Rafael Andrade/Folhapress"Quando um candidato é eleito, ele é cobrado pela esposa para dar emprego ao cunhado"

A ditadura da família

O antropólogo Roberto DaMatta relaciona os desvios de comportamento do brasileiro ao costume aristocrático de colocar familiares acima dos demais e aponta como exemplo a atuação de Jair Bolsonaro
29.01.21

Quando retornou para o Brasil após fazer mestrado e doutorado em Harvard, o antropólogo Roberto DaMatta, hoje com 84 anos, teve uma experiência traumática como diretor substituto do programa de pós-graduação do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Ao procurar um sub-reitor, ouviu a frase: “Hoje eu não tenho tempo para atendê-lo!”. A resposta mal-educada foi anotada em seu diário em 5 de fevereiro de 1971. Em seguida, DaMatta “elaborou antropologicamente” o que tinha sofrido. Sua pesquisa culminou no ensaio “Você sabe com quem está falando?”, incluído no livro Carnavais, Malandros e Heróis, de 1979. A frase, tida por ele como um dos traços essenciais do brasileiro, serve para estabelecer diferenças em uma sociedade que, supostamente, deveria ser igualitária.

A obra marcou época porque, em vez de analisar o Brasil pelo conflito de luta de classes como seus pares posicionados à esquerda faziam, DaMatta se baseou nas interações sociais. Para ele, a grande instituição brasileira é a família, que permeia também as relações na esfera pública. “Quando um candidato é eleito prefeito no Brasil, em seguida ele é cobrado pela esposa para dar emprego ao cunhado”, diz. Essa prevalência dos círculos familiares hoje pode ser conferida no Palácio do Planalto. “Foi só as investigações chegarem ao filho, o Flávio Bolsonaro, para que o pai (Jair Bolsonaro) passasse a governar de modo absolutista. Ele mudou toda a estrutura dos ministérios para blindar sua família.” Quarenta anos depois do lançamento de seu primeiro livro, DaMatta aprimorou seu conteúdo e relançou o ensaio. O livro Você Sabe com Quem Está Falando? foi lançado pela Rocco no final do ano passado.

Aposentado como professor titular de antropologia da PUC do Rio, DaMatta segue com suas atividades intelectuais, estudando e escrevendo colunas. Durante uma hora por dia, ele pratica exercícios físicos na academia de ginástica ouvindo canções antigas, brasileiras e americanas, em um aplicativo de músicas. De Niterói, onde mora, ele conversou por telefone com Crusoé.

A pandemia revelou alguns traços incômodos da sociedade brasileira?
Essa catástrofe que estamos vivendo tem um caráter igualitário, que acabou se chocando com a matriz desigual da sociedade brasileira. A pandemia tem uma universalidade porque afeta a todos. O vírus não escolhe quem vai morrer. Pode ser rico, pobre, alto, baixo, negro ou branco. Nesse sentido, pode-se dizer que a pandemia é democrática. No Brasil, a chegada da Covid evidenciou de uma forma nua e crua que estamos longe de ser uma sociedade perfeita. De um lado, a doença ressaltou nossa incapacidade de nos organizar igualitariamente. De outro, trouxe à luz a desumanidade brasileira. Somos uma sociedade aristocrática, que ainda guarda os traços da escravidão. Eu nasci em 1936. Apenas trinta anos antes do meu nascimento o Brasil ainda estava fedendo à exploração da escravaria.

Em que o Brasil ainda é aristocrático?
Ninguém analisa as implicações disso, mas o rei veio para o Brasil em 1808. Fugindo de Napoleão, a corte portuguesa aportou por aqui, centralizou o governo e consolidou um estilo de vida aristocrático e escravagista. Os negros africanos, depois de uma viagem horrorosa, ficavam com o trabalho manual, menosprezado por todos. Os escravos que tinham alguma inteligência emocional logo entenderam que, quanto mais próximo dos senhores, melhor seria para eles. Nesse processo, criou-se uma estrutura de vínculos pessoais muito forte. Temos isso implantado na matriz social brasileira, em que a família é o principal valor. Como se apaga um passado como esse? Hoje, o brasileiro não sabe o nome completo das suas empregadas. Elas são chamadas apenas por apelidos como Dedé, Lili. Os trabalhos manuais continuam desvalorizados. Os homens não sabem nem sequer passar a camisa. As mães criam os filhos para entregá-los a outras mulheres, que depois assumirão o papel delas. Tem cara que pede sentado para a mulher levar o copo d’água. Alguns se acham especiais, superiores, nobres. Acham que podem fazer de tudo.

