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O futuro chegou, e essa é uma boa notícia

01.01.21
Ana Fischer

A Organização Internacional do Trabalho, agência das Nações Unidas fundada para fomentar o trabalho decente, completou 100 anos em 2019. A escolha do tema para marcar a passagem centenária — “Futuro do Trabalho” — baseou-se em uma constatação alarmante. Para a organização, as plataformas digitais e as inovações tecnológicas impulsionam uma transformação tão completa do mundo do trabalho que recriam “práticas do século XIX”, fazem nascer futuras gerações de digital day labourers e ameaçam de extinção os empregos atuais.

O alerta é catastrófico, como convém à natureza da OIT, mas ninguém pode
acusá-la de alienação. Embora o pessimismo não se justifique, o diagnóstico é preciso. Uma leitura atenta do mercado de trabalho deste século XXI evidencia, de fato, uma ruptura com o modelo tradicional de interação entre os trabalhadores e seus tomadores de serviços. Está em curso uma revolução do modo de produzir e de consumir que tende a subverter as formas conhecidas de trabalho e de relacionamento profissional entre as pessoas. E as novas tecnologias parecem mesmo ser o principal motor dessa subversão.

É claro que as inovações tecnológicas melhoram nossa realidade. Entre tantos benefícios, ampliam nossas possibilidades pessoais, tornam mais barato e facilitado o acesso ao conhecimento, anulam distâncias geográficas, intensificam as relações entre familiares e amigos e salvam vidas.

No campo do trabalho, inovações como a inteligência artificial, a intermediação por algoritmos e a automatização fomentam a produtividade, criam novas ocupações rentáveis e tornam mais amenas várias formas de labor manual, de modo a concentrar o foco da produção e da capacitação cada vez mais no intelecto.

Trata-se também de uma obviedade a constatação do ritmo inédito em que essa revolução tecnológica está ocorrendo. Há anos, o economista alemão Klaus Schwab, um dos fundadores do Fórum Econômico Mundial, defende que o desenvolvimento da chamada “Revolução 4.0” é diferente “em escala, escopo e complexidade” de tudo aquilo que já foi experimentado pela humanidade até aqui. O tempo vem lhe dando razão.

Não tão óbvio, todavia, parece ser o impacto que essas transformações trarão para as relações trabalhistas. E quem compreende esse impacto, compreende também o alarmismo da OIT. Afinal, o próprio Direito do Trabalho como o conhecemos, com suas premissas mais básicas, está em jogo.

As legislações trabalhistas modernas nasceram no contexto de outra revolução industrial, quando o homem se tornara substituível, autômato, e mera peça do processo produtivo — e quando o trabalho era eminentemente subordinado, ou seja, dependente da direção e das decisões do empregador.

O mundo atual, contudo, se caracteriza pela instabilidade. As novas interações trabalhistas, trazidas pela quarta revolução industrial em curso, já não cabem nos modelos legais que foram criados a partir de estruturas produtivas que estão em extinção.

Na verdade, os tradicionais limites temporais e espaciais que constituem a base das normas protetivas do trabalho não estão apenas se rompendo, mas desaparecendo: trabalha-se a qualquer tempo, de qualquer lugar. Mais do que isso: o trabalhador trabalha para quem ele quer.

Nessa era da informação, há uma subversão da equação empregatícia: ao trabalhador é dada a possibilidade de assumir o controle de sua vida laborativa e de se utilizar das novas tecnologias a sua disposição para exercer com autonomia as suas competências.

O trabalho por conta própria, sem vínculos funcionais delineados, emerge e se impõe com robustez surpreendente, à revelia dos teóricos que parecem lhe torcer os narizes.

Fenômeno que a um só tempo explica e se torna paradigma desse novo mundo do trabalho é o das plataformas colaborativas virtuais. Elas já dominam o mercado, sobretudo o de serviços, e expandem rapidamente sua presença nos mais diversos setores da economia: transporte, entregas, hotelaria, construções, crédito, entre outros.

