MarioSabino

A linguagem é um vírus

29.01.21

Depois de ouvir pela enésima vez Jair Bolsonaro vomitando impropérios contra jornalistas, lembrei-me da música da americana Laurie Anderson: Language is a vírus (from outer space). Anderson, artista experimental inigualável — assisti maravilhado a um show dela no Rio de Janeiro, no longínquo início da década de 1990 — transformou em composição a tese do escritor William S. Burroughs, igualmente americano, segundo a qual “a palavra não é reconhecida como um vírus porque atingiu um estado de simbiose estável com o hospedeiro“. O mais curioso dessa curiosidade é que esse vírus teria vindo do espaço sideral. Não vou adentrar a tese de Burroughs, mas usá-la como metáfora, esquecendo o espaço sideral porque o fenômeno é bem terrestre — e pedestre. A linguagem pode ser um vírus tão danoso quanto o da Covid-19. No Brasil, ele vem demonstrando ser de alta letalidade para as formalidades da democracia. Mesmo num país informal como o nosso, tais formalidades continuam importantes para separar o público do privado, a personalidade política da sua vida pessoal. Se elas são exigidas, em maior ou menor grau, de profissionais da iniciativa privada, não importa a área de atuação, tornam-se ainda mais essenciais no caso dos cidadãos com mandato popular e dos que ocupam posições oficiais por mérito ou indicação.

A degradação da linguagem em curso no mundo político e correlato brasileiros é sintoma e causa do aviltamento das instituições. Degrada-se a linguagem por meio do abandono da norma culta, da comunicação por anacolutos, do coloquialismo excessivo e do uso de palavras de baixo calão como interjeição e xingamento. No Brasil, a linguagem dos homens públicos começou a degradar-se com Lula, que queria vender-se como “gente como a gente” e, desse modo, fazia questão de amplificar a sua ignorância do vernáculo, bem como a sua vulgaridade. Teve sequência com Dilma Rousseff, cujas declarações sem pé nem cabeça, com vácuos constrangedores, talvez fossem fruto de dislexia ou algo que o valha (pedaladas frasais). E atingiu o fundo do poço com Bolsonaro. Ele reúne a ignorância e a vulgaridade de Lula e os anacolutos de Dilma, acrescidos de palavrões e expressões chulas.

Não prego a criação de uma eterna noite politicamente correta, no qual o colorido da vida pública se esmaeça até desaparecer. Presidentes, governadores, prefeitos, ministros, parlamentares e magistrados podem ter um registro pessoal de fala, mas sem deixar de ater-se ao seu papel de zelar também no plano linguístico pelas instituições que representam e sobressair pelo bom exemplo aos cidadãos. Os arroubos de caráter populista não devem ser regra e, ainda que arroubos, precisam estar circunscritos pelo decoro e o respeito.

Como a linguagem é vírus, a sua degradação no plano político-institucional é transmissível a todos. Recentemente, inconformado com a fake news bolsonarista sobre a Coronavac ter causado duas mortes, o médico virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, retrucou com um “teu cu” no Facebook, à maneira do vereador Carlos Bolsonaro. Defendi o seu desabafo em O Antagonista:

Dá para entender a perda de paciência do médico com a quantidade de cretinos que negam a gravidade da pandemia e acham que o Brasil está bem na fita, apesar da média móvel de mil mortos por dia. Que sabotam o isolamento social, o uso de máscaras e, agora, politizam as vacinas, divulgando inverdades sobre efeitos colaterais graves. Foram esses cretinos apoiadores de um psicopata que se empenharam arduamente para chegarmos a esse quadro desesperador — e que tende a piorar diante da falta de qualquer plano nacional de combate a uma doença que assola o Brasil e o mundo há um ano. Que afirmam, em defesa da cloroquina, que o paciente tem o direito de “escolher o tratamento” para a Covid-19. Ninguém escolhe tratamento para sarampo ou rubéola, por que deveria escolher no caso da doença que lota UTIs e mata indiscriminadamente, por meio de um vírus que parece se comportar de maneira customizada?

Nogueira disse ao UOL o motivo de ter perdido a paciência com essa gente: “Eu vou a um lugar e a minha opinião sobre o assunto vale tanto quanto a de outra pessoa completamente sem formação. Eu posso ficar o resto do dia discutindo com essa pessoa, com embasamento técnico, mas a qualificação não vale mais nada. Opinião agora é que vale. O ‘tiozão do zap’ é que tem mais representatividade do que as pessoas formadas’.

O sono da razão produz monstros. Estamos cercados por esses monstros surdos a argumentos científicos ou minimamente racionais. E cegos para a paisagem de devastação ao nosso redor. Permitamo-nos, assim, perder a educação por um momento e lhes dizer: ‘Teu cu”’. Faz bem à alma.

A reação do médico virologista e o meu apoio são compreensíveis, porque é isto mesmo: a linguagem aviltada infecta as instituições e as relações humanas, envenenando-as. Todos estamos expostos ao contágio por ela. No seu universo, não existem argumentos racionais, apenas mentira, diversionismo e brutalidade. A única resposta a ela é o tipo de exasperação que também faz parte do seu âmbito. Vírus. 

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