Romério Cunha/PR"Se esperar, na inércia, o teto vai cair em cima de todos nós"

Perdidos na ‘não decisão’

Para o ex-governador Paulo Hartung, em razão dos estragos da pandemia o Brasil viverá neste 2021 uma "eternidade" que definirá o futuro não só da economia, mas também da política
15.01.21

Este ano de 2021 será crucial não só para a economia brasileira, mas também para a definição do futuro político do país. Para o veterano Paulo Hartung, conselheiro de pesos-pesados do PIB nacional e mentor de um dos pretendentes à disputa pelo Palácio do Planalto no próximo ano, o apresentador Luciano Huck, os próximos meses serão “uma eternidade”, em razão ainda dos efeitos da pandemia e da relação descoordenada entre o governo federal, Judiciário e Congresso. Exatamente por isso, deverão definir o que será do Brasil no médio e longo prazos.

Frequentemente festejado como um quadro competente do espectro político de centro, o ex-governador do Espírito Santo, de 63 anos, diz que o cenário complicado exige que as lideranças políticas imponham uma direção ao país e ampliem o diálogo com a sociedade. Cercando-se de cuidados para não fulanizar as críticas, embora fique evidente que a maioria delas é dirigida ao governo de Jair Bolsonaro, Hartung afirma que o país atravessa um momento de “paralisia e de não decisão”. “Os sinais já estão em cima da mesa. Se esperar, na inércia, o teto vai cair em cima de todos nós.” Sobre a sucessão em 2022, ele não arrisca prognósticos, defende que é preciso esperar o cenário desanuviar para apontar tendências e faz um alerta: quem se apressar pode ter seus planos eleitorais frustrados, e quem perder o timing certo dará com “os burros n’água”. Eis a entrevista:

Quais são os principais desafios para a política brasileira a partir deste ano?
O país vem em uma trajetória para tentar ancorar o seu grande endividamento público. Eu citaria aí duas medidas importantes: o teto dos gastos e a reforma da Previdência. Essas duas medidas deram uma perspectiva de médio prazo de ancoragem do endividamento do país antes da pandemia, que estava em 76% do PIB. Nós vínhamos percorrendo um caminho correto. Mas a pandemia trouxe demandas que tinham que ser atendidas. A única saída que existia era o distanciamento social, que, grosso modo, desliga a economia. Ao desligar a economia, algumas tarefas tinham que ser endereçadas. A primeira delas era a saúde, o SUS precisava ser reforçado, precisava de dinheiro. O outro desafio, que em nosso país é muito grave, a informalidade, precisava de cobertura a esses 42 milhões de brasileiros que ficaram sem renda do dia para a noite. Além de fazer políticas para manutenção do emprego, acesso a crédito e assim por diante.

A quem cabe coordenar isso?
O Brasil está atravessando de uma maneira descoordenada esta crise, na relação entre o Executivo, o Legislativo, Judiciário e os entes subnacionais. Temos, desde o início da pandemia, uma relação descoordenada entre o Executivo nacional, o Judiciário, as duas casas do Congresso e os entes subnacionais. O país vai sair muito endividado desse processo, algo em torno de 100% do PIB. Vai sair com um nível de desemprego alto. Nós estávamos com 12 milhões de desempregados no início da crise, o que já era grave, e agora passamos de 14 milhões. Já havia problemas crônicos, como o investimento público e privado muito baixo nos últimos anos, o crescimento medíocre depois da recessão de 2015 e 2016. A tarefa agora é se reorganizar. Essa é a palavra de ordem. Isso já deveria estar sendo feito.

Por onde começar?
Primeiro é preciso fazer uma ancoragem do endividamento monumental que o país passa a ter. A segunda coisa a endereçar é um programa de transferência de renda. É claro que há empresas que fecharam (na pandemia) e não reabriram, e é claro que será preciso ampliar o programa de transferência. Para fazer isso, só tem um jeito: buscar dinheiro nos programas ineficientes que existem no Orçamento da União, pegar o dinheiro desses programas e transferir para o Bolsa Família, que é um programa exitoso. O terceiro passo importante é melhorar o ambiente de negócios do país e a segurança jurídica. Um exemplo é do novo marco regulatório do Saneamento. Um sucesso. É sinal de que, se melhorarmos os marcos regulatórios e a segurança jurídica no país, temos capacidade de atrair investimentos nacionais e internacionais em rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, energia, telecomunicações. O Brasil tem fragilidades, a infraestrutura é uma delas, e pode virar oportunidade, se a gente tiver bom ambiente de negócios. A quarta questão que precisamos endereçar é a economia verde. Temos a maior floresta tropical do mundo, a maior biodiversidade do mundo. O mundo caminha na discussão climática. Isso abre um janelão de oportunidades para o Brasil desenvolver na economia verde. Estamos perdendo tempo. Em algum momento do segundo semestre de 2020, nós deveríamos ter começado a andar nessa direção. Infelizmente estamos parados, perdendo tempo, e muitos líderes do país acham que a solução vem por combustão espontânea. Não virá.

O sr. enxerga algum movimento nesse sentido?
Ou se lidera o país em uma direção conversando com a sociedade, ou nós vamos viver um 2021 de desorganização crescente. Os sinais já estão em cima da mesa: juros futuros subiram, endividamento encurtou, o câmbio chegou a um ponto estonteante, com a moeda mais desvalorizada do mundo, a inflação de alimentos já começa a contaminar outros setores. Se esperar, na inércia, o teto vai cair em cima de todos nós. O Brasil já viu isso, e nós estamos correndo o risco de repetir um rumo que já vivenciamos.

O sr. diz que falta liderança ao país. É esse o principal diagnóstico do governo Bolsonaro?
Na minha atividade pública e privada nunca tropecei na precipitação. Para fazer análise de governo é preciso que você deixe o governo percorrer o seu caminho. O que eu tenho que fazer agora é, com a experiência que eu tenho, colocar na mesa boas ideias. Eu nunca fulanizei debates. A experiência nos mostra que, quando algo não está indo bem, a ficha pode cair e é possível recuperar ali na frente.

Reprodução/TV VitóriaReprodução/TV Vitória“Estamos em um momento de não decisão, que é a pior decisão que poderíamos tomar”
O governo pode se recuperar até 2022, ano das próximas eleições presidenciais?
Eu acho que nós não podemos nos fixar nas próximas eleições porque elas estão muito longe. É uma eternidade. Este ano de 2021 será uma eternidade para o mundo, que vai começar a sair da pandemia, e para o Brasil, porque o país tem as suas peculiaridades e sai muito frágil dessa crise. Nós precisamos, no debate político, tentar bons caminhos para isso. Eu não acho que as avaliações hoje têm muito valor de fato. O governo está no meio do mandato, pode consertar a política. Tem muito chão pela frente, e o que nós precisamos é tentar acertar o passo. Eu estou preocupado com a paralisia, com a inação, que acaba nos levando para o descaminho.

A quem o senhor dirige essas críticas, então?
Para a sociedade. Precisamos mobilizar a sociedade e ter clareza do que precisa ser feito no país. Essa é a grande sacada que nós precisamos ter. Vou lhe dar um exemplo da atualidade. Quando a criminalidade ganhou muito peso na região amazônica nos últimos tempos, causando impacto na imagem do nosso país, foi feito um movimento de CEOs de empresas. Pela primeira vez, os CEOs aceitaram colocar a cara na reta e fazer não um movimento de oposição, mas sim um documento propositivo, colaborativo, mostrando os caminhos que o país deveria percorrer para resolver esse problema. Foi uma coisa diferente, vinda da sociedade, que redirecionou o debate.

O atual Congresso será capaz de levar as reformas adiante até o final dessa legislatura?
O Congresso demonstrou uma atitude na reforma da Previdência, que, na minha opinião, é irretocável. A reforma da Previdência não foi além porque a própria liderança do governo criou exceções para os militares. Ela poderia ter interrompido também privilégios para grupos de funcionários. Esse Congresso deu uma demonstração de viés reformista. É preciso que haja uma concertação na sociedade, como a que foi alcançada na Previdência. A sociedade, em determinado momento, se convenceu de que era importante para a economia do país. É esse trabalho que precisa ser feito: olhar no fundo do olho da sociedade e explicar, convencer, mobilizar, motivar.

Esse ímpeto reformista não se perdeu entre os parlamentares?
Acho que pode se perder. Você está certo. Vai depender da capacidade da sociedade civil se movimentar, da capacidade do governo federal se movimentar. Estamos em um momento de não decisão, que é a pior decisão que poderíamos tomar. Esse momento de paralisia é a pior decisão. Chegamos ao final de 2020 sem o Orçamento aprovado para o ano seguinte. Isso aí não é o problema em si, mas é sintoma do tamanho do problema que nós estamos vivenciando. O papel de todos nós que temos alguma liderança é induzir o país aos rumos que nós acreditamos que devemos tomar.

Olhando para esse cenário e para as eleições de 2020, é possível afirmar que a população cansou do debate entre extremos?
Existe um sinal de que a política, mesmo com suas fragilidades, voltou a ter relevância para o eleitor. Mesmo com o sistema eleitoral ruim que nós temos, mesmo com o sistema partidário muito gelatinoso – os partidos não têm programa, não têm fisionomia, não faz nenhum sentido termos 33 partidos –, com tudo isso a eleição municipal colocou o protagonismo na política. Gestores experientes foram trazidos de volta. Acho que é um sinal antiextremismos. É indiscutível que essa eleição fortaleceu o centro político, como nas vitórias de Sebastião Melo em Porto Alegre, de Bruno Covas em São Paulo e do (Eduardo) Paes no Rio de Janeiro. A esquerda, que tinha no primeiro turno um sinal de enfraquecimento, ganhou um sinal novo. A liderança do Boulos, na minha opinião, é uma coisa forte e sinaliza uma reciclagem do campo da esquerda tradicional. Não estou fazendo juízo de debate político, mas há um personagem novo que ganhou destaque em São Paulo e no Brasil. Aquilo ali é um bumbo de ressonância da política brasileira.

Joel Silva/FolhapressJoel Silva/Folhapress“Para os políticos, existe o momento certo: quem chega antes dá com os burros n’água, e quem chega depois perde o timing”
O que a derrota dos candidatos apoiados pelo presidente nas últimas eleições pode dizer sobre o futuro da popularidade do governo?
Quem está em um cargo de liderança maior, um governador, um presidente da República, quando tem eleições municipais deve manter distância do processo eleitoral. É inútil você tentar interferir nesses resultados, porque uma eleição não leva a outra. Eu já vi de tudo. Já vi grupos políticos que ganham uma eleição agora acreditando que vão ganhar a próxima, aí o líder começa a governar mal, e vira uma pedra no pé do próprio grupo, que acaba penalizado em função de uma administração ruim. O atual presidente não elegeu nenhum prefeito nas eleições de 2016. Ao entrar na eleição municipal, você corre o risco de o resultado, muitas vezes determinado por questões locais, acabar virando um sinal de avaliação do seu governo. Isso é tropeçar nas próprias pernas. O governo quando entrou na campanha deu um passo em falso e não se saiu bem.

Que cenário, a seu ver, está se desenhando para 2022?
Outro dia, eu estava em uma reunião virtual com um grupo grande de lideranças e me fizeram essa mesma pergunta. Eu disse a eles: “Olha, vocês não me avisaram que iam fazer essa pergunta, eu não trouxe minha mochila, a minha bola de cristal ficou lá dentro, e para responder é só com bola de cristal”. É tudo muito precoce. O quadro político vai se definir na travessia deste ano. Já disse que 2021 vai ser uma eternidade, por causa das condições econômicas e sociais que nós estamos vivendo. Acho interessante o movimento que a sociedade civil fez em defesa da democracia há alguns meses. Mostrou vigor. Documentos foram assinados por um arco de personalidades muito amplo no país dizendo “alto lá”, mostrando que estamos em defesa da democracia, que para nós não é uma questão prática, é um valor. Mas pensar hoje em um desenho do que tem que ser feito lá na frente é muito difícil, porque as condições vão se apresentar com mais clareza no segundo semestre deste ano, quando poderemos refletir sobre um quadro mais límpido. Não existe o antes nem o depois para os políticos, existe o momento certo: quem chega antes dá com os burros n’água, e quem chega depois perde o timing. O momento certo é quando as coisas se aproximam. Aí você tem noção do território onde está pisando.

Para 2022, há alguns nomes na mesa, como os de Luciano Huck, Luiz Mandetta, Sergio Moro e Luciano Huck. Algum deles será capaz de aglutinar o centro?
Esse jogo será definido em 2021. É bom que tenha muitos nomes. Tem ainda o governador de São Paulo (João Doria) e muitos outros nomes nesse campo, que une os liberais reformistas até uma centro-esquerda que evoluiu no seu conceito de estado e economia. É um segmento amplo da sociedade brasileira que ficou mal em 2018, perdeu muita tração, visibilidade e relevância, mas é um segmento do pensamento político que tem muitos laços com a sociedade. É importante que tenha múltiplos personagens nesse campo. Vou citar outro exemplo: o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é uma figura ascendente na política brasileira. Nesse campo você tem muitos atores. No Brasil central você esbarra no (Ronaldo) Caiado, em Goiás, que está fazendo um trabalho interessante. Tem outra figura em ascensão que é o ACM Neto, que ganhou uma grande relevância na Bahia, no Nordeste e no Brasil. É muita gente. Tem que ver onde isso vai dar.

O sr. é muito próximo de Luciano Huck, que já lhe chamou de “Mestre Miyagi”. O que dizer dessa relação?
O Luciano conversa muito comigo. A primeira conversa que eu tive com ele foi a convite do Armínio Fraga, em um jantar na casa dele. Nessa primeira conversa eu fiquei surpreso positivamente. Isso foi em dezembro de 2017. Fiquei surpreso com a desenvoltura, com o conhecimento sobre o Brasil, com a curiosidade dele. Ele está nos movimentos cívicos, foi quem convidou a mim e ao Armínio para integrar o Agora, que é uma plataforma que discute políticas públicas. Ele está se envolvendo com o debate nacional crescentemente. Eu o estimulo. Acho que essa decisão do Luciano de ter uma participação maior no debate nacional é extraordinária, porque ele é carismático, muito querido. Ele ajuda a difundir essas boas causas. Eu incentivo não apenas ele, mas outros líderes que em suas áreas profissionais se envolvam no debate. Não precisa ter mandato. A participação pode ser com mandato, mas pode também ser pela sociedade civil.

Como o sr. enxerga essa geleia partidária brasileira?
O que faria sentido no país é ter algo entre nove e onze partidos, com eles se diferenciando por plataformas, por projetos, visões diferentes sobre o papel do estado na economia. Essa proliferação de partidos tornou o quadro partidário gelatinoso. Infelizmente, os partidos como são hoje não passam de cartórios de registro de candidaturas e pouco uma afirmação de pensamento para o país. Os partidos são agremiações desconexas, as filiações são feitas visando a questões eleitorais, à cata de tempo de televisão, de fundo partidário. Eu tinha muita esperança de que a mudança na regra de coligação partidária pudesse enfrentar esse problema da fragmentação. É uma pena, porque se tivesse acontecido isso, induziria o quadro partidário a uma fusão de legendas.

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