Adriano Machado/Crusoé

Queremos mudança, mas sem mitos e heróis

01.01.21
Alessandro Vieira

O ano de 2019 começou com a narrativa de um Brasil dividido. Depois de uma campanha eleitoral atípica, a maioria da população brasileira estava cheia de esperanças com o resultado das urnas, acreditando que o combate à corrupção ocuparia o centro da agenda da nova administração — conforme, aliás, fora insistentemente prometido pelo candidato eleito. Já outros estavam claramente amedrontados com a possibilidade de perder a impunidade histórica da qual sempre desfrutaram.

Passados dois anos, 2021 se anuncia com uma inversão nesses sentimentos e expectativas. Aqueles que temiam ter um governo à frente de fortes ações de combate à corrupção estão hoje em festa. Eles não só conseguiram manter as condições para preservar a impunidade, como o que parecia impossível aconteceu — avançaram. Voltaram a ocupar nacos generosos do Orçamento público e agora se dedicam a destruir, meticulosamente, todo o aparato de combate à corrupção que ameaçou e ameaça o seu domínio. Em uma ironia tipicamente brasileira, agem assim com a parceria entusiasmada do governo que, acreditava-se, fora eleito justamente para combatê-los.

As promessas de um Brasil livre da corrupção, mesmo depois da revelação de escândalos em série nos últimos anos, ficaram confinadas aos registros históricos da campanha eleitoral de 2018 e às mentiras ou distorções repetidas nas bolhas da internet.

Na vida real, o que temos, desde o começo desse governo, são inúmeros atos que prejudicam e enfraquecem a luta anticorrupção — a começar pela indicação de Augusto Aras à Procuradoria-Geral da República, em 2019. Nomeado pelo presidente da República fora das listas eleitas pela categoria, desde que tomou posse no cargo o procurador-geral age para tentar sepultar a Operação Lava Jato. Procura anular conquistas, tolher procuradores encarregados de investigar e, assim, favorecer poderosos que assaltam os cofres do país desde sempre.

Jair Bolsonaro seguiu nessa trilha e instalou um aliado também no Supremo Tribunal Federal, ao bancar a indicação inapropriada de Kassio Nunes Marques à vaga aberta com a aposentadoria de Celso de Mello. O desembargador foi nomeado mesmo sendo acusado de plágio acadêmico e de não comprovar os requisitos constitucionais de notório saber jurídico e reputação ilibada para ocupar o cargo. Sua escolha materializou o sistema de interesses que domina o país há décadas. Por isso mesmo, obteve expressivos apoios, do petismo ao bolsonarismo. Escancarou também a proximidade excessiva, para um juiz, de pessoas que são investigadas e processadas perante a Suprema Corte, um colegiado do qual ele agora faz parte — e que tem em suas mãos, por exemplo, casos que envolvem o nome de filhos e de aliados do presidente da República.

Logo depois da eleição, Jair Bolsonaro anunciou que iria nomear o então idolatrado juiz Sergio Moro como ministro da Justiça de seu governo ou como integrante do STF. O aceno de uma parceria com o juiz da Lava Jato certamente animou os brasileiros que apoiavam o combate à corrupção. Engano.

Menos de um ano e meio depois, em abril deste ano, após uma sucessão de desgastes que foram ficando públicos, Moro pediu demissão. Não escondeu que o fez por falta de condições de continuar trabalhando no governo Bolsonaro. Saiu do Ministério da Justiça em meio a um turbilhão de polêmicas, com denúncias de interferência do presidente da República nas investigações da Polícia Federal, em defesa de seus interesses pessoais e familiares. Naquele momento, não restaram mais quaisquer dúvidas: o governo prometido em 2018 não teria qualquer chance de se materializar. As “rachadinhas” e a atitude leniente diante de outros fatos deixaram para trás promessas e planos anticorrupção.

Os milhões de brasileiros que acreditaram na mudança prometida, e não estão aprisionados em espirais de mentiras, desinformação e ódio, por sua vez, sentem o sabor amargo da decepção. Têm agora a triste compreensão do estelionato eleitoral do qual foram vítimas.

