RuyGoiaba

O Brasil é o português da casca de banana

29.01.21

Prever o futuro — com a triste exceção dos números da Mega-Sena — não é difícil. O problema é que as pessoas olham para os lugares errados: “sensitivos”, jogadores de búzios, astrólogos e picaretas variados que, para citar o exemplo mais fácil, nem se deram conta da pandemia de Covid-19 chegando. (São todos como aquele esquete dos Trapalhões em que Renato Aragão bate a uma porta com a placa “vidente”. Lá de dentro, uma voz feminina pergunta “quem é?”. Ele joga a plaquinha longe, dá de ombros para a câmera e sai.)

H.L. Mencken (1880-1956), por exemplo, previu o futuro. Em 1920, o grande jornalista americano, uma espécie de Paulo Francis on steroids da sua época, escreveu isto: “À medida que a democracia é aperfeiçoada, [a Presidência] representa cada vez mais a alma das pessoas. Caminhamos em direção a um ideal elevado. Em algum dia grande e glorioso, o povo simples desta terra finalmente alcançará o que seu coração deseja, e a Casa Branca será adornada por um completo idiota”. Avançamos um século, ou pouco menos, e voilà: Donald Trump. Mencken não precisou ler folhas de chá para chegar a essa conclusão: era só ter um sentido aguçado para o “vai dar merda” — que aliás deveria ser um ministério com o mesmo status de Saúde e Educação em qualquer governo.

No Brasil, Dias Gomes (1922-1999) também previu o futuro. Circulou recentemente pelas redes sociais um trecho de “O Bem-Amado”, novela escrita pelo dramaturgo para a Globo em 1973, no qual Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), o prefeito de Sucupira, discute com seu assessor Dirceu Borboleta (Emiliano Queiroz). Odorico quer impedir que uma vacina chegue às mãos do doutor Leão, único médico da cidade e líder da oposição. Dirceu diz que o prefeito é “desumano” e o médico não terá como impedir a epidemia. Chega até a falar — é sério, podem conferir o vídeo no YouTube — em “genocídio”.

“E daí, seu Dirceu?”, responde Odorico, acrescentando que o auxiliar “não entende de política”. “O que eu não admito, de jeito nenhum, é que o doutor Leão se transforme num herói. Eu não vou dar essa vitória de mão beijada pro inimigo. Se há vaga de herói nesta terra, essa vaga é minha!”. O prefeito prossegue dizendo que vai interceptar as vacinas, “mas a população não vai ficar sem ser vacinada”: Sucupira vai ter “vacina de sobra” em um posto de saúde que ainda não existe, mas ele vai abrir. “Odorico Paraguaçu vai salvar esta cidade!”

Igualzinho à briga política pela vacina contra a Covid-19 quase 50 anos depois, não é? Até nos trechos do “e daí?” e do “genocídio”. Só que o Brasil — que sempre foi, debaixo de uma casquinha de civilização e no fundo da sua alma, a Sucupira de Dias Gomes — hoje é ainda pior: Odorico, afinal, não era um negacionista de epidemias como Jair Bolsonaro. E Dirceu Borboleta, embora fiel ao prefeito, de vez em quando conseguia dizer a ele verdades desagradáveis. Isso jamais acontecerá com o entorno do presidente, composto exclusivamente de pessoas escolhidas pela capacidade de dobrar a espinha e puxar abjetamente o seu saco: o “capitão”, esse homúnculo, não suporta nada que não seja claque.

Eu poderia citar ainda os tuítes antigos de Eduardo Cunha, o maior oráculo da rede social, como provas de que não é difícil prever o futuro. Já o passado é imprevisível, como diz aquela frase atribuída a Pedro Malan. O problema, meus caros amigos, é que o futuro ser previsível aqui não adianta nada: vejam as enchentes, aquele fenômeno para o qual as cidades nunca estão preparadas apesar de ele acontecer TODO ANO na mesma época. Somos como o português da piada, que está andando pela calçada, vê uma casca de banana lá na frente e diz “ai, Jesus, lá vou eu escorregar de novo”. Olha lá, vamos votar num idiota populista de novo; ih, votei no idiota; ai, meu Deus, me estabaquei mais uma vez.

Quanto a mim, prevejo que a frase clássica de Paulo Mendes Campos — “antigamente as coisas eram piores; depois foram piorando” — jamais perderá a validade. Não é a Mega-Sena, mas é a previsão que temos para hoje. Paciência.

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A GOIABICE DA SEMANA

Um portal de assuntos médicos, certamente preocupado em evitar o uso do termo transfóbico e excludente “mulheres”, informa que a candidíase “atinge até 75% das pessoas com vagina em alguma fase da vida”. Não apenas dou total apoio como, daqui por diante, só vou me referir a namorada, cunhada e amigas como PCVs. Defendo inclusive que os clássicos do cancioneiro brasileiro sejam reescritos levando em conta essa nova perspectiva: por exemplo, “olha que coisa mais linda, mais cheia de graça/ é ela, pessoa com vagina, que vem e que passa”, ou “mirem-se no exemplo daquelas pessoas com vagina de Atenas”. Nada como desconstruir o preconceito e a métrica com uma bordoada só.

Divulgação/Acervo TV GloboDivulgação/Acervo TV GloboOdorico (Paulo Gracindo) e Dirceu (Emiliano Queiroz) são eternos nesta Sucupira

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