Marcos Oliveira/Agência Senado

Pachequismo em causa própria

Rodrigo Pacheco, favorito para suceder Davi Alcolumbre na presidência do Senado, é mais um exemplar do que há de pior na política brasileira: na essência, ele usa o mandato para defender os próprios negócios
22.01.21

Desde 2014, quando decidiu entrar na política, o senador mineiro Rodrigo Pacheco, do DEM, já investiu 8,2 milhões de reais do próprio bolso em suas campanhas eleitorais. Tamanho interesse em conquistar cargos públicos pode ter duas explicações: o desejo altruísta de trabalhar para a sociedade ou a perspectiva de obter vitórias pessoais ou empresariais com o mandato. Candidato favoritíssimo para ocupar a presidência do Senado, graças a uma aliança insólita que envolve Jair Bolsonaro, Davi Alcolumbre e o PT, Pacheco tem uma atuação parlamentar pontuada pelo lobby em defesa de seus próprios negócios.

Votações realizadas no final de 2020 escancararam as tratativas em benefício dos interesses do senador. Algumas das negociações são tão abertas que estão até registradas em atas públicas das sessões do Senado Federal, assim como as declarações de alguns poucos senadores estarrecidos com os conchavos. O que o leitor verá nesta reportagem é um dos mais incontestáveis casos de conflito de interesses da história do Congresso Nacional. A inexperiência parlamentar de Rodrigo Pacheco deixou de ser um empecilho e passou a ser um trunfo na corrida. Para Alcolumbre e Jair Bolsonaro, a falta de vivência no Legislativo e, sobretudo, o foco do parlamentar nas suas ambiçōes empresariais tornam mais fácil a tarefa de fazer dele uma marionete. Depois de passar quatro anos na Câmara dos Deputados e dois no Senado, o mineiro que pode ser em breve o presidente do Congresso nunca aprovou um único projeto de lei sequer.

Empresário do setor de transporte rodoviário, Pacheco fez acordo com o governo para conseguir aprovar um projeto de lei que restringe o mercado de ônibus, reduz em três vezes o valor máximo das multas aplicadas, cancela a concessão de novos concorrentes e, pasme, anula sumariamente todas as sanções aplicadas até hoje pela ANTT, a Agência Nacional de Transportes Terrestres. Trata-se de um mimo de pelo menos 2 bilhões de reais para o setor. No pacote do acordão com o Planalto, há outras obscenidades. O senador indicou um assessor do próprio gabinete para dirigir a agência que fiscaliza as suas empresas. O escolhido de Pacheco para a ANTT é dirigente do DEM, não tem experiência na área e ainda é condenado por improbidade administrativa.

A indicação motivou a indignação de parlamentares, que acusaram Alcolumbre de “tratorar” o Senado em benefício do afilhado político. As reações, porém, foram em vão. O nome do indicado já passou pela Comissão de Infraestrutura. O projeto que fecha o mercado de ônibus, segundo especialistas e o próprio Ministério da Infraestrutura, é extremamente danoso aos consumidores, limita a concorrência e afeta moradores de cerca de 600 municípios, que poderão perder opções de transporte. Ainda assim, o texto foi aprovado em dois turnos no Senado e seguiu para a Câmara. Logo depois do presentão assegurado pelas costuras de Alcolumbre com o Planalto, o candidato do DEM à presidência do Senado oficializou o acerto com o governo.

A ata do Senado com o registro do lobby de Pacheco em causa própria
Como a sutileza é desnecessária nas negociatas do Congresso, o projeto 3.819/2020 teve como relator o senador Acir Gurgacz, do PDT. Herdeiro da Eucatur, empresa que tem uma das maiores frotas de ônibus do país, o parlamentar foi condenado a quatro anos e seis meses de cadeia pelo Supremo Tribunal Federal em regime semiaberto e, durante sete meses, teve que dividir o trabalho no Congresso com as noites na cadeia. Gurgacz foi condenado por desviar recursos de um financiamento concedido por banco público para a renovação da frota de sua empresa e, no final do ano, manobrou com Rodrigo Pacheco para conseguir aprovar o texto que também o beneficia.

O acerto foi confirmado pelo líder do governo, Fernando Bezerra, do MDB, durante a votação da proposta, no dia 15 de dezembro. Depois da inclusão extrapauta, sem nenhuma deliberação prévia, Bezerra apoiou a medida e explicou os motivos. “Essa foi uma negociação conduzida pelo senador Acir Gurgacz com a colaboração do senador Rodrigo Pacheco”, confessou o líder do governo, durante a sessão. “De fato, chegou-se a um acordo no texto desse projeto, em um compromisso do ministro Tarcísio (Tarcísio de Freitas, titular da Infraestrutura) de incluir esse texto no marco legal do transporte terrestre. E sairá uma resolução da ANTT no mês de janeiro”, anunciou Bezerra. Tarcísio e técnicos da ANTT se posicionaram duramente contra o projeto em todas as tentativas de pautar o texto em 2020 e enviaram notas técnicas ao Senado, com argumentos em prol da manutenção da abertura do mercado, promovida pelo próprio governo em outubro de 2019.

Pela proposta que passou pelo Senado, todas as 144 outorgas concedidas pelo governo a 42 empresas desde então serão anuladas. Se a Câmara mantiver os dispositivos, Tarcísio e os técnicos terão que abdicar de um projeto pensado para beneficiar os consumidores em troca de uma transação política da cúpula do governo.

Parlamentares ficaram perplexos com a manobra realizada por Alcolumbre para beneficiar Pacheco, com as bençãos do governo. Para o senador Eduardo Girão, do Podemos, houve uma “inclusão sorrateira” do projeto na pauta, à revelia de uma nota da consultoria do Senado, que indicou o risco de “instabilidades no mercado e prejuízos aos consumidores”. Já Fabiano Contarato, da Rede, disse nunca ter presenciado uma sessão como aquela. Para ele, o Senado foi “tratorado”. “Eu não tenho outra palavra para adjetivar essa conduta”, disse. Até a bolsonarista Soraya Thronicke criticou: “Isso tinha de ser discutido com mais parcimônia, com mais tempo, e não foi isso que nós combinamos, não é isso que nós queremos”.

Fechado com Pacheco, Alcolumbre ignorou os apelos e, em votação simbólica, rápida e sem nenhum debate técnico, aprovou o projeto. A proposta exclui de licitações todas as empresas que tenham capital social inferior a 2 milhões de reais. Em tese, o estabelecimento de um piso quanto ao capital social é uma medida legislativa desejável — visa a garantir que a concessionária venha a honrar as sus dívidas, como as tributárias e trabalhistas. Mudar o capital social de uma empresa é uma coisa simples, inclusive. No contexto do pachequismo, contudo, não deixa de ser curioso que o valor que consta do projeto seja justamente o do capital social da Viação Real, uma das empresas de transporte rodoviário da qual Pacheco é sócio, por meio de outra firma, a CH3 Participações e Empreendimentos.

Marcos Brandão/Senado FederalMarcos Brandão/Senado FederalAlcolumbre costurou o apoio do Planalto a Pacheco, que tem o PT a seu favor
Outro espetáculo indecoroso promovido a partir do acerto entre Pacheco e o Planalto foi a indicação do ex-deputado estadual mineiro Arnaldo Silva Júnior para a direção da ANTT. Assessor do gabinete do próprio Pacheco, Silva Júnior é presidente do DEM em Uberlândia. A lei que rege as agências reguladoras proíbe a indicação de dirigentes estatutários de partidos políticos e, portanto, a escolha é ilegal. Advogado, o funcionário de Pacheco é alvo de oito ações em tramitação no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, de acordo com relatório entregue por ele mesmo ao Senado. Em uma delas, foi condenado em primeira instância por improbidade administrativa. A contratação de seu escritório de advocacia por órgãos públicos como prefeituras e câmaras municipais, sem licitação, foi alvo de diversos questionamentos e o Ministério Público cobra a devolução de recursos aos cofres públicos por conta de irregularidades.

Habitualmente, as indicações políticas são feitas com reserva, mas o afilhado de Pacheco preferiu escancarar as articulações que o levaram ao posto. Durante sua sabatina na Comissão de Infraestrutura, o ex-deputado estadual fez um discurso elogionado o padrinho. “Quero aqui cumprimentar de forma muito especial o senador Rodrigo Pacheco pela indicação e confiança no meu nome. É um senador que tem honrado, pelo seu trabalho e pelos relevantes serviços à nação brasileira, aqui no Senado”, disse. A desfaçatez chocou os parlamentares que participavam da sessão. “Eu fico constrangida com a sua declaração de que foi indicado pelo senador Rodrigo Pacheco. Isso é o fim do republicanismo no Senado, uma indicação explícita e reconhecida para todo o Brasil. Não foi isso que Bolsonaro prometeu quando se candidatou à Presidência”, afirmou a senadora Kátia Abreu, do PDT. “Tenho 12 anos de Senado e nunca tinha visto uma declaração pública nesse sentido.

Caso seja aprovado pelo plenário, Arnaldo Silva Júnior terá, à frente da ANTT, a atribuição de definir regras de interesse de seu padrinho político. Só a empresa Ônibus Santa Rita, também ligada a Rodrigo Pacheco e familiares, tem 47 autos de infração em aberto na ANTT. Segundo a assessoria de imprensa da agência, os valores devidos são sigilosos.

Há mais. Em setembro, Rodrigo Pacheco apresentou um projeto de lei que beneficia empresas em dívida com o governo federal. A justificativa foi ampliar “a perspectiva de arrecadação da União no futuro próximo, o que será de absoluta necessidade para que o Brasil possa retomar o crescimento econômico”. A proposta de Pacheco permite a redução de até 100% dos juros e multas. Juntas, as empresas de ônibus ligadas ao senador têm dívidas que somam quase 1,4 milhão de reais. A Viação Real tem 29 débitos em aberto, entre dívidas previdenciárias e tributárias, em um total de 1 milhão de reais. A Santa Rita tem 36 contas atrasadas com a União e deve, no total, 380 mil reais mil reais. Ao contrário do texto que limitou a concorrência no setor de transporte, o projeto que facilita a vida de devedores da União não tramitou por conta da pandemia.

A própria ANTT apontava benefícios na abertura do mercado de ônibus, derrubada depois pelo Senado
Outra proposta apresentada por Pacheco cria facilidades para quem é dono de imóveis comerciais e empresariais. O texto fixa multas para quem devolver antecipadamente salas, lojas ou escritórios alugados. Em sua primeira declaração de bens entregue à Justiça Eleitoral, Rodrigo Pacheco declarou ser dono de um patrimônio milionário em imóveis comerciais. Ele afirmou à Justiça Eleitoral ter financiado 10 salas de escritório em um prédio de Nova Lima, na região metropolitana de Belo Horizonte, no valor de 3 milhões de reais, além de ter a propriedade de outros imóveis comerciais na mesma cidade, avaliados em 1,2 milhão de reais.

Uma parcela dos projetos apresentados por Rodrigo Pacheco desde os tempos de Câmara dos Deputados propõe benefícios corporativistas a advogados como ele. Uma das iniciativas prevê o fim da multa aplicada a advogados que abandonarem processos. O mineiro protocolou ainda uma proposta de criação da Frente Parlamentar da Advocacia no Senado Federal. Na justificativa, alegou que a profissão “é atividade que deve ser cercada de cuidados especiais”. O projeto está parado na CCJ da casa. Ainda na Câmara, ele tentou aprovar, sem sucesso, propostas que previam a autorização para contratação de estagiários que estiverem nos três últimos anos do curso de direto – hoje, a regra da OAB só libera a atuação de alunos nos dois últimos anos da faculdade. Pacheco tentou ainda emplacar a exigência de contratação de advogados para servidores que são alvos de processo administrativo disciplinar. Esse é o mercado com o qual os advogados sempre sonharam – de 2019 para cá, a CGU registrou a instauração de mais de 13,5 mil processos administrativos contra funcionários públicos. Uma súmula vinculante do Supremo estabelece que funcionários públicos que respondem sindicâncias não têm a obrigação de constituir advogado.

A pérola do corporativismo é uma iniciativa de Pacheco que altera o Código Penal e prevê que advogados, assim como os servidores públicos, também podem ser vítima de crime de desacato. Com isso, quem desrespeitar um profissional da advocacia no exercício da função fica sujeito a pena de detenção de até dois anos. “É inegável que o advogado exerce função equiparada à pública. Todavia, a jurisprudência de nossos tribunais, muito em razão de questões corporativistas, se nega a assentar que o advogado – assim como o juiz, o promotor de justiça ou o delegado – também pode sofrer desacato”, argumentou o senador.

Na corrida pela cadeira de seu parceiro Alcolumbre, Rodrigo Pacheco reuniu o apoio de oito partidos, além do DEM: PSD, PT, PP, PDT, Pros, PL, Republicanos, e PSC. Outras bancadas, como a do PSDB, estão rachadas, mas os prognósticos dão conta de que, a menos que aconteça uma reviravolta de última hora, Pacheco conseguirá os 41 votos necessários para levar a eleição. Sua adversária, Simone Tebet, do MDB, apoia as reformas e boa parte das pautas econômicas do governo, mas é vista pelo Planalto como muito independente. Partidos de esquerda, como o PT e o PDT, decidiram se posicionar contra Tebet e em favor do candidato de Bolsonaro porque a senadora tem boa relação com o movimento Muda Senado, que apoia a Lava Jato. Se eleito, Pacheco terá a missão de seguir os passos de seu antecessor, barrando processos disciplinares contra os colegas, como Flávio Bolsonaro, e mantendo na gaveta todo e qualquer pedido de impeachment de ministros do Supremo ou do procurador-geral da República. Um acordo bem conveniente às autoridades dos três poderes, incluindo boa parte dos senadores que vão às urnas no próximo dia 1º. A expressão pachequismo, nascida de um personagem de Eça de Queiroz para definir atitudes e comportamentos tão pomposos quanto medíocres, nunca se encaixou tão bem a uma excelência da República.

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