Na economia, a crise provocada pela pandemia do coronavírus deixou mais evidente o que já se desenhava em 2019: a inépcia e a falta de compromisso do presidente da República com ações e reformas estruturais voltadas ao combate às desigualdades. O que dizer de um governo que já teve quatro ministros da Educação em menos de dois anos? E que teve três ministros da Saúde em meio à pior pandemia do século?

No momento em que 2021 se aproxima, exigindo de nós muito trabalho e espírito público, precisamos superar o luto pelo governo natimorto e, acima de tudo, retomar a luta.

O primeiro passo é aprender com os erros. Não crer em mitos, que são meras narrativas construídas pelo tempo ou pela mão habilidosa do marketing, quase sempre distantes da realidade. Não se constroem países sobre mitos. É preciso buscar o real, o concreto e o verdadeiro, deixando os arroubos populistas de qualquer matiz ideológica.

Em seguida, precisamos entender que a busca por um Brasil diferente e melhor é, antes de uma aspiração coletiva, um processo individual. Cada um tem que começar a fazer a sua parte, e isso passa por nos tornarmos pessoas mais conscientes e informadas sobre a realidade que nos cerca. Passa pelo combate constante às “fake news”, especialmente aquelas que partem dos gabinetes do poder, que colocam até vidas em risco. E passa, definitivamente, por sermos cada vez mais intolerantes com os desvios morais que nos transformam em um dos países mais desiguais do mundo.

Seguindo esse roteiro, talvez possamos abrir um caminho para sair do atoleiro de atraso em que nos encontramos até hoje. É ele que retroalimenta a corrupção, esse mal que, direta ou indiretamente, está na raiz dos desastres que enfrentamos na saúde, na educação, na segurança pública e na economia.

No Legislativo, há muito a fazer. Não faltam iniciativas para levarmos adiante a mudança concreta. Entre elas, a proposta de emenda constitucional que acaba com o foro privilegiado no país. O texto foi remetido à Câmara dos Deputados em 2017. Aprovado nas Comissões, ainda não foi pautado para o plenário.

Temos os projetos sobre a prisão em segunda instância, uma demanda antiga da população que merece ser respeitada pelos congressistas. São temas urgentes, e sua procrastinação parece feita sob medida para elites indiferentes e réus ricos e poderosos que vêm garantindo sua impunidade e mantendo-se sempre próximos ao poder.

Ainda nesse contexto, apresentei um pacote com nove medidas de combate à corrupção, entre eles o que tipifica a corrupção privada, aperfeiçoa a prescrição penal, o bloqueio de bens, responsabiliza pessoas jurídicas por corrupção corporativa. Essas medidas foram levadas à Câmara dos Deputados.

A aprovação da reforma política, sempre adiada, também urge! É necessário acabar com os privilégios e benefícios que distanciam os brasileiros daqueles que elegeram e requalificar a representação legislativa. É preciso dar visibilidade e apoiar esses e outros projetos. Temos que nos unir para estimular gente honesta, capacitada e independente a ingressar na esfera de poder onde as decisões são tomadas, a fazer política e resgatar o significado dessa palavra. O engajamento de todos se faz, cada vez mais, essencial para que possa haver avanço concreto no Brasil.

Já passou da hora de esperarmos por alguém que traga a mudança que sonhamos. É hora de sermos a mudança. Diversos movimentos, mundo afora, mostram que a ação coletiva da sociedade produz resultados. Não faremos isso sozinhos. O propósito de combater a corrupção e as imensas desigualdades sociais — de reconstruir o Brasil em bases mais justas — precisa contagiar a todos. Temos que levar para a arena as pessoas comuns. Sem mitos e sem heróis, porque já estamos cansados de promessas não cumpridas. Vamos seguir juntos, com a dedicação, o compromisso, a transparência e a honestidade que a política e o país esperam de nós. Que tenhamos a coragem de desenhar um futuro melhor para 2021 e todos os anos que vão se seguir!

Alessandro Vieira é senador da República pelo Cidadania de Sergipe.

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