Arquivo pessoal

A necessidade da redescoberta

01.01.21
Gustavo Nogy

Os editores da Crusoé me convidaram para falar de cultura. Ou das expectativas para a cultura brasileira no ano que vem – presumindo que exista um ano que vem, e que antes não sejamos (merecidamente) consumidos pelas chamas amazônicas, dizimados pela Covid-19, enlouquecidos pelo Bolsonaro-17, extinguidos por qualquer outra desgraça de proporções bíblicas que esteja a caminho.

Fico tentado a responder, como o Barão de Itararé, que de onde nada se espera, daí é que não sai nada mesmo. Essa é a resposta curta para o leitor apressado: nada. Mas vou explicar isso melhor em 8 mil caracteres.

Depois dos muitos anos em que a esquerda privatizou o erário, oficializou a inspiração e confundiu cultura com sinecura, o eleitor resolveu que seria uma ótima ideia, uma excelente escolha, uma auspiciosa promessa eleger para a presidência da República um sujeito no segundo estágio do desenvolvimento psicossexual da teoria de Freud. Basta uma rápida averiguação nas propostas de políticas públicas deste governo para constatar que viveremos mais dois anos (talvez outros quatro) numa intransponível Sibéria de ideias.

Seja como for, cada coisa a seu tempo: antes de recordar o futuro convém prever o passado. O futuro tem história, bem sabia o padre Antônio Vieira.

Presumo que se trate de cultura com inicial maiúscula, o que de notável fizeram escritores, músicos, poetas, artistas e sábios mundo afora, indumentária feita sob medida para gregos e alemães, franceses e italianos, mas que em brasileiro cai tão bem quanto nariz postiço. Por falta de prática, não levamos muito jeito pra coisa. Ultimamente temos produzido ficção que parece documentário ruim, como Bacurau, e documentário que parece ficção ainda pior, como Democracia em Vertigem.

Também é verdade, reconheço, que tivemos bons momentos.

Wilson Martins fez o inventário desse espólio. Conseguiu a proeza de publicar sete grossos volumes sobre a inteligência brasileira. Obra imaginativa das mais espantosas, cheia de personagens mitológicos, entidades folclóricas, filisteus bem-intencionados, membros de academia de letras jurídicas e toda uma variada fauna de “gênios para si mesmos sonhando”, o que me leva a crer que seus dotes ficcionais talvez fossem maiores que sua acurácia crítica. Um Balzac desperdiçado.

Eu, menos crédulo e mais cínico que o curitibano, achei a enciclopédia um pouquinho generosa. Tem gente sobrando ali, viu? Uma edição atenta poderia reduzir a biografia da inteligência nacional a dois suficientes volumes, trezentas páginas cada, contando capa, contracapa e índice remissivo, de resto apropriados para comercialização em papel barato e citação ligeira, leitura de vestibular ou palestra de loja maçônica, e ficaria de bom tamanho. Mas cabe ao leitor a última palavra.

Um tanto mais comedidos, reconheçamos que o valor universal das nossas façanhas (os textos, filmes e canções que traduzidos, exportados, expatriados, interessariam a um cossaco ou a um piemontês, a um colombiano ou a um senegalês) vai da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (agora redescoberto em novas traduções nos EUA) até, mais ou menos, a morte do Tom Jobim (com não muitas – embora honrosas – exceções antes; e bem poucas – menos honrosas – exceções depois).

Foram aproximadamente oito décadas de atividade relevante e criativa, considerando que somos 200 milhões, nos movemos num imenso matagal descoberto há quinhentos anos, escravizado mais da metade disso, urbanizado e industrializado há pouco, de alfabetização até hoje precária e vida mais sociológica que intelectual, mais anedótica que moral.

