, nos fóruns internacionais. A influência econômica da China, contudo, poderá frustrar essa tentativa.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO