MarioSabino

Barroso, sem data venia

22.01.21

Há ministros do STF que nos brindam com censura, calúnia e difamação na imprensa e ameaças telefônicas; Luís Roberto Barroso nos brinda com um livro: Sem Data Venia — Um Olhar sobre o Brasil e o Mundo. Como cidadão italiano, eu teria motivo para não gostar do ministro que, como advogado, defendia o terrorista Cesare Battisti, finalmente extraditado para cumprir pena na Itália, depois de anos de dolce vita proporcionados por Lula. Uma vez na prisão, Battisti confessou os seus crimes. Mas se eu fosse não gostar de Barroso por causa disso, eu deveria odiar a França, porque foi lá que Battisti ganhou o primeiro abrigo. Até entendo: advogados gostam de reptos e, como essa foi a única causa criminal do advogado Barroso, deve ter sido uma experiência realmente desafiadora.

Espero que o pequeno reparo me livre da pecha de bajulador. No Brasil, jornalista só pode falar mal de autoridades, visão distorcida que também ajudei a alimentar ao longo da minha carreira. Existe atenuante: é que os elogios no Brasil dificilmente são gratuitos. Como adquiri o direito de dar de ombros para quem me ataca, declaro aqui que admiro cada vez mais o ministro Barroso. Para respeitá-lo, não preciso concordar com todos os seus votos — invariavelmente feitos em português, língua pouco utilizada no STF — e as suas convicções. O fato de ter sido indicado por Dilma Rousseff me fez olhá-lo com desconfiança no início (para não falar do caso Battisti), mas ela foi se dissipando com o tempo. E eis que estou a rasgar seda para ele.

É seda bem rasgada. Sem Data Venia revela um cidadão apaixonado pelo Brasil, qualidade que não faz parte do meu minúsculo rol, e um homem perplexo. A perplexidade pode ser paralisante, mas no caso de Barroso movimenta a reflexão. O bom juiz é aquele que julga com a consciência de que, em boa parte das vezes, os seus veredictos são uma escolha a outra que poderia ter sido feita de maneira igualmente legítima — fato que não o deixa, contudo, parado diante das bifurcações ou o leva a tomar o caminho mais fácil. Barroso é um bom juiz, devem reconhecer até os que discordam dele. O homem estuda de verdade. Ao defender a legalização do aborto, por exemplo, ele usa do imperativo categórico de Kant (moral despida de conceitos religiosos ou ideológicos) para justificar a sua posição: toda pessoa é um fim em si mesma, e não um meio para a realização de projetos alheios ou da sociedade, como resumiu. Diz Barroso:

Se adotarmos essa premissa ética, a resposta é relativamente simples: se o feto não tem como se desenvolver por conta própria — e enquanto assim for —, se ele depende inteiramente do corpo da mãe, há de ser dela a decisão final. Do contrário, a mãe terá deixado de ser um fim em si mesma e passado a ser um meio para a realização de projeto alheio. Tal constatação não retira a possibilidade de se discutir o mérito da decisão da mulher. Mas, inequivocamente, estabelece que a decisão é dela.”

A depender do assunto, escolhas puramente morais às vezes resultam em contradição, com o mesmo argumento válido para uma anulando uma segunda proposição do mesmo campo de concepçōes. O imperativo categórico utilizado por Barroso para justificar o aborto pode ser usado para manter a eutanásia na ilegalidade, acredito, o que vai de encontro ao pensamento mais à esquerda em assuntos de vida e morte. A decisão familiar de dar um fim à agonia de um doente terminal não seria utilizá-lo como meio para realização de projeto alheio, sob a justificativa de que se está fazendo um bem ao moribundo? Quem mais seria capaz de decidir se um doente terminal é um fim em si mesmo, senão ele próprio? Curiosamente, o imperativo categórico de Kant coincidiria aqui com a moral cristã — e logicamente deveria levar a quem defende a interrupção da gestação a ser contrário à eutanásia.

Discussões filosóficas à parte, Barroso fez uma escolha essencialmente moral sem banalizar o aborto ou desprezar a visão religiosa a respeito do tema. Ele próprio nutre sentimentos religiosos, criado entre o judaísmo materno e o catolicismo paterno. Sentimentos que se avivaram depois de ter sido diagnosticado com um câncer no esôfago, em 2012. Saiu da luta mais espiritualizado e incluiu a meditação na sua rotina diária (invejo-o por isso e também por ter sido campeão de vôlei e passado em primeiro lugar em todas as provas que prestou, como ele conta no livro).

Em Sem Data Venia, Barroso se debruça por uma miríade de assuntos que frequentam a pauta do STF. A corrupção, por exemplo, é considerada pelo ministro “crime violento, praticado por gente perigosa”. Não é preciso chegar a Kant para concordar plenamente com ele. Mas é preciso ser um Gilmar Mendes para não concordar. No capitulo dedicado ao tema, Barroso usa como epígrafe uma frase de Millôr Fernandes que resumiria a situação atual (e passada, e futura, embora o ministro seja um otimista). A frase é: “A situação é tão indigna, que mesmo pessoas sem nenhuma dignidade já estão ficando indignadas”. Barroso acredita que o sistema político brasileiro é uma das causas da corrupção sistêmica, com “eleições excessivamente caras, com baixa representatividade dos eleitos devido ao sistema eleitoral proporcional em lista aberta, e que dificulta a governabilidade”. São palavras mais ouvidas da boca de procuradores da Lava Jato do que de ministros do STF.

De maneira elegante, sem deixar de ser contundente, Barroso critica a reação do que chama de pacto oligárquico em oposição à maior operação anticorrupção da história brasileira. Há, para ele, dois grupos poderosos que atuam contra a Lava Jato: “o dos que não querem ser punidos e o dos que não querem ficar honestos nem daqui para a frente”, uma ótima frase de qualquer ângulo que se olhe. Afirma o ministro:

“A articulação para derrubar a possibilidade de execução das condenações criminais após a segunda instância foi o momento mais contundente da reação, logrando obter a mudança de posição de dois ministros do Supremo Tribunal Federal que, antes, haviam sido enfaticamente favoráveis à medida. A orquestração de ataques aos juízes e procuradores da Lava Jato também reuniu diferentes correntes políticas. Em chocante distorção, o fato de o juiz ter referido uma testemunha à acusação — e, se fosse de defesa, deveria tê-la referido aos advogados — trouxe mais indignação que o apartamento repleto com 51 milhões de reais, a devolução por parte de um gerente de empresa estatal de mais de 180 milhões desviados ou o deputado correndo na rua com a mala da propina.”

A situação, portanto, está longe de ser aquela em que as pessoas sem dignidade já estão ficando indignadas com tanta indignidade, infelizmente. A epígrafe está mais na esfera do desejo do que o da realidade.

Para Barroso, o sistema político ideal seria aquele no qual o presidente da República seria eleito por voto popular, com competências importantes de estado, mas isento da responsabilidade pelo varejo da política. O varejo da política seria atribuição de um primeiro-ministro eleito pelo Congresso — não necessariamente um parlamentar. Aos que, como eu, acham que o Brasil não tem mesmo jeito, só jeitinho, ele acredita que “as pessoas e as instituições tendem a se elevar quando investidos de maior responsabilidade e maior visibilidade”. Como sou simplório, continuo a acreditar que o sistema político ideal no Brasil continua a ser cadeia rápida, independentemente da moldura do quadro.

O ministro é criticado por ser adepto do ativismo judicial. Ele confirma mais uma vez a sua fé, estabelecendo uma diferença entre a judicialização, “produto de um ordenamento jurídico que facilita bastante o acesso relativamente barato ao Poder Judiciário para discutir qualquer direito ou pretensão”, e o ativismo em si, que seria uma atitude: “designa um modo proativo e expansivo de atuação, produzindo resultados não expressamente previstos na Constituição ou na legislação. O contrário do ativismo é a autocontenção”. Barroso defende o ativismo da seguinte forma:

“Em linha com as ideais que defendo, o Judiciário deve ser autocontido quando estejam em discussão temas referentes à economia, à Administração Pública e a escolhas políticas em geral. (…) De outra parte, temas envolvendo direitos fundamentais (como liberdade de expressão, liberdade religiosa, proteção de minorias), ou defesa da democracia (impedir o prolongamento de um modelo de financiamento eleitoral que gerou sucessivos escândalos de corrupção) podem legitimar um comportamento mais ativista.”

Dentro da minha simplicidade incancelável, vejo alguns problemas aí. A decisão do STF de considerar, por analogia, homofobia como crime de racismo é heterodoxa demais para os meus parcos conhecimentos jurídicos. Deveria ser matéria do Legislativo. E tendo a crer que foi o ativismo a propiciar que ministros se sentissem à vontade para conceder habeas corpus de ofício a um notório criminoso, além de instaurar, igualmente de ofício, um processo sigiloso em que o juiz investiga, prende, julga e condena, sem a participação do titular da ação penal, o Ministério Público. Foi no âmbito desse inquérito que a Crusoé e O Antagonista foram censurados e me vi outra vez à frente de um delegado da Polícia Federal, o arbítrio sendo perpetrado em nome da defesa da democracia. Acho que um grande passo civilizatório seria seguir estritamente a Constituição, o que nada tem a ver com a ficção reproduzida pela imprensa dos “ministros garantistas”— as garantias, aqui, são apenas da jurisprudência de ocasião.

É extraordinário que se possa contar com um ministro com o preparo intelectual de Barroso. Com a honestidade intelectual de Barroso. Sem Data Venia é livro de professor dedicado, preocupado em fazer-se entender nas suas próprias preocupações com o Brasil e o mundo. Ele propõe três pactos — o de integridade, o de responsabilidade fiscal, econômica e social e o pela educação — para sair da enrascada permanente na qual o país se meteu. É um otimista de extração anglo-saxônica, eu diria. Conclui Barroso: 

“O que nos cabe fazer é empurrar a história na direção certa e servir à causa da humanidade, buscando justiça e prosperidade para toda a gente. Não custa lembrar: a ditadura militar parecia invencível. A inflação parecia invencível. A pobreza extrema parecia invencível. Já vencemos batalhas impossíveis anteriormente. E para os momentos de maior desencanto, compartilho aqui o meu slogan pessoal, que me traz paz interior e conforto espiritual. ‘Não importa o que esteja acontecendo à sua volta: faça o melhor papel que puder. E seja bom e correto, mesmo quando ninguém estiver olhando’.”

Se é para rasgar seda, rasgo até o fim, sem data venia: brindem os seus alunos com o livro de Barroso, escolas. Adotem como leitura. Enseja discussões produtivas e, apesar das minhas rabugices, até eu saí acreditando que há luz no final do túnel superfaturado. A crença só vai durar até a próxima fala de Bolsonaro, mas já é alguma coisa.

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