Por um breve momento o Brasil trocou as calças curtas pelas compridas, esticou a vista para longe das fronteiras do próprio umbigo, aprendeu a se lavar sozinho e a ter modos à mesa da civilização. Espremidos entre golpes e contragolpes, entre Estados Novos e cruzados velhos, ocorreram a Semana de 22, as artes plásticas, o samba, o samba-enredo, a Bossa Nova, a Tropicália, o Cinema Novo, o teatro de Nelson Rodrigues, a eficiência de Pelé, a invenção de Garrincha, a literatura de tantos, a poesia de muitos, a tradução dos irmãos Campos, a publicidade esperta, a sociologia de Gilberto Freyre, a construção de Brasília (não, a construção de Brasília não, deixa pra lá), o jornalismo do Pasquim… até que, de repente, às vésperas da reabertura política, em 1978, José Sarney comete Marimbondos de Fogo, a carruagem vira abóbora e o sonho de um Brasil sonhável começa a gorar. Sim, a culpa é todinha dele.

Desde então, nesta selva selvaggia cartorial e úmida, desigual e perdulária, já faz tempo que a cultura só tem merecido a inicial minúscula. Não julgo, constato. O que se faz, o que se tem feito, o que se espera fazer em 2021 e além, visto daqui, deste subjetivo, emburrado e pouco confiável posto de observação que vos escreve, inspira menos que algumas notas de rodapé. A história da inteligência brasileira está esgotada, esperando nova edição. Consideremos o seguinte.

José Guilherme Merquior, detestado pela esquerda e ignorado pela direita, defendeu que há pelo menos dois sentidos abrangentes para o que chamamos de “cultura”. Um deles é o sentido pedagógico, formativo, perfectivo, ou seja, o homem culto é o homem cultivado, educado, aperfeiçoado; é aquele que aprende, apreende, compreende; absorve, melhora, civiliza-se. Outro sentido para a cultura é o antropológico, performativo, cumulativo, isto é, a cultura é o objeto, o conjunto, o registro do que se faz numa sociedade; cultura é o acervo, a tradição, a herança.

Cultura é uma coisa e nem por isso deixa de ser a outra. É aperfeiçoamento individual e é memória coletiva. Os significados não se contradizem; completam-se. Cultura é o poema feito pelo gênio e o idioma no qual foi escrito, usado por toda gente. O problema é que, dos sentidos possíveis, nenhum deles nos tem soado familiar. Não entendemos um e pouco compreendemos o outro. Em termos políticos, direita e esquerda, ou suas versões muito brasileiras, têm responsabilidades. Daí meu pessimismo. Quero estar errado e quero que este prognóstico envelheça mal. Quanto às perspectivas, tenho dúvidas. Minto: tenho certezas.

Espero que a cultura aconteça, esteja acontecendo, fora do radar do oficialismo, das leis de incentivo, das autocongratulações de grupo. Ou isso (que não se vê) ou nada (do que se vê). Porque se depender do reacionário bolsonariano, haverá protestos contra a vacina e a esfericidade da Terra, produção industrial de mentiras, publicação de panfletos dizendo que o nazismo era de esquerda, distribuição de títulos nobiliárquicos imperiais. Caso dependa do progressista identitário, haverá protestos contra as inconveniências gramaticais, inexauríveis discussões acerca das dívidas históricas e apropriações destes para com aqueles, publicação de panfletos dizendo que o stalinismo era de direita, distribuição de títulos nobiliárquicos tribais.

Michel de Montaigne conta (ou inventa) nos Ensaios que numa comitiva da corte de Carlos IX encontrou tupinambás brasileiros. Com ajuda de um intérprete, conheceu os costumes dos índios do Novo Mundo. Não que fossem uns santinhos (eram brasileiros). Eles viviam de caça e pesca, trabalhavam pouco, bebiam muito, fumavam, dançavam, cantavam, andavam nus, adoravam deuses, guerreavam e, de vez em quando, almoçavam os inimigos capturados. Porém, ao contrário dos demais curiosos, um Montaigne com tino de antropólogo lhes dá atenção, ouve o que têm a dizer sobre a própria França e nota que não se sabe ao certo de quem são os hábitos mais bárbaros: dos observados ou dos observadores?

Comparo o Brasil de agora com a França de então, os selvagens tupinambás com o domesticado brasileiro e, que ninguém me leia, nem me leve muito a sério, mas sou tentado a concluir – antes fôssemos tão razoáveis quanto aqueles canibais.

Gustavo Nogy é escritor.

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