Reprodução/Redes SociaisInvasores se orgulharam por deixar parlamentares em estado de "terror absoluto"

Aloprados golpistas

O que virá depois do dia em que seguidores de Trump, insuflados pelo próprio, invadiram o Capitólio para tentar barrar o resultado das urnas na eleição presidencial
08.01.21

A mais antiga e consolidada democracia do mundo teve na última quarta, 6, seu dia de republiqueta de bananas. “É uma visão doentia e de cortar o coração. É assim que os resultados das eleições são disputados em uma república das bananas — não em nossa república democrática“, disse o ex-presidente George W. Bush, normalmente avesso a declarações públicas. Com tacos de beisebol, rifles, coletes à prova de balas, bandeiras dos estados confederados, joelheiras, capacetes, roupas camufladas, chifres de animais e quase nenhuma máscara para se proteger da Covid, seguidores do presidente Donald Trump invadiram o Capitólio, o edifício onde ficam a Câmara dos Deputados e o Senado dos Estados Unidos, para tentar impedir a contagem de votos do Colégio Eleitoral que confirmou a vitória do democrata Joe Biden. As imagens surreais foram lamentadas entre europeus e demais aliados americanos, ao mesmo tempo que foram celebradas na Rússia, China e nas ditaduras de Cuba, Irã e Venezuela. Foi um dos momentos mais vergonhosos e sombrios da democracia americana, que terá consequências diversas para a política dos Estados Unidos e de outros países menos afortunados.

Por quatro horas, a multidão correu solta pelo Capitólio. Os vândalos entraram no prédio quebrando os vidros de janelas e portas, desviando-se dos poucos policiais que faziam prontidão do lado de fora. Para impedir que entrassem no plenário onde ocorria a sessão conjunta, agentes ergueram barricadas com os móveis nas portas – outros policiais, por outro lado, facilitavam o acesso dos militantes, como revelaram imagens exibidas pelos canais de notícias americanos horas após a invasão. A turba logo se espalhou pelo prédio. Ao ouvir o barulho, deputados e senadores se esconderam atrás das cadeiras até serem escoltados por corredores subterrâneos, com máscaras antigás à mão. Jornalistas tiveram de ser levados a lugares protegidos. Os que não escaparam viram suas câmeras serem destruídas. O gabinete da presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, teve documentos rasgados e jogados ao chão. Tiros foram disparados. Cinco pessoas morreram. “Por várias horas, nossa força coletiva deixou políticos em Washington em estado de terror absoluto. Os peões traiçoeiros (policiais) também ficaram apavorados“, escreveu um membro do grupo de extrema-direita Proud Boys no aplicativo Telegram. Com a confusão já instalada, Trump enviou mensagens nas redes sociais pedindo para que seus seguidores voltassem para suas casas, mas aproveitou para chamá-los de grandes patriotas. “Nós amamos vocês. Vocês são muito especiais”, disse o presidente em um vídeo.

A ousadia de Trump ao estimular e justificar a ida dos seus seguidores ao Congresso, dizendo que a eleição foi fraudada, provocou uma reação dura de seus aliados republicanos. Um deles foi Mike Pence, o vice-presidente que presidia a sessão conjunta e até então um dos principais aliados de Trump. Depois que a situação tinha se acalmado, Pence retomou os trabalhos com um discurso em defesa da democracia. “Para aqueles que causaram estragos em nosso Capitólio, eu digo: vocês não ganharam”, disse. Na madrugada da quinta, 7, deputados e senadores confirmaram a vitória de Biden. Muitos dos que pretendiam apresentar objeções aos resultados estaduais desistiram após testemunhar a balbúrdia. Nos dias seguintes, vários funcionários do governo Trump pediram demissão. Além disso, quatro congressistas republicanos cogitaram acionar a 25ª emenda da Constituição, segundo a qual um presidente pode ser removido do posto se for considerado incapaz. A lei, feita pensando principalmente em casos de morte ou doença, exige o consentimento do vice-presidente e de 13 dos 24 membros do gabinete presidencial. O movimento vem ganhando força. Na noite desta quinta, já percebendo que o patrocínio da invasão pode lhe render mais problemas, Trump distribuiu um vídeo em que defendeu uma “transição suave de poder” e disse que é hora de curar as feridas.

As diversas declarações contra o assalto ao Congresso entre republicanos revelam uma influência declinante de Trump também no partido. Na mesma quarta, 6, eles aprenderam que o atual presidente, que mesmo com a derrota nas urnas ainda tinha um capital político relevante por causa do número de votos que obteve, já não é mais um cabo eleitoral tão eficiente. As duas cadeiras para o Senado que ainda estavam em disputa na Geórgia ficaram com democratas, o que dará ao partido rival o controle da casa. Com tudo isso, boa parte dos membros do Partido Republicano se veem em dificuldades. Embora as figuras mais consagradas do partido hoje torçam o nariz para Trump e ele não seja mais tão bom eleitoralmente, ainda não há outro nome capaz de substituí-lo e o presidente continua muito querido em sua base de seguidores. Nas pesquisas de opinião feitas antes da invasão ao Congresso, mais de 90% dos republicanos diziam ter uma visão positiva do presidente. É de se perguntar se essa porcentagem caiu muito depois. Outro dado relevante é que cerca de 64% dos republicanos gostariam que o Congresso invalidasse a eleição, para favorecer Trump.

Reprodução/GloboNewsFoto: Reprodução/GloboNewsOs apoiadores de Trump nas escadas do Capitólio: sedição
O quase ex-presidente não apenas parece seguir forte no coração dos americanos que o seguem, como ainda tem admiradores em outras nações. Mesmo após o show de horror em Washington, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, repudiou a invasão ao Congresso, mas insinuou que o ato poderia ser obra de infiltrados. Elogiou os seus atores e defendeu seus motivos. “Há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”, escreveu Araújo no Twitter, em uma clara interferência em assuntos domésticos de outro país. “Há que parar de chamar ‘fascistas’ a cidadãos de bem quando se manifestam contra elementos do sistema político ou integrantes das instituições.”

A preocupação é a de que o caos que tomou conta do Capitólio se repita em países mais suscetíveis a políticos aventureiros. Com eleições presidenciais marcadas para 2022, o Brasil é um dos que correm o risco. Enquanto Trump questiona a integridade da eleição americana — uma iniciativa na qual nem o seu ex-procurador geral de Justiça, William Barr, embarcou —,  no Brasil a desconfiança alimentada é contra o voto eletrônico. Na quinta, 7, o presidente Jair Bolsonaro comparou a situação dos dois países. “Basicamente qual foi o problema, a causa dessa crise toda: a falta de confiança no voto. Lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios pela tal da pandemia e teve gente que votou três ou quatro vezes. Mortos votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí. No Brasil, se tivermos o voto eletrônico em 2022, vai ser a mesma coisa”, disse o presidente, sem dispor de qualquer prova sobre a falta de lisura no pleito nos Estados Unidos.

Tanto em repúblicas de bananas como em democracias consolidadas, atos ilegais que ameaçam as instituições republicanas deveriam ser condenados, não justificados. Após o assalto ao Capitólio, surgiram até mesmo discussões se o ato não configuraria algo mais grave, como uma tentativa de golpe de estado. O argumento é o de que, se os invasores impedissem a transição de poder para Joe Biden, Trump ficaria mais tempo na Casa Branca. Seria correto então falar em golpe de estado ou, mais apropriadamente, em autogolpe. O evento constituiria algo inédito na história dos Estados Unidos, onde nem sequer há uma palavra em inglês para descrever a tomada ilegal do poder. Lá, usa-se o francês coup d’état.

Há evidências nessa direção. No discurso que proferiu uma hora antes da votação no Congresso, o presidente Donald Trump pediu para a multidão ir à luta. “Se vocês não lutarem para valer, vocês não terão mais um país”, disse o presidente. Depois, pediu que seus ouvintes caminhassem até o Capitólio. “Nós vamos andar pela Avenida Pensilvânia (que liga a Casa Branca ao Congresso). Vamos dar aos nossos republicanos, os mais fracos entre eles, o tipo de orgulho e ousadia que eles precisam para trazer de volta nosso país”, afirmou o presidente.

Tia Dufour/Official White HouseFoto: Tia Dufour/Official White HouseTrump: querido por parte dos eleitores, mas com problemas no partido
Anteriormente, Trump também pediu que o vice-presidente Mike Pence ajudasse a decidir a votação no Colégio Eleitoral, mas o vice não teria poder para tal. “Dado que o presidente Trump provavelmente não entende, ou optou por não entender, o papel real do vice-presidente no processo de certificação, é difícil afirmar que suas mensagens possam constituir uma tentativa de golpe”, diz Anthony Arend, professor de governo e diplomacia na Universidade Georgetown, em Washington.

Mais fácil é enquadrar o que aconteceu como sedição. Pela lei americana, quem conspirar para derrubar o governo dos Estados Unidos ou, pela força, impedir ou atrasar a execução de qualquer lei, pode pegar até 20 anos de prisão. “O objetivo dos manifestantes não parece ter sido o de derrubar o governo, mas sim o de atrapalhar o Congresso em sua tarefa de certificar Joe Biden como presidente de acordo com a Constituição”, diz o advogado americano James Robenalt, especialista em assuntos de política e presidência. “Todos os que tomaram parte nesse evento devem prestar contas à Justiça. Caso se entenda que Donald Trump participou da conspiração para que esses atos fossem cometidos, então ele também deveria ser processado.”

Nos Estados Unidos, é muito difícil que um presidente seja processado ainda no exercício de suas funções. O mais provável é que essa missão fique a cargo do Departamento de Justiça após a posse de Joe Biden, no dia 20, quando Trump deixará a Casa Branca. O democrata tem dito que não pretende transformar o departamento em um braço de seu governo para perseguir oponentes. Nesta semana, o presidente eleito nomeou Merrick Garland para ser seu procurador-geral, salientando que ele será o advogado do povo, não do presidente. “Minha opinião é que o próximo procurador-geral investigará o caso. Se forem encontradas evidências de que Trump incitou, inspirou ou conspirou com os seus seguidores, ele será indiciado. Mas será preciso respeitar o processo legal”, diz Robenalt. Seria um desfecho nobre para um país para o qual seus pais fundadores imaginavam “um governo de leis, e não de homens”.

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