Divulgação/FLIPDivulgação/FLIP“Os americanos não nutrem essa devoção pela família”
Como isso se reflete na esfera pública?
Brasileiro fica irritado em fila. Fica chateado quando vai pegar o avião ou entrar na agência bancária, porque quer ser atendido em primeiro lugar. É por isso que vimos grupos se organizando para receber a vacina antes dos demais. Não vou me surpreender se logo mais aparecerem políticos inoculando familiares antes dos grupos prioritários (a entrevista foi feita no primeiro dia de vacinação no país). A ideia que perpassa tudo isso é a de que aquilo que vale para os outros não vale para mim. Quando está dirigindo o carro, o brasileiro não gosta de parar no vermelho. Se vê os outros passando, mete o pé na tábua e avança o semáforo. É assim que acontecem os grandes acidentes. Quando um candidato é eleito prefeito no Brasil, em seguida ele é cobrado pela esposa para dar emprego ao cunhado. Se algum fiscal ameaça multar um desembargador sem máscara, ele reage com o tradicional “Você sabe com quem está falando?”. Esse é um comportamento puramente aristocrático, ainda usado por muitos. Acham que podem fazer isso porque nada vai acontecer com eles. Essa inconsciente sensação de superioridade e impunidade é o que também explica a mala de dinheiro que o emissário do senador Aécio Neves foi pegar. Explica também as maletas cheias de notas encontradas no apartamento de Geddel Vieira Lima, na Bahia. Os donos podem tudo.

A política brasileira atual ainda reflete esses traços?
Claro que sim. Bolsonaro não veio do espaço sideral. Ele também tem esse viés aristocrático. Paradoxalmente, ele se elegeu prometendo acabar com os privilégios. Prometia dar um caráter mais impessoal para a política e valorizar as normas e as regras. Foi isso o que a Lava Jato fez com o Sergio Moro. O ministro Paulo Guedes também trouxe essa bandeira, na proposta de privatizar as estatais. Só pode haver igualdade quando há impessoalidade nas relações. Antes, eles falavam da necessidade de revisar a estrutura do funcionalismo público. Uma pessoa não poderia mais ter três aposentadorias, apenas uma. É assim que as coisas funcionam nas democracias modernas. Foi só as investigações chegarem ao filho dele, o Flávio Bolsonaro, para que o pai passasse a governar de modo absolutista. Ele mudou toda a estrutura dos ministérios para blindar sua família. Jair Bolsonaro não entende como funciona a estrutura administrativa. Acha que deve ser tratado de maneira especial, como o supremo magistrado da nação. Ele não tem a menor sensibilidade para com os outros, para com a morte.

Como o sr. explica o esquema “rachid”, ou “rachadinha”, do qual Flávio Bolsonaro é acusado?
Sempre que alguém é convidado para fazer algo que não é muito legal, aparece um sujeito como o garantidor da operação. Ele se bota na linha de frente. É o “deixa que eu faço”. Esse cara era o Fabrício Queiroz. Por muito tempo, as coisas funcionaram com ele. Bolsonaro não inventou nada. Esse sistema da rachadinha, de pegar parte do salário dos subordinados, já existia. Tanto que já tinha esse nome. Flávio Bolsonaro só entrou na canoa que estava lá.

O sr. estudou nos Estados Unidos. Os americanos são muito diferentes de nós nesses aspectos?
Nos dois países, o fim da escravidão criou igualdade jurídica entre as pessoas. A diferença é que lá, nos estados do sul, eles fizeram um contrassistema legal para reestabelecer as diferenças que tinham sido abolidas. As leis segregacionistas de Jim Crow foram a culminação disso. O conceito era o de “iguais, mas separados”. No Brasil, isso foi feito por meio das relações pessoais. Não construímos um sistema legal, baseado na impessoalidade, para impor as diferenças, mas adotamos a frase “Você sabe com quem está falando?”, que segue viva até hoje. Nos Estados Unidos, a expressão mais comum é outra. Quando alguém fura a fila, os outros gritam: Who do you think you are? (“Quem você pensa que é?”). Eles usam uma expressão inversa da nossa, para situar a pessoa como um igual, e não como alguém inferior.

Divulgação/FLIPDivulgação/FLIP“Acabar com os privilégios não deve ser uma posição da direita ou da esquerda, mas de todos
É possível traçar paralelos entre o ex-presidente Donald Trump e Jair Bolsonaro?
Trump tentou fazer lá muito do que Bolsonaro fez aqui, mas foi barrado pelo sistema. Para começar, os americanos não nutrem essa devoção pela família. Eles nem sequer pensam nisso de arranjar emprego para parentes. É algo que para eles não tem significado.Não há um familismo institucionalizado. Repare nos filmes americanos. Geralmente, eles falam da relação conjugal, entre marido e mulher. No Brasil, a trama costuma ser entre pai, mãe e filhos. Quando um jovem americano chega aos 14 anos, ele começa a não querer mais morar com os pais. No Brasil, a independência e a autonomia são vistas com desconfiança. Também inexiste por lá a cultura aristocrática que temos aqui. Por terem passado por várias guerras, os quadros do Exército, da Marinha e da Força Aérea desenvolveram um poderoso sentimento de solidariedade e patriotismo. Seus quadros não são manipulados por regras de compadrio. É por isso que testemunhamos generais negando publicamente afirmações de Trump.

Há comparações possíveis entre Bolsonaro e outros políticos da história brasileira?
Bolsonaro é um personagem autoritário que se coloca como salvador da pátria. Diz que está tentando consertar o Brasil, mas que os seus inimigos não deixam, seja lá quem eles forem. Já vimos isso com Leonel Brizola, com João Goulart, com Jânio Quadros. Esse último, aliás, acabou sendo esquecido na história. Mas é o que mais se parece com Bolsonaro. Jânio usava aquele terninho de safári, uma roupa de caçador africano, e falava de uma maneira que parecia o Carlitos de Charlie Chaplin imitando Hitler. Não é muito diferente do que a gente está vendo hoje. Esses caras se repetem. Além do mais, Bolsonaro era um caipira que caçava no mato e depois ficou muitos anos no Congresso. O sentimento para quem o observa é o de que o sujeito tem uma carga de contradições muito grande dentro dele, e isso acaba transbordando.

O sr. vê alguma solução possível para o Brasil?
O país precisa criar uma cultura verdadeiramente igualitária, neutralizando as relações familiares na esfera pública. Não estou falando em acabar com a família, não é isso. Mas é preciso impedir que elas predominem além da porta da casa. No município de Magé, na Baixada Fluminense, o prefeito Renato Cozzolino nomeou sete parentes. Ao ser questionado, ele defendeu as contratações com as justificativas mais tolas, dizendo que são pessoas de sua confiança. O ex-presidente José Sarney fez o mesmo. Ao invés de pensar nos parentes, precisamos buscar atender a uma comunidade maior, que pode ser o bairro, a sociedade. Os americanos sempre falam em “comunidade”. Nós poderíamos adotar essa mentalidade também.

Qual seria o caminho para avançar nessa mudança?
O primeiro passo para alterar as coisas não é querer corrigi-las, mas olhar para elas. Eu escrevi alguns livros investigando e denunciando esses problemas, mas ninguém leu. Então acho que falar da nossa cultura já é uma maneira de começar a mudança. O que não podemos é ignorar o protagonismo das relações e obrigações da casa familiar no resto da sociedade. Esse é um ponto central. Quem não analisa ou reflete sobre o desejo de fumar, jamais vai deixar de ser fumante. Acho que no Brasil de hoje há uma demanda maior por igualdade, ao mesmo tempo que há uma desilusão com o projeto político. Também há mais informação, mais transparência. Precisamos discutir melhor quais são as nossas receitas de cura, para acabar com os privilégios. Essa não deve ser uma posição da direita ou da esquerda, mas de todos. Acho que a gente vai conseguir fazer esse ajuste. Sou um velho otimista.

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