FolhapressA dupla Bolsodoria da campanha, agora em polos opostos, tem errado na crise por razões distintas

Os farsantes da pandemia

Enquanto Jair Bolsonaro continua a negar o perigo do vírus e sabota a vacinação em massa, João Doria municia a loucura antivacina ao tentar maquiar dados e faturar eleitoralmente. A nossa miséria política é mortal
15.01.21

Para qualquer governante minimamente cioso da responsabilidade do cargo que ocupa, o cálculo político deveria ser a última das preocupações quando o que está em jogo é a vida de milhões de pessoas. No Brasil, tem ocorrido o inverso desde o início da pandemia do coronavírus. Nos últimos dias, a exploração política do combate à Covid-19 alcançou o seu ápice, com o presidente da República e o governador do estado mais populoso do país claramente mais interessados nas vantagens pessoais que podem extrair da tragédia humana causada pelo vírus do que em conferir mais transparência e celeridade ao processo de apresentação de um imunizante que seja, ao mesmo tempo, seguro e eficaz.

Em meio aos seguidos e assustadores aumentos no número de mortes e ao dramático colapso do sistema de saúde — em Manaus, pacientes estão morrendo nos hospitais asfixiados por falta de oxigênio e doentes começaram a ser levados a outros estados por falta de leitos –, Bolsonaro e Doria têm protagonizado um espetáculo farsesco. Enquanto o governador de São Paulo, diante dos holofotes, tentou faturar politicamente em cima do anúncio de duas taxas parciais de eficácia da Coronavac – de 78% para casos leves e de 100% para casos moderados e graves – pinçadas estrategicamente de um recorte do estudo, o presidente comemorou quando o tucano, desta vez bem longe dos holofotes, teve de recuar e reconhecer que, na verdade, a eficiência geral da vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan era de 50,4%.

O emprego de uma vacina com 50,4% de eficácia geral, produzida no país e armazenável em geladeiras comuns, ao contrário do que quer fazer crer Bolsonaro, é uma alternativa razoável para iniciar o enfrentamento da pandemia e o suficiente, em tese, para reduzir a expressiva da lotação dos hospitais e o número de vítimas. A questão é que com a taxa beirando os 50%, o mínimo exigido pela Organização Mundial de Saúde, praticamente toda a população deve ser vacinada para que se chegue à chamada imunidade de rebanho – e foi justamente isso que a estratégia de comunicação desenhada pela turma de Doria prejudicou, ao jogar contra a credibilidade da vacina. Quem perdeu mais uma vez foi o país.

O debate sobre a vacina está tão politizado no Brasil que até mesmo a necessária discussão sobre a eficiência das opções a serem disponilizadas por aqui acaba sequestrada pelo Fla-Flu reinante. É fato que a Coronavac é melhor do que nada, pode contribuir para o combate à pandemia e, se for considerada segura pelas autoridades sanitárias, deverá ser tomada pelos brasileiros. Mas também é fato que essa vacina e aquela produzida pela Fiocruz em parceria com a Universidade de Oxford e a AstraZeneca, a grande aposta do governo federal, não parecem ser as melhores opções disponíveis no mundo. O Brasil poderia ter feito, como outros países, contratos com todos os laboratórios que, ainda no segundo semestre do ano passado, apresentavam chances de chegar bem ao final da corrida pelo imunizante. Seria uma forma de garantir a melhor opção no menor espaço de tempo – a vacina da Pfizer, por exemplo, que registra eficácia global de 90% e foi a primeira a ser analisada e autorizada por órgãos oficiais dos Estados Unidos e da Europa, estava entre as opções oferecidas ao governo federal, mas a opção pelo projeto de Oxford com a AstraZeneca deixou as tratativas em banho-maria durante meses. Dizer que a vacina do Butantan e a da Fiocruz são as melhores que poderíamos ter pode até soar bem aos ouvidos da população, mas não é verdade. Poderíamos ter outras vacinas, e vacinas melhores. Mas nossas autoridades não foram previdentes o suficiente para isso e priorizaram a “transferência de tecnologia” na produção dos imunizantes, naquela visão nacionalista obtusa que mantém o Brasil estagnado em várias frentes. Eles se perderam em uma disputa binária, fora do lugar, levando para a arena política uma questão crucial de saúde pública da qual dependem milhões de vidas.

Edu Andrade/Fatopress/FolhapressEdu Andrade/Fatopress/FolhapressCom seu negacionismo, Bolsonaro cavou um buraco ainda mais fundo para o país na tragédia da pandemia
Não significa, evidentemente, a esta altura, que os brasileiros devam fazer objeção a essa ou aquela vacina, muito menos rejeitar as que estiverem aprovadas e liberadas para aplicação. Mas também não é o caso de, a pretexto de evitar que cresça a resistência às vacinas, desconsiderar as trapalhadas das autoridades de plantão. No caso da Coronavac, claro está que o primeiro anúncio da taxa de eficácia, marcado para a segunda quinzena de dezembro, foi adiado porque o número a ser apresentado não era vistoso o suficiente – Doria, que vinha participando de praticamente todas as entrevistas coletivas sobre o assunto, até viajou para Miami dias antes. Era preciso encontrar algo mais palpitante. E assim foi feito.

Na semana passada, o Instituto Butantan finalmente anunciou os números mais bonitos – 78% e 100% – a partir de um recorte nas pesquisas. Seguiu-se a cartilha de comunicação de guerra, que incluiu até a divulgação de um vídeo em que a cúpula da instituição, a portas fechadas, supostamente era informada pela primeira vez do índice e festejava entre aplausos e lágrimas. Uma cena quase épica. Vieram as cobranças dos especialistas, que queriam conhecer a taxa geral de eficácia e, já nesta semana, o governo paulista teve de apresentá-la. Era de pouco mais de 50%. Para o distinto público, que dias antes vira outro percentual ser comemorado, é um ruído capaz de ampliar a resistência e plantar desconfiança. Nesse anúncio, Doria não deu as caras. Na semana anterior, ele havia aparecido exultante. “É um momento histórico que nos orgulha”, declarou, ao anunciar emocionado que a Coronavac previne 78% dos casos leves e até 100% dos casos graves de Covid. Os slides mostrados na apresentação traziam informações genéricas, sem números completos.

A confusão, gerada pela vontade de aparecer bem na foto e ganhar a dianteira da disputa com Bolsonaro, bem que poderia ter sido evitada. Mesmo com esse percentual mais baixo, a vacina é suficiente, segundo especialistas, para praticamente zerar o risco de agravamento da doença.“Doria cometeu um equívoco de comunicação, de transparência nos dados e deu sobrevida a Bolsonaro na discussão da vacina. Ele não precisava maquiar os números: o que as pessoas precisam é de uma vacina eficaz como a Coronavac. O foco da narrativa deveria ser esse”, afirma o cientista político e analista de risco Creomar de Souza.

Não é de hoje que Bolsonaro e Doria, em trincheiras opostas, tentam capitalizar com a tragédia sanitária – ao todo o Brasil contabiliza mais de 205 mil mortes em razão da pandemia. De um lado, o tucano tem abusado da teatralidade, do marketing e da esperteza política – aquela que, quando é demais, muitas vezes engole o dono – ao promover ações para conter a pandemia, algumas delas fajutas, como a quarentena que ignora boa parte de quem atenta contra ela. Já Bolsonaro, desde que o vírus chegou por aqui, não tem medido esforços para atrapalhar autoridades de saúde na condução técnica da reação à doença., como se ela fosse uma criação internacional de esquerdistas que querem derrubá-lo. São exemplos bem vivos na memória dos brasileiros as suas constantes investidas contra o distanciamento social e a favor da cloroquina, um medicamento cuja eficácia para conter os efeitos da Covid-19 não é comprovada cientificamente e continua sendo vendido como remédio para a doença pelo Ministério da Saúde, e sua ofensiva contra a própria credibilidade da vacina. Ao lançar publicamente a discussão sobre torná-la ou não obrigatória, o presidente contribuiu decisivamente para plantar sementes de dúvida sobre a imunização.

Governo do Estado de São PauloGoverno do Estado de São PauloDoria posa com a Coronavac: no afã de auferir mais dividentes políticos, o governador paulista errou na comunicação
Cada um à sua maneira, os dois se movem com o mesmo objetivo: o de faturar politicamente para obter ganhos eleitorais no próximo ano. O presidente sempre temeu os supostos reveses políticos que o eventual sucesso do que chamou de “vacina chinesa do Doria” pudesse causar em sua pretensão de ser reeleito em 2022. Hoje, Bolsonaro só corre contra o relógio para colocar em marcha o plano federal de vacinação antes de Doria porque percebeu – tardiamente – que uma parcela imensa da população clama pela vacina, seja ela qual for, venha de onde vier, desde que segura e eficaz para pôr fim de uma vez por todas aos terríveis números da doença.

Doria, por sua vez, quando viu que Bolsonaro poderia avançar sobre um terreno em que ele acreditava reinar soberano, tentou transformar tudo o que envolve a Coronavac em espetáculo político. No começo da pandemia, o governador de São Paulo parecia vestir única e exclusivamente a camisa da ciência, ao fazer um importante contraponto à turma de negacionistas liderada por Bolsonaro. Mas os vaivéns e as manobras políticas no episódio da vacinação – como o anúncio incompleto da eficácia – expuseram a natureza de suas intenções.

Do lado do governo federal, a resposta à divergência dos dados da Coronavac veio na forma de ataques políticos construídos a partir de informações falsas ou sem nenhum embasamento científico. “Essa de 50% é boa?”, ironizou Bolsonaro, em conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada que demonstravam receio com a vacinação. “O que eu apanhei por causa disso… Agora, estão vendo a verdade”, acrescentou o chefe do Planalto, que desmerece a Coronavac, mas ao mesmo tempo a mantém no rol de compras do Ministério da Saúde. O assessor especial para assuntos internacionais do Planalto, Filipe Martins, seguiu na mesma toada do chefe. Usou um termo pejorativo para se referir à China e chamou o imunizante incorporado pelo Plano Nacional de Imunização do próprio governo federal de “vacina xing ling do João Doria” – depois ele apagou o post.

Bolsonaro tripudia em cima da eficácia da Coronavac não só para polarizar com Doria, mas também porque sempre desqualificou a imunização por meio das vacinas, preferindo atuar como garoto propaganda de remédios sem eficácia e cujo uso, como se vê hoje, não evitou a escalada de mortes pelo coronavírus, nem no Brasil nem em lugar nenhum do mundo. No final de dezembro, percebendo que o tema lhe trazia desgastes nas redes sociais e afetava sua popularidade, ele fez uma live questionando as cobranças: “A pressa pela vacina não se justifica”, disse. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que não faz outra coisa senão bater continência para o chefe, adotou o mesmo tom, ao criticar a “angústia” e a “ansiedade” de quem cobrava. Nesta semana, Pazuello, dias após se arvorar de editor da nação, dizendo como e com que viés as notícias sobre seu ministério deveriam ser divulgadas, recorreu a evasivas ao dizer que a vacinação iria começar no dia “D” e na hora “H”. A guerra política se espraia por outros setores da máquina oficial que deveriam estar empenhados em buscar soluções céleres para a tragédia. Aparelhada politicamente, a Anvisa, a agência federal à qual cabe, entre outras coisas, aprovar o uso das vacinas, atua em sintonia com o Planalto (leia mais aqui). No ano passado, suspendeu por um dia os testes da Coronavac, em virtude de uma morte que, na verdade, não guardava relação com a vacina – tratou-se do suicídio de um voluntário.  Depois de sucessivos adiamentos, a agência promete anunciar neste domingo, 17, a decisão sobre o uso emergencial das duas vacinas mais próximas de espetar os braços dos brasileiros: a Coronavac e a vacina da Oxford/Astrazeneca, que, segundo especialistas, seria 70% eficaz já na primeira dose. De acordo com o que Pazuello disse a prefeitos, o “Dia D” para começar a vacinação em massa nacional agora é 20 de janeiro, cinco dias antes da data anunciada por Doria para começar a campanha em São Paulo. A política dita tudo. Já na noite desta quinta-feira, um oficial do governo da Índia, de onde deverá ser importada parte dos lotes da vacina desenvolvida por Oxford e a Astrazeneca, indicou que o país pode não liberar imediatamente os 2 milhões de doses com o qual o governo brasileiro está contando para iniciar a vacinação — a depender do desenrolar da celeuma, a “nova” programação de Pazuello pode ser afetada.

Secom/AMSecom/AMManaus colapsa de novo: sem oxigênio, pacientes estão sendo transferidos para outros estados
O cavalo de pau de Bolsonaro, que agora parece acelerar o passo diante da pressão da sociedade pela vacinação, pode ser uma daquelas iniciativas que se ajusta à perfeição à expressão “para inglês ver”. O que, a olho nu, sempre pareceu um misto de teimosia e inépcia, pode ter sido, na verdade, uma tentativa de esconder uma sabotagem deliberada e logicamente inexplicável à vacina comprada pelo próprio governo. É que, enquanto investe na farsa do tratamento precoce, o Ministério da Saúde, segundo reportagem de O Globo publicada esta semana, ignorou um parecer interno que recomendava a compra de seringas com entrega por frete aéreo. Documentos obtidos pelo jornal mostram que a previsão para a chegada da primeira remessa por via marítima, de 1,9 milhão de unidades, é 25 de janeiro. Ocorre que, por transporte aéreo, 20 milhões de seringas já poderiam ter chegado ao Brasil em dezembro – sim, no último mês. A secretaria-executiva da pasta, chefiada pelo coronel Élcio Franco Filho, aquele que aparece nas entrevistas com um broche de caveira na lapela, preferiu fazer ouvidos moucos para a recomendação, “mesmo cientes das diferenças quanto ao tempo de entrega”. Na quarta-feira, 13, o ministério informou ao STF que sete estados não dispunham de seringas e agulhas suficientes em seus estoques para iniciar a vacinação. Os documentos mostram, porém, que a pasta assumiu esse risco de propósito.

Outra irresponsabilidade foi com a situação de calamidade vivida há semanas por Manaus, cujo auge se deu nesta quinta-feira, 14, quando pessoas morreram em hospitais por falta de oxigênio e pacientes com sintomas graves de coronavírus tiveram que ser transferidos para hospitais em outros estados por falta de vagas no sistema de saúde local. A capital amazonense era alardeada por Bolsonaro como exemplo da eficácia da “imunidade de rebanho”. Dias antes de Manaus entrar em colapso, o ministro Pazuello esteve no local e recomendou o tratamento precoce contra a Covid-19, com o uso de medicações como cloroquina e ivermectina. Lançou até um aplicativo para orientar médicos a prescreverem os medicamentos rejeitados pela Organização Mundial da Saúde e pela Sociedade Brasileira de Infectologia. Na véspera do Natal, deputados bolsonaristas, como Bia Kicis, Carla Zambelli e o próprio filho 03 do presidente, Eduardo Bolsonaro, chegaram a comemorar o fim do lockdown decretado pelo governador do Amazonas, Wilson Lima, parabenizando os amazonenses pelo protesto que fez o governo local relaxar as regras de quarentena e reabrir o comércio. Diante da tragédia em Manaus, o epidemiologista Otavio Ranzani desabafou: “Há dias voltei a não dormir direito. Eu disse que poderiam me chamar de alarmista quanto a Manaus. Passam filmes na minha cabeça: plantões caóticos que vivi não chegam perto do noticiado hoje. Peço que escutem quem entende de doença, epidemia e doenças graves. Mentiras matam”.

Para especialistas, agora será necessário investir de forma maciça em campanhas de informação para desfazer os ruídos gerados pela politização do debate. “É preciso separar os dados científicos de tudo aquilo que tangencia essa informação, como o formato de divulgação ou os interesses políticos. Se olharmos estritamente para o dado, o resultado é espetacular”, diz Luiz Vicente Rizzo, professor do Departamento de Imunologia da USP e diretor superintendente de Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein. “A interferência de natureza política, sobretudo em um cenário polarizado, atrapalha a eficiência com que a ciência realiza as suas demonstrações e implementa os seus resultados em benefício da população”, faz coro Gustavo Romero, coordenador do ensaio clínico da Coronavac na Universidade de Brasília, um dos 16 centros brasileiros que participaram do estudo.

A vacina contra a Covid-19, não importa o carimbo federal ou estadual, é a grande esperança para milhões de brasileiros que viram o seu cotidiano ser perturbado pela doença e estão expostos ao perigo de uma doença grave e com alto grau de letalidade. Mas, neste momento em que o país ainda precisa recuperar o tempo perdido graças a decisões equivocadas, ainda estamos bem distantes de sermos imunizados do egoísmo, da incompetência e do egocentrismo das nossas maiores autoridades. A nossa miséria política é literalmente mortal.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO