Impunidade resgatada
Depois de dois anos tentando blindar a família do presidente Jair Bolsonaro de um escândalo que nasceu com a revelação das transações atípicas identificadas pelo Coaf na conta bancária do hoje notório Fabrício Queiroz, o advogado Frederick Wassef parece ter aprendido os atalhos – e o timing – para aniquilar provas e minar na origem uma investigação com potencial explosivo. Desde agosto do ano passado, quando Crusoé revelou que um relatório de inteligência produzido pelo mesmo Coaf apontava pagamentos de 9,8 milhões de reais feitos pela JBS a Wassef, o ex-defensor do presidente e do senador Flávio Bolsonaro passou a circular por Brasília advogando em causa própria. A amizade com magistrados das cortes superiores, a influência que ainda exerce sobre quem ocupa o Palácio do Planalto e escolhe integrantes para os postos mais altos do Judiciário e, claro, a atual conjuntura política pró-impunidade, que nesta semana resultou na extinção da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba após sete anos, bem como na eleição de um réu por corrupção à presidência da Câmara — tudo isso rendeu a Wassef uma vitória sui generis no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Por unanimidade, a Terceira Turma da corte anulou o relatório do Coaf sobre Wassef e trancou o inquérito sobre a relação dele com a JBS, acolhendo a tese de que foi a produção do relatório que se deu de “forma atípica“, e não as movimentações financeiras de Wassef. Não satisfeito, o tribunal ainda determinou que a Polícia Federal investigue o “aparato do Coaf” que teria atuado na “quebra indevida de sigilo bancário e fiscal” do advogado bolsonarista e o “vazamento indevido” das informações reveladas por Crusoé.
A decisão beneficiou não apenas Frederick Wassef, mas também a empresária Cristina Boner, sua ex-mulher, dona de empresas com contratos milionários com o governo federal, e duas filhas dela — todas aparecem citadas no mesmo relatório do Coaf porque fizeram transações financeiras consideradas atípicas, como depósitos fracionados ou envolvendo altas quantias de dinheiro vivo. O processo, como de costume, está sob sigilo. O acórdão, ao qual Crusoé teve acesso, foi publicado no dia 15 de dezembro, cinco dias antes do recesso do Judiciário. O voto em favor de Wassef foi proferido pelo desembargador Ney Bello, relator do caso, e acompanhado em sua íntegra pelos outros dois integrantes da turma, Maria do Carmo Cardoso e José Alexandre Franco. Em setembro passado, Ney Bello já havia assinado uma liminar livrando a JBS de entregar ao Ministério Público Federal cópia dos contratos e recibos que atestariam os serviços supostamente prestados por Wassef ao frigorífico — serviços que, por sinal, eram desconhecidos dos próprios advogados formais da companhia. Segundo a empresa, o advogado bolsonarista atuava em inquéritos policiais. Mas, como Crusoé revelou há seis meses, Wassef contou com a ajuda de Bolsonaro e do procurador-geral da República, Augusto Aras, para tentar salvar, em outubro de 2019, o acordo de delação premiada assinado pelos irmãos Joesley e Wesley Batista com a PGR, sem que tivesse para isso qualquer procuração. A repactuação do acordo, que impede a volta da dupla para a cadeia, foi assinada no fim do ano passado.
Argumento semelhante, de que relatórios do Coaf enviados aos investigadores configura quebra ilegal de sigilo bancário e fiscal, já foi usado antes por Wassef na defesa de Flávio Bolsonaro no caso Queiroz, em 2019. Na ocasião, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, chegou a paralisar todas as investigações do país motivadas por relatórios do Coaf por quatro meses, a pedido do senador, apontando possível ilegalidade no compartilhamento das informações. Importante instrumento no combate à lavagem de dinheiro, o Coaf já alimentou grandes investigações contra a corrupção, como o mensalão petista e dezenas de fases da Lava Jato. A recente decisão do TRF-1 que beneficiou Wassef abre um precedente perigoso. Ela pode, por exemplo, incentivar outros investigados a procurar a Justiça para escrutinar o Coaf e anular relatórios de inteligência sobre as movimentações financeiras de seus clientes. Um ministro de corte superior ouvido por Crusoé disse que o veredicto do tribunal é uma “bomba de hidrogênio” capaz de provocar um efeito semelhante ao da decisão de Toffoli. À diferença de 2019, quando a tese do então presidente do STF foi derrotada de forma acachapante no plenário da corte, após forte reação da sociedade, os ventos da impunidade sopram ainda mais fortes hoje. O próprio Jair Bolsonaro decidiu compor com o Centrão no Congresso e com a ala mais política do Judiciário para salvar seu mandato, num movimento articulado nos bastidores por Flávio e Wassef, responsáveis direto pela escolha de Kassio Marques para a vaga do decano Celso de Mello no próprio Supremo, no ano passado.
Nos bastidores dos tribunais de Brasília, Ney Bello nunca escondeu sua ambição de um dia chegar ao Supremo. Atualmente, ele está na disputa pela vaga do ministro Napoleão Nunes Maia, do STJ, que se aposentou em dezembro. Tem como principal padrinho o ministro Gilmar Mendes, de quem foi auxiliar no STF. Gilmar já chegou a pedir a ministros do STJ para que considerassem o nome do desembargador. Amigo do governador do Maranhão, Flávio Dino, do PCdoB, de quem foi secretário-geral no comando da Associação dos Juízes Federais, Ney Bello é visto como um magistrado próximo a partidos de esquerda, como o PT, e chegou, inclusive, a ser alvo de um dossiê feito por Wassef e entregue ao presidente Jair Bolsonaro para queimá-lo antes da recente decisão favorável dada pelo desembargador. No momento, ele tem trabalhado para se livrar da pecha de esquerdista e se aproximar do Planalto, a quem cabe a indicação dos nomes para as cortes superiores. Tem funcionado. No portfólio a ser apresentado a Bolsonaro na hora da decisão, além da liminar que trancou a investigação sobre o ex-advogado do presidente, ele tem outras decisões favoráveis a ministros do governo, como a rejeição de um pedido de afastamento do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o voto, como relator, no julgamento que trancou a investigação sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, por supostas fraudes em fundos de pensão. Recentemente, Ney Bello teve papel ativo, ao lado do ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, para montar a comissão que discutirá mudanças para abrandar a lei de lavagem de dinheiro, uma das acusações que hoje pesam sobre o filho 01 de Bolsonaro. As alianças circunstanciais de Brasília estão cada vez mais escancaradas e, com elas, a conhecida cultura de impunidade volta a fazer parte da cena. Pior para o Brasil.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.