Tais empreendimentos virtuais se colocam à disposição de consumidores e prestadores para que as duas pontas, através da livre utilização da plataforma, estabeleçam suas interações laborativas. O empregador, que já se fragmentara pelo fenômeno da terceirização, agora desaparece. Já o trabalhador — repita-se — trabalha quando, como e para quem quiser.

Eis aí, portanto, o que fundamentava a preocupação da OIT às vésperas da imprevista pandemia que viria a acelerar tudo: o próprio objeto do Direito do Trabalho, que é o labor subordinado, tem sua existência ameaçada e o trabalho independente dá mostras de que irá substituí-lo. O vínculo de emprego está se esvaziando e outras relações de trabalho, autônomas, tendem a se tornar maioria (hoje quatro em cada dez trabalhadores do Brasil já não trabalham como empregados). É também por isso que a Justiça do Trabalho tende a ficar obsoleta se não assegurar outras competências além da relação de emprego. Enfim, big change.

Não é por outro motivo que as normas trabalhistas vêm sendo reinventadas e assentadas sob novas premissas. Já se verifica uma clara tendência mundial de adoção de uma soft law: alterações legais que reconhecem a substituição do trabalho dependente clássico pelo trabalho autônomo (Espanha), o parassubordinado ou o lavoro a chiamata (Itália), os “quase trabalhadores” ou o Arbeit auf Abruf (Alemanha), ou ainda os contratados por “zero hora” (Reino Unido). A eles, veio se juntar o contrato intermitente brasileiro, regulamentado pela reforma trabalhista de 2017.

Se já assistíamos alarmados (ou, no caso da OIT, angustiados) à chegada do futuro do trabalho, podemos nos assombrar ainda mais: a Covid-19 veio catalisar o processo.

A pandemia alterou não só a realidade, mas também a forma como os empreendimentos mais diversos lidam com ela. Tanto as atividades que já eram vocacionadas a funcionar virtualmente (como, por exemplo, o ensino e o comércio) como aquelas aparentemente incompatíveis com os meios remotos (caso da medicina e da indústria) tiveram de adaptar-se, por intermédio das tecnologias. O trabalho humano, comum a todas, precisou acelerar a sua transição para a era digital.

Descobrimos na ocupação remota uma forma eficiente e barata de trabalhar, em razão da utilização de menos espaço físico, de menores estruturas corporativas e de nenhum tempo de locomoção. O home office virou tendência irreversível. E, com ele, não veio apenas o deslocamento físico da empresa para a residência, mas também o deslocamento do próprio centro de gravidade da relação de trabalho, que sai do empregador e recai sobre o trabalhador. Este fica, também por isso, ainda mais em evidência.

O tempo também se abreviou de forma brusca no campo do Direito: alterações legais em matéria de trabalho foram implementadas no mundo inteiro. No Brasil, em particular, a pandemia ocasionou uma desregulamentação temporária e drástica das normas trabalhistas, criando precedentes constitucionais que impactarão para sempre nosso mercado de trabalho.

É o caso, por exemplo, da prevalência dos acordos individuais sobre a lei, chancelada pelo STF e amplamente utilizada para manter milhões de postos de trabalho com reduções de jornada. E do próprio teletrabalho, que havia sido singela e – por que não dizer – ingenuamente disciplinado há poucos anos, e foi completamente flexibilizado por meio de uma medida provisória construída às pressas para atender à situação emergencial de 2020.

A tendência revolucionária que já se encontrava em curso, portanto, se intensificou. E se a internet possibilita 8 bilhões de monopólios, como se costuma dizer, estes se fazem agora ainda mais prováveis do ponto de vista trabalhista. No trabalho do futuro, insisto, o foco é no indivíduo e na sua independência.

Exatamente por isso, concluir que a pandemia veio a ser um catalisador da “Revolução 4.0” não é enxergar a antecipação de uma catástrofe. É lembrar das obviedades que nos cercam e ter em mente que a tecnologia, abrindo caminhos e atalhos, pode ser um instrumento de valorização do trabalho e do próprio ser humano.

Ana Luiza Fischer é juíza do Trabalho. Integrou a comissão de redação da Reforma Trabalhista e é uma das coordenadoras do Grupo de Altos Estudos do Trabalho do Ministério da Economia.

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  1. A questão que fica, num cenário macro da força de trabalho, pode ser avaliada de acordo com a infraestrutura disponível em termos de energia, comunicações, transportes, saúde, escolaridade, segurança jurídica e etc..., com claríssima vantagem àqueles países de sempre. Tenho a impressão de que, no caso brasileiro, estamos despencando neste requisitos, a cada governo, a cada ano, e nos últimos 30 anos.

  2. Esquerdista frustada ao perceber a inutilidade da própria atividade... no Brasil, desde SEMPRE a maioria dos trabalhadores não estavam sob a CLT... e a insistência na legislação fascista só atrasou completamente o Brasil...

  3. Eu apreciei muito o seu artigo. Ele corrobora com minha visão do cotidiano, sem ser especialista em direitos trabalhistas. É um anseio essa mudança que a pandemia antecipou, só espero, que os governantes não deixem desamparadas as pessoas que não tem escolaridade e especialidade, elo muito fraco da cadeia social. Parabéns e sucesso.

  4. Achei que o texto é bastante realista e foi feito com muita competência. No entanto, achei que foi dirigido apenas aí setor privado. Onde fica a análise dos empregos no setor público?

    1. Bem colocado. Como ficará setor público? Justiça, o Executivo e o Legislativo? Ocorrerá um abismo maior entre o setor público x privado e entre as pessoas com maior X menor escolaridade. Para o deputado e senador será bom pois funcionário fantasma estará sempre em home office! Rsrs

  5. É interessante ver como a mudança no mundo pode iludir aqueles mais alienados como essa juíza com um discurso tão superficial e incompleto. Ah! Ela é funcionária pública....não faz parte dos "8 bilhões de monopólios"...

  6. Nossa "justiça" do trabalho, vem atuando muito bem, se o seu objetivo, que é o que parece, é acabar com o emprego formal no Brasil. A meu ver é a maior responsável pela desigualdade de renda, e a pobreza no país. E custa muito caro à economia. Só beneficia (e muito) os corporativos e a enorme indústria de advogados e vigaristas que se formou em torno dela, além de mandar para o exterior uma multidão de profissionais e cientistas de alto gabarito, que poderiam estar gerando riqueza aqui.

  7. Tempos que não leio um texto tão real, tão verdadeiro e tão corajoso sobre o tema. Impressionante que a maioria dos responsáveis pelas relações de trabalho não conseguem enxergar que algo mudou faz tempo, só nos resta aprimorar e aceitar.

  8. Excelente artigo! Deu uma arejada na revista, diversificando a temática central, e trouxe à baila um assunto primordial para os próximos anos! Que venham mais artigos sobre a revolução no sistema trabalhista! Seja bem-vinda!

  9. Faz um tempo que Raymond Kurzweil preconizou a Singularidade, quando a IA superará a inteligência humana, nos deixando aflitos de que mundo surgirá disso. Apesar de não comprar as ideias de Kurzweil na sua totalidade, vemos que a evolução nesse sentido é um caminho sem volta. O Watson venceu o Jeopardy. Elon Musk vislumbra colonizar Marte. Coisas impensáveis poucos anos atrás. Meu sogro saiu da roça, foi trabalhar numa montadora de carros e seus filhos trabalham no setor de serviços.

    1. Paulo, concordo plenamente com você, mas acrescentaria que "não podemos ser governados por um presidente com mentalidade da idade da pedra, nem com centrais sindicais que ainda tem a cabeça no início do século passado e tem no estado gigante a solução de todos os problemas"

    2. São pessoas se movimentando de um setor para o outro. Mas o que vem agora. Quando cada vez mais mais, esses trabalhos forem desempenhados por máquinas? Quandos os que encontraram trabalho como motorista de aplicativo forem substituídos por carros autômatos. Quandos os supermercados em sua totalidade começarem a funcionar como as lojas Amazon Go. Por isso que venho insistindo, diante dos desafios conteporâneos, não podemos ser governados por um presidente com mentalidade da Idade da Pedra.

  10. Discordo, doutora. A justiça do trabalho está obsoleta há tempos e deveria ser extinta. Não passa de um sumidouro de recursos públicos.

  11. A pandemia foi um momento para se reinventar e as relações de trabalho foram um exemplo disso. Muitos se adaptaram ao home office e outros, nem tanto.

    1. Interessante é notar que tais constatações partem de pessoa que é membro da Justiça do trabalho, instituição que sempre foi muito protetora e "paternalista", muitas vezes até contra a vontade dos trabalhadores. Sinal de que os trabalhadores não querem mais ser tratados como seres infantis ou senis, que precisam de proteção estatal,. Parabéns.

  12. Querida Ana: foi um prazer imenso te ler aqui na Crusoé. Uma retrospectiva clara ampla gostosa de ler e uma visão de perspectiva muito aguçada e equilibrada. Gostei muito de aprender sobre a relação do labor subordinado com as bases do Direito do Trabalho. Dá um norte para pensar muito profícuo. E tenho mais uma visão sobre tua inteligência tua sensibilidade e teu equilíbrio. A Crusoé tem olho clínico para as Anas talentosas. Grande abraço e sucesso em 2021

  13. Constatada a realidade,gostaria de perguntar qual percentual trabalhadores vão ficar pelo caminho no Brasil,visto que com as nossas mazelas,as dificuldades para essa transição são bem maiores? Sei que há dezenas de ações que podem minimizar o problema,mas não vejo quase nenhuma em curso,para a esmagadora maioria dos trabalhadores.Se meu sentimento estiver errado,por favor me corrija.Não tenho idéia fixa.

    1. Tatiana, pois eu enxergo essa mudança como algo muito positivo: a nova legislação de 2017 desengessou as relações de trabalho e libertou os trabalhadores, que, se quiserem, podem virar empreendedores, mantendo o vínculo formal com o INSS como MEI, por exemplo, que mantém seus direitos de aposentadoria, etc., mas possibilitando que ele trabalhe como, quando, onde e pra quem desejar! Na minha opinião, não existe cenário melhor do que esse!

    2. Infelizmente a maioria vai para a filha do desemprego e desalento.... nosso vácuo educacional e econômico farão milhões irem para linha da pobreza. O trabalhador sempre explorado valerá somente o que produzir e enquanto produzir a contento, sem nenhuma segurança ou garantias

  14. Excelente artigo. Essa é uma realidade que muito poucos ainda enxergam. Acredito que empresários que quiserem manter na cabresto o trabalhador poderão perder esse ativo importantíssimo mais depressa que se imagina.

  15. A "funcionária" do PG podeia falar um.pouco da casta de sevidor público....52% da mão.de.obra que trabalha pro estado em.detrimento dos cidadãos de segunda classe que implora por oportunidade de ingresso na profissão. Eng mecânico em teletrabalho....usinador....operador de empilhadeira do mercado livre.....

  16. Faltou falar sobre a precarização do trabalho e da piora das condições daqueles que “ escolhem pra quem trabalhar”. Um pouco mais de equilíbrio doutora e olhar pro chamado andar de baixo.

    1. Suzane vai procurar o que fazer. Quem está falando de esquerda e direita? Melhora o nível do seu comentário.

    2. Gente, antes de acreditar nas críticas que a esquerda alardeou intensamente em 2017 sobre a precarização do trabalho, a perda das garantias, da aposentadoria, etc., façam uma visitinha lá no site do SEBRAE e pesquisem sobre o MEI (microempreendedor individual), seus direitos e deveres, impostos, etc., ok? Depois, a gente conversa mais! 😉

    3. A bonita é juíza do trabalho e trabalha na equipe do PG....essa não terá problemas.

    4. Isso mesmo Rodolfo, a quantidade de perdedores será cada vez maior. Será o fim?

    5. Aí já é responsabilidade da Educação, não do Trabalho. Visto que, muito em breve, nem motoristas de aplicativo, quanto menos motociclistas entregadores de comida existirão, já que serão também substituídos por robôs. Numa população que não foi treinada para atividades do intelecto, o desemprego — esse sim a verdadeira precarização trabalhista — ditará o abismo econômico e a segregação social entre as pessoas (e os povos) ricas e as pobres.

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