Zô Guimaraes/Folhapress"Eu sou um cidadão brasileiro, que paga seus impostos, que quer um país melhor, que sonha com educação melhor"

‘A realidade depende de bom senso’

O ator Tony Ramos critica a postura do governo Jair Bolsonaro na reação à pandemia e se diz horrorizado com a onda de fake news e obscurantismo
22.01.21

Tony Ramos, 72 anos, nunca declarou seus votos ou subiu em palanque político. À diferença de colegas que saíram às ruas para defender o impeachment de Dilma Rousseff ou que se notabilizaram pela proximidade com o PT, o veterano astro da Rede Globo sempre preferiu a discrição. Por vezes, foi torpedeado pela classe artística por ficar “em cima do muro”, o que ele rechaça com veemência: “Me posiciono muito, sempre. Só não me posiciono em palanque. Nunca fui filiado a partido político, nunca fui a um comício”. Embora evite manifestar suas preferências eleitorais, o ator não se furta a exercer o direito à crítica. Ele se diz horrorizado com a onda de fake news e obscurantismo que varre parte do mundo e o Brasil – e que nem mesmo na tragédia da pandemia dá folga, com extremistas espalhando falsidades sobre as vacinas, por exemplo.

(O vírus) é algo desconhecido e assustador. A quem tem a coragem de dizer ‘não me assusta’, eu digo: ‘Meu Deus, que gente corajosa!’.” Tony Ramos tem medo da doença. Ele se mostra preocupado, especialmente, com a saúde da mãe, de 91 anos, e de um filho, cirurgião cardiovascular, diariamente exposto ao vírus nos hospitais. Em agosto, o ator perdeu um primo por complicações da doença. Sobre a postura de Jair Bolsonaro, que em inúmeros pronunciamentos questionou a eficácia e a segurança das vacinas, Tony Ramos diz: “Eu lamento essa posição do presidente. Lamento muito. Ele foi eleito pelo voto, isso é democracia. Mas ele é funcionário do povo e não deve decidir com base em seu gosto pessoal. Tem que conversar com a ciência e ver o que é fundamental para uma nação”. “Sejam bem-vindas, vacinas. Aos que pregam o negacionismo e se posicionam contra a vacinação, a minha tristeza. É o mínimo que eu posso dizer.

As críticas se estendem às iniciativas do governo federal na área cultural. Tony Ramos classifica as políticas bolsonaristas para o setor – ou a falta delas – como “um terror”. E afirma que os ataques constantes contra a Lei Rouanet são um “um discurso mixo, burro, velho e mal informado”. Na entrevista a seguir, Crusoé propôs ao ator um exercício: imaginar como seria o diálogo entre alguns de seus célebres personagens e Jair Bolsonaro. O ator pensou em como seriam conversas do presidente com Getúlio Vargas e com Riobaldo, o narrador do clássico Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, mas fez uma ressalva: nada pode ser tão dramático quanto a realidade. “A realidade é acachapante, ela depende sempre de bom senso.” Eis a conversa:

O Brasil já registra mais de 210 mil mortos pela Covid-19 e enfrenta o caos gerado pela doença, como a situação da falta de oxigênio em Manaus. Como tem enxergado o combate à doença no país?
Como eu trabalho ininterruptamente com teatro, cinema e televisão há 57 anos, aprendi com o tempo que os artistas, como nos chamam, são sempre convocados a opinar sobre tudo. Eu não vou opinar sobre a Nasa, porque eu não entendo nada de física quântica, muito menos de matemática. Mas essa pergunta que você faz diz respeito ao cidadão Antônio (seu nome é Antônio de Carvalho Barbosa). Antes de ser essa figura pública e conhecida como Tony Ramos, eu sou um cidadão. Uma pessoa que tem 72 anos, que tem as preocupações das mais diversas com trabalho, com sobrevivência, com o país, com os sonhos, com os filhos, netos. Já tenho um neto de 21 anos que está na faculdade e fico pensando que futuro haverá para esse rapaz. As mais diferentes preocupações habitam a minha cabeça. É claro que a situação da Covid é absolutamente desesperadora. Com essa tendência de simplificar o vírus, eu fico ainda mais horrorizado. Eu não tenho redes sociais, nunca tive e não vou ter, por uma questão de perfil pessoal. Leio muito meus livros, meus jornais. Nada contra redes sociais, mas, como não tenho, vivo muito dos editoriais de jornais, dos telejornais, de programas de rádio, de conversa com amigos, com cientistas, com meu filho, que é cirurgião cardiovascular, super exposto ao vírus. Faço esse preâmbulo para que eu possa me situar frente à Covid. É algo desconhecido e assustador. A quem tem a coragem de dizer “não me assusta”, eu digo: “Meu Deus, que gente corajosa!”. Ao mesmo tempo, não quero ficar paranoico e enlouquecer, não quero deixar de viver, de trabalhar, de alimentar os meus sonhos. Estou esperando ansiosamente pela vacina, não vejo a hora de ser convocado a tomar, pela idade. Quanto mais pessoas vacinadas houver, mais rebanho protegido haverá.

O sr. sempre foi muito comedido nos posicionamentos de cunho político. O que mudou?
Me posiciono muito, sempre. Não me posiciono em palanque. Nunca fui filiado a partido político, nunca fui a um comício. “Então o senhor está em cima do muro?”, me perguntam. Não, eu sou um cidadão brasileiro, que paga seus impostos, que quer um país melhor, que sonha com educação melhor, que sonha com criança ocupada de 7h30 às 16 horas com esportes, com artes. Nos Estados Unidos, cada escola tem teatro, tem peças musicais. Então é possível, basta ter vontade política. Eu não fujo de nada e hoje eu posso dizer que o que eu mais anseio para a minha nação é a vacinação em massa. Eu não entendo essa briga política, qual (vacina) vale, qual não vale. Isso só provoca desinformação. Nossa família perdeu um querido primo para a Covid no mês de agosto. Então, nós sabemos bem. Eu sei a dor das famílias e sei as dificuldades que nos cercam.

De que forma a classe artística pode contribuir para atenuar os efeitos da onda de fake news sobre a Covid-19 e sobre as vacinas?
Estou fazendo aqui a minha manifestação. Não estou esperando a minha classe se manifestar. Eu aqui, em voz alta, digo: não acredite em notícias falsas, não acredite em movimentos que tentam desacreditar a vacina. Sem confiança nas vacinas, não teríamos conseguido o que conseguimos com o sarampo, com a poliomielite. Eu sempre tomo vacina para a gripe e, agora, estou esperando a vacina contra a Covid. Não vou esperar a classe artística se manifestar. Já me manifestei abertamente, publicamente, dizendo: vacinem-se. Sejam bem-vindas, vacinas. Aos que pregam o negacionismo e se posicionam contra a vacinação, a minha tristeza. É o mínimo que eu posso dizer. Por que negar a ciência? Alguns dizem: “Ah, mas eu sou religioso”. Eu também sou! Atrás de mim, tem uma estátua de São Miguel Arcanjo. E me respeitem na minha religiosidade, assim como eu respeito quem é ateu. Mas a minha religiosidade cobra de mim bom senso, cobra responsabilidade e raciocínio.

A politização do debate sobre a vacina, com disputa de protagonismo entre o governador de São Paulo, João Doria, e o presidente Jair Bolsonaro, contribuiu para esse cenário de descrédito? Houve falhas na comunicação?
Dos dois lados. E falo da forma de realizar a comunicação, da forma com que se comunicam com o povo. Tudo isso atrapalha. Quando começam a ter notícias falsas, temos o dever de ouvir a ciência. Ninguém, nenhum leigo, nenhum achista de plantão sabe mais do que a ciência. E a própria ciência busca respostas para aquilo que ela não entendeu. Mas ela já concluiu há muito tempo que a saída é vacinar. Como foi nos casos do sarampo, da poliomielite, da caxumba. As pessoas se esquecem do que aconteceu com a gripe suína? É só voltar e fazer esse raciocínio. Eu não preciso esperar uma classe se manifestar, eu faço as minhas manifestações. Democracia é um exercício difícil para muitos. Por isso, é fundamental para mim a ciência, é fundamental que governos corram atrás de um discurso único, dizendo que é preciso que todos se protejam, que todos se vacinem, mostrando quem será vacinado primeiro, médicos, enfermeiros, pessoas que pesquisam sobre o assunto, asilos, professores. Isso seria um movimento em prol de uma nação.

Ricardo Borges/FolhapressRicardo Borges/Folhapress“O que eu mais anseio para a minha nação é a vacinação em massa. Eu não entendo essa briga política”
Mas aqui o presidente da República tem um forte discurso anticiência e questiona frequentemente a vacina.
Eu lamento essa posição do presidente. Lamento muito. Foi eleito pelo voto, isso é democracia. Mas ele é funcionário do povo e não deve decidir com base em seu gosto pessoal. Tem que conversar com a ciência e ver o que é fundamental para a nação.

No final da ditadura, o sr. apoiou as Diretas Já. Nos últimos dois anos, brasileiros voltaram a temer um novo golpe. Acredita que a democracia no Brasil esteve ou está em risco?
Não temo pela democracia. E, agora, o mundo teve uma resposta a essas ameaças, com o caso americano do senhor Trump e da negação dele com relação às eleições. O voto pelo correio é algo adotado nos Estados Unidos há mais de 50 anos. O que quero dizer é que em nenhum momento eu coloco em dúvida a democracia. Há muita gente nas Forças Armadas, já vi entrevistas em que dizem que é fundamental uma democracia plena, onde cada um possa cumprir com o seu dever, nas suas áreas. É por isso que não faço discurso político em palanques, porque quero ter a liberdade de ação sem rabo preso e quero poder cobrar. Não preciso votar pela idade, mas faço questão. Quero exercer a minha cidadania porque acredito neste país. É possível melhorar muito, basta vontade política. Agora, o que quero é que o governo se manifeste em benefício da saúde. Não se pode negar a ciência que deu certo. Você pode discutir aquilo que deu errado. Ninguém tem o direito de dizer, dirigindo-se ao país: “Eu não vou tomar (vacina), portanto não tomem”. Eu acredito muito em Deus. Para mim, ele não tem rosto, nem corpo, tem uma energia muito forte. Nem por isso, perante meu Deus, que eu amo, eu vou negar a ciência. Eu peço a Deus que abençoe as mentes e mãos dos cientistas.

O sr. não costuma declarar voto, mas toparia dizer quem foi seu escolhido em 2018?
Nunca faço declaração. Nem antes, nem depois das eleições. Não quero induzir ninguém. Basta que eu vá lá e vote. Fui votar na última eleição, de máscara, e todo mundo perguntava: “Tony Ramos, vai votar em quem?”. Eu respondia: “O voto é secreto”. Isso quer dizer que estou criticando amigos e colegas que têm uma atividade partidária? É evidente que não, acho louvável, acho muito bonito, mas quero ter essa independência de votar, de pensar, e por isso que eu sou muito respeitado, porque eu respeito cada pessoa no seu modo diferente de pensar. É assim que eu vejo a vida e assim que eu fui ensinado. Sou um homem que acredita no respeito ao próximo, na liberdade do ir e vir e do pensar, mas peço que eu seja respeitado no meu jeito de ser e de pensar.

Como o sr. avalia a política cultural do atual governo?
Há muitos anos as políticas são muito ruins. Mas, agora, está um terror, um horror. Aí botam a culpa na Lei Rouanet e dizem: “Esses artistas ficam todos ricos com a Lei Rouanet”. Repetem um discurso mixo, burro, velho e mal informado. Se alguém usou Lei Rouanet a seu bel-prazer sem prestar contas, que cobrem dessa pessoa, seja quem for. Quando vêm hordas de pessoas falando de um novo filme argentino maravilhoso, quantas delas prestam atenção nos créditos? Quando começa um filme argentino, você tem a bandeira da Argentina, e não é de hoje. Há anos é assim: “Cine argentino”, “apoyo del ente estatal”. Almodóvar, quando faz um filme na Espanha, aparece: “El ente de Cataluña presenta”, “El ente estatal de España presenta Pedro Almodóvar”. As pessoas acham que é só abrir o celular, virar na horizontal e fazer um filminho. Não é isso. É muito ruim quando é feito assim, aliás. De qualquer forma, tem renúncias fiscais nos EUA para teatro, para cinema. Eu leio sempre créditos quando vou ao cinema, e é comum ver referências ao apoio do escritório de cinema de Chicago, de Boston. Então, tem que vir do governo, porque isso é divisa. Você tem que apoiar. Querem discutir esse apoio, rediscutam, chamem chefes de produção, grandes dirigentes que temos na área da cultura. Tem que dar apoio. Ao circo, por exemplo, que está morrendo – e é lindo ir ao circo no sábado à noite ou no domingo de manhã. Quais ajustes precisam ser feitos? Não sei, não sou legislador, não sei como comandar isso, assumo minha incompetência. Falo como cidadão e ator.

Ricardo Borges/FolhapressRicardo Borges/Folhapress“Lamento essa posição do presidente. Ele é funcionário do povo e não deve decidir com base em seu gosto pessoal”
A atriz Regina Duarte assumiu a Secretaria de Cultura do governo Bolsonaro ano passado e foi demitida dois meses depois. Como viu esse episódio?
Vi com muita tristeza, tanto pelo resultado, como por ela. É uma ótima pessoa, uma querida colega de trabalho, tem uma história linda na TV brasileira e no teatro. Eu prefiro dizer só isso. Não é corporativismo, mas só consigo dizer isso, é a única palavra que encontro: triste. Como fico triste também agora. Não vejo nada acontecer na cultura no Brasil.

A Secretaria de Cultura do governo Bolsonaro é ocupada pela chamada ala ideológica, com discípulos de Olavo de Carvalho em cargos estratégicos. De que forma isso pode comprometer os resultados?
A cultura se impõe pelo povo, tudo é cultura. Você vê um forró em praça livre, um dueto de repentistas do Nordeste, isso é cultura, é lindo. Assim como você ver um Shakespeare ou um Ariano Suassuna montado é cultura. Agora vejo nomeações, como sempre vi, para agradar a áreas políticas. É uma pena. Sempre acreditei que seria possível nomear pessoas absolutamente preparadas e com um currículo cultural e intelectual. E não falo necessariamente de alguém sofisticado na cultura, que saiba tudo sobre Villa-Lobos e Beethoven no primeiro mês. Precisamos de pessoas técnicas, e há vários servidores qualificados que podem cuidar da cultura. A Cinemateca de São Paulo, por exemplo, tem que ser entregue a um grande homem, a uma grande mulher de cinema, a um grande técnico. E se essa pessoa começar a ter uma postura protecionista com relação a um determinado grupo, cabe ao cidadão cobrar. O bonito é quando você entende todas as vertentes da cultura. Isso acontece em museus no mundo inteiro. Uma das coisas mais bonitas na França é ver semanalmente as escolas levando as crianças para aulas nos museus. Isso não é ideologia. É cultura.

Se o sr. pudesse imaginar um diálogo entre um dos personagens da sua carreira com o presidente Jair Bolsonaro, quem protagonizaria essa conversa e como ela seria?
Eu poderia propor uma conversa de Getúlio (Vargas) com o nosso presidente atual, mas o diálogo seria complicado. Porque Getúlio ia a teatros, adorava música, apesar de ter sido um ditador, depois eleito pelo povo. Li todas as cartas, todos os diários, e você via o entusiasmo dele com a arte. Ao mesmo tempo, na época da ditadura, ele foi terrível em outras coisas. Com Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, do nosso Guimarães Rosa, seria um papo interessante também. Riobaldo tinha uma lucidez que ele próprio desconhecia algumas vezes. Antes do ódio, antes da raiva, todo chefe político deveria definir como ele quer passar para a história e saber que não tem bandidos do lado de lá, tem pessoas que pensam diferente. Mas a verdade absoluta é que não se deve misturar ficção com realidade. A realidade é acachapante, ela depende sempre de bom senso. O que eu pediria a todos, sempre, e não apenas ao presidente da República, é bom senso. E que nós tenhamos sempre a ciência como nosso norte. Ela é fundamental.

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