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A corrupção seguirá no poder

01.01.21
Abel Gomes

O ano de 2020 chegou ao fim. Ele encerra a década deixando um sabor amargo, e ficará marcado pela tristeza, pelo desalento, pela perplexidade e pela incerteza. Mal tinha iniciado o ano e as notícias que começaram a se espalhar eram as de que estávamos na iminência de nos defrontarmos com um vírus desconhecido em sua potencialidade de expansão, seu poder de lesividade e letalidade, assim como sua resistência a tratamentos disponíveis no estado da técnica.

O novo coronavírus, como passou a ser conhecido popularmente, foi percebido em seus efeitos no país logo no mês de fevereiro, mas se expandiu fazendo vítimas nos meses seguintes em quantidade, muitas até mesmo letais. As autoridades puseram-se a adotar uma série de medidas para enfrentar o problema, e logo começaram a buscar a contratação de serviços e a compra de bens. No entanto, para completar o cenário já sombrio que se delineava, investigações policiais depararam em diversos estados da federação com irregularidades e até fraudes nas compras de materiais e montagens de estruturas de atendimento às vítimas da pandemia.

Ainda nem bem terminaram em todas as instâncias os julgamentos dos vários processos instaurados para apuração de crimes praticados em licitações e contratos administrativos, que foram sendo desvendados nas diversas operações que constituíram o grande feixe que se convencionou chamar Operação Lava Jato, e uma série de novos fatos semelhantes passaram a ser noticiados na imprensa, com base em apurações oficiais que iam acontecendo.

A corrupção no serviço público, ligada ao seu foco mais marcante e lesivo, que é o dos contratos administrativos, parece ter se tornado uma praga da qual não temos condições de nos livrar no país. Quase todos os estudos realizados em torno do tema têm deixado assentado que a corrupção é um fenômeno inerente à sociedade, que em toda parte e em todos os tempos sempre existiu. Afeta países desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Foi detectada em todos os continentes, em regimes capitalistas, socialistas e comunistas. Ela é apartidária. É um fenômeno que não se extirpa por completo, é bem verdade, porque inerente ao homem e a suas relações. Mas pode ser controlado e reduzido.

No Brasil, especificamente, na primeira década deste século foram adotadas importantes e expressivas iniciativas para a construção de mecanismos de prevenção, transparência, controle e accountability. A institucionalização da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, a Enccla, de iniciativa do Ministério da Justiça, em 2003, como um fórum capaz de congregar diversas instituições públicas em torno de várias metas para o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro – e que foi, a meu ver, a mais expressiva delas – esteve no centro de outras tantas medidas igualmente essenciais ao avanço da nação na construção de uma administração pública moderna, proba e eficiente.

Iniciado o novo milênio, ficamos convencidos no país de que a década de 1990 revelara um expressivo crescimento impactante do crime organizado transnacional, de sua interligação com os poderes públicos por meio da corrupção e com o sistema financeiro por meio da lavagem de dinheiro. Juntamente com a Enccla, criou-se a Controladoria Geral da União, intensificou-se a Cooperação Jurídica Internacional e instrumentalizou-se no Ministério da Justiça um forte Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. O Brasil liderou o Grupo de Ação Financeira para a América do Sul, o Gafi-SUD e, finalmente, no âmbito do Poder Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça viabilizou, como nunca antes visto, a efetivação dos auxílios internacionais em matéria penal. Além disso, o Conselho da Justiça Federal especializou varas com competência específica em lavagem de dinheiro e para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas. A ideia se expandiu para alguns estados e os Ministérios Públicos em geral criaram seus núcleos especializados na atuação nessas três formas de criminalidade, o que também fizeram algumas polícias.

No âmbito legislativo, a nossa malha de leis e regulamentos contou com importantes instrumentos normativos que, aliás, já vinham sendo editados na década de 199 — como a primeira lei de combate às organizações criminosas, a de proteção a réus arrependidos e testemunhas, a lei complementar 105, com uma disciplina mais moderna no que concerne ao dogma do sigilo bancário, a lei de lavagem de dinheiro e, depois, a que a alterou, para torná-la de terceira geração, tendo como crime antecedente qualquer infração penal capaz de permitir lucros importantes a seus autores, dentre outras. O Brasil subscreveu tratados e convenções internacionais contra o crime organizado e a corrupção, e adotou visivelmente uma postura republicana em relação à direção de vários órgãos internos voltados à persecução de ilícitos penais, como a Polícia Federal, encarando-os como órgãos de estado, e não de governantes.

Nas duas últimas décadas os resultados começaram a aparecer. Curiosamente a enciclopédia livre Wikipédia registra, com início em 2003, mesmo ano em que foi instituída a primeira Enccla, centenas de operações realizadas no Brasil até este ano de 2020, a grande maioria delas para apuração de crime organizado, corrupção e lavagem de dinheiro, exatamente o trio de crimes que chamou a atenção dos organismos e comunidades internacionais na década de 1990.

Lava Jato, portanto, acabou se tornando o título de algo muito maior do que o esquema de corrupção empregado através dos contratos celebrados entre a Petrobras e as empreiteiras, para incluir todo o grande manancial de contratos eivados de corrupção e desvio de dinheiro público pelo país afora. Veja-se que no Rio de Janeiro, por exemplo, com algumas ligações com o que se apurava no Paraná, as autoridades federais de persecução penal logo detectaram um enorme esquema de corrupção em diversas instituições do estado, e que teve origem mais direta nas Operações Saqueador e Calicute, envolvendo contratos do governo em diversas secretarias, e que se desdobraram a ponto de atingir o Tribunal de Contas e a Assembleia Legislativa. Hoje, os fatos objeto das operações mencionadas e os que se seguiram são alvo não só de diversas colaborações premiadas, como de confissão por vários dos principais autores aos quais foram imputados, dentre eles o próprio ex-governador Sérgio Cabral Filho.

Esse conjunto de coisas atingiu estruturas de poder econômico e político onde jamais as instituições oficiais conseguiram chegar na história do país. A consistência com a qual isto se deu está no bojