Renato Alves/Agência BrasíliaInício da campanha em Brasília: doses acabarão em pouco tempo

Vacina para poucos

É louvável que uma parcela dos brasileiros já esteja sendo vacinada. Mas, infelizmente (e apesar do marketing), o país ainda está muito longe de ter doses em quantidade suficiente para atender a todos
22.01.21

A primeira semana de vacinação dos brasileiros com a Coronavac encheu o país de esperança. Pela primeira vez, foi possível vislumbrar uma porta de saída para a tragédia da Covid-19. Se é evidente que existem motivos para comemorar, os primeiros dias de imunização também mostraram que não são poucos os problemas que o país terá de superar para garantir a chegada de vacina à maioria da população.

O cenário é, no mínimo, preocupante. Não teremos vacina para todos tão cedo. As doses já distribuídas não são suficientes para sequer atender os profissionais de saúde que estão na linha de frente de combate à pandemia, e o país já se vê diante da perspectiva muito concreta de um apagão na campanha de vacinação já nas próximas semanas, graças à diplomacia atabalhoada do chanceler Ernesto Araújo combinada à inépcia do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello.

A conta não fecha. Objetivamente, o Brasil deu a largada em seu plano nacional de imunização com 6 milhões de doses da Coronavac, suficientes para imunizar com duas doses 2,8 milhões de brasileiros – o Ministério da Saúde considera aceitável uma perda “operacional” de até 5%. Mas sem os insumos necessários – leia-se Ingrediente Farmacêutico Ativo, o IFA – vindos da China para que Fiocruz e Butantan alimentem suas produções, apenas um terço, se muito, dos responsáveis por enfrentar a pandemia na linha de frente serão vacinados neste momento.

Não há números precisos – muito menos planejamento — para definir a categoria “profissionais de saúde”, incluída com justiça como prioritária nesta primeira etapa da vacinação. Por baixo, são pelo menos 6 milhões de pessoas, mas a depender do critério esse número pode ser muito maior se forem incluídos, além de médicos e enfermeiros, o pessoal de apoio que trabalha nos hospitais e em outras unidades de atendimento. Ainda na primeira fase estão indígenas que vivem em aldeias, idosos em asilos e pessoas com deficiência internadas em clínicas.

“O cenário que chega para nós é de total incerteza. As sinalizações dadas por negociações prévias com as fabricantes de vacinas não se concretizaram e tudo que tinha sido montado até agora está tendo que ser revisto”, admitiu a Crusoé, sob reserva, um técnico do SUS que acompanha a distribuição das vacinas.

Alan Santos/PRAlan Santos/PRO arrogante Pazuello: a experiência do general em logística está sendo posta à prova como nunca antes, e o resultado não é dos melhores
Nos próximos dias, a Anvisa deve liberar para uso emergencial mais 4,8 milhões de doses da Coronavac – produzidas aqui mesmo no Brasil, pelo Instituto Butantan – e deve finalmente aterrissar em território nacional o carregamento de 2 milhões de doses da vacina de Oxford que o governo federal comprou da Índia. Mesmo assim, ainda estaremos longe de chegar nos grupos que vêm a seguir na fila.

A continuidade do abastecimento dependerá do sucesso das negociações com a China para a liberação da carga de insumos que está retida no país asiático. Pelo histórico de rusgas com os chineses, marcado por críticas completamente desnecessárias feitas publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro e até pelo seu filho 03, Eduardo Bolsonaro, Ernesto Araújo perdeu qualquer canal diplomático com o país.

Na tentativa de manter a linha de produção do Butantan em funcionamento, o próprio governo de São Paulo decidiu entrar diretamente nas negociações com os chineses. O governador tucano João Doria cogitou embarcar em um avião para discutir o assunto presencialmente com autoridades do país asiático caso o impasse se mantivesse, mas nesta quinta-feira, 21, finalmente surgiu uma boa notícia: os insumos podem chegar já na próxima semana.

Recebendo o IFA da China, o Instituto Butantan promete entregar mais 9,3 milhões de doses ao SUS até o final de fevereiro e outras 18 milhões até o último dia de março. Na ponta do lápis, se tudo ocorrer sem mais nenhum atropelo diplomático ou político, o laboratório chegará ao final do primeiro trimestre tendo entregue 36 milhões de unidades da Coronavac, suficientes para vacinar 17,1 milhões de brasileiros. Em tese, seria possível chegar ao final do primeiro trimestre deste ano com ao menos dois grupos prioritários já imunizados. Somente depois disso é que viriam os 22,1 milhões de brasileiros idosos entre 60 e 74 anos.

Ainda não se sabe qual ginástica teria de ser feita para, depois de março, e isso se tudo correr como planejado até lá, começar a vacinar o terceiro grupo na escala de prioridades. O Butantan promete trabalhar para cumprir o cronograma, mas já avisou que não endossa a proposta de adiar a segunda dose de aplicação da vacina Coronavac para ampliar o número de pacientes vacinados. Segundo o instituto, o estudo clínico da vacina foi projetado para avaliar a eficácia do produto com duas aplicações em um intervalo de 14 a 28 dias, e não é possível tirar conclusão sobre a resposta imune de pessoas que passem um período mais longo entre as duas doses. Ou seja, a eficácia da vacina que já está no limite do exigido pela OMS pode ser comprometida caso se decida aplicar uma única dose.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéIndígena recebe vacina em Tabatinga: primeira leva não será suficiente para atender todo o primeiro grupo de prioridades
Para não ter de encarar um apagão de vacinas, Brasília corre tardiamente para reparar a sucessão de lambanças cometidas pelo governo. Antes de a Índia autorizar a remessa para o Brasil das doses indianas, auxiliares do ministro das Relações Exteriores não escondiam sua irritação com o que chamaram de “equipe de marqueteiros” do Ministério da Saúde, responsável por armar um verdadeiro circo, com direito a avião adesivado com a imagem do Zé Gotinha para buscar os imunizantes em Mumbai, contrariando todas as recomendações dos diplomatas que fecharam o acordo com o governo de Narendra Modi. Na tarde de quinta-feira, 21, o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, Filipe Martins, numa clara tentativa de encobrir a incompetência do governo, atribuiu a culpa pelo atraso no envio das doses pelo governo indiano à mídia que, segundo ele, teria “vazado” o acerto causando “desconforto à Índia”.

No esforço para tentar reverter o impasse com os chineses, a pedido de governadores, até o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, entrou em campo e se reuniu com o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, na quarta-feira, 20. Maia, em seus últimos dias na cadeira, saiu do encontro com a certeza de que o imbróglio não iria demorar para se resolver.  Na noite do mesmo dia, no entanto, ele foi desautorizado pelo Planalto, que não quer perder (ainda mais) o protagonismo. “O governo federal é o único interlocutor oficial com o governo chinês”, diz trecho de um texto divulgado pela Secretaria de Comunicação da Presidência.

Apesar de o cenário róseo só ser encontrado na narrativa manca do presidente, os governadores vão aumentar a pressão para que mais fabricantes sejam integrados ao programa nacional de imunização. A maior interessada nisso é a União Química, que já está produzindo a vacina russa Sputnik V em sua fábrica no Distrito Federal. Por enquanto, as doses deverão ser exportadas para outros países da América Latina que já aprovaram sua utilização, mas a prioridade, de acordo com a empresa, é atender o Brasil.

A empresa já abriu negociações com o Consórcio Nordeste, presidido pelo petista Wellington Dias, governador do Piauí. Na Bahia, o também petista Rui Costa quer comprar diretamente a Sputnik V, por meio de um acordo de cooperação firmado com a Rússia no ano passado, que prevê o fornecimento de até 50 milhões de doses. Outro que abriu diálogo com a fabricante foi o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, que acompanha com atenção a imunização com o imunizante russo na vizinha Argentina. Um ingrediente adicional de pressão sobre o Ministério da Saúde é a oferta da Rússia de 10 milhões de doses para uso emergencial.

Alex Pazuello/SecomAlex Pazuello/SecomCemitério em Manaus: o perigo persiste e não é hora de descuidar
Os cálculos sobre a inclusão de novos fabricantes no programa de imunização levam em consideração um quadro otimista. No dia a dia do Ministério da Saúde, funcionários deparam com um cenário desagradável. Relatam que o bate-cabeça e a descoordenação exibidas por Eduardo Pazuello nas coletivas de imprensa se reproduzem longe dos holofotes, nas atividades internas.

Em reunião interna na segunda-feira, 18, o secretário executivo da pasta, Élcio Franco, aquele do broche de caveira, tentou explicar para seus comandados a situação. Ao falar da falta de oxigênio em Manaus, ele evitou admitir as derrapadas na logística, alegada especialidade do general Pazuello, mas admitiu um “problema de gestão”.

Outro exemplo ilustrativo da desorganização: quando a vacinação começou, não havia um sistema do SUS para cadastrar quem já tomou a vacina. O programa só passou a funcionar no terceiro dia.

Para além dos problemas já conhecidos, a conhecida esperteza brasileira já se apresenta. No Amazonas, justamente o estado onde foram registradas algumas das cenas mais tristes da pandemia até aqui, com pessoas morrendo asfixiadas devido à escassez de oxigênio, há casos suspeitos de burla à fila da vacinação. O Ministério Público local investiga se pessoas de fora dos grupos prioritários teriam recebido a primeira dose da Coronavac. A principal denúncia envolve as filhas de um empresário dono de uma grande faculdade privada da capital amazonense. As irmãs gêmeas, que são médicas, tomaram a vacina contra a Covid-19 dias logo após serem nomeadas para trabalhar na área administrativa de uma Unidade Básica de Saúde batizada com o nome do pai. Elas ainda registraram o momento da vacinação em seus perfis no Instagram. “Que emoção”, escreveu uma delas. “Vacinada sim”, postou a outra.

Denúncia semelhante foi apresentada em Pernambuco, onde uma arquiteta que trabalha em um hospital de referência do Recife também foi vacinada na primeira leva de doses, o que levou promotores a pedir explicações às autoridades de saúde do governo estadual. Em Alagoas, o influencer Carlinhos Maia – aquele que aparece em manchetes barulhentas dia sim, outro também, mas ninguém sabe ao certo a razão de sua fama — publicou um vídeo dizendo ter sido convidado pelo prefeito de Maceió, João Henrique Caldas, para ser um dos primeiros a receber a vacina. A suposta oferta será investigada pelo MP. A falta de um sistema eficiente e transparente para registrar as pessoas que estão sendo vacinadas contribui para o descontrole. O programa que está em uso, aquele que foi entregue com atraso de três dias, até funciona, mas o Ministério da Saúde ainda não permitiu que os dados possam ser acompanhados pelo distinto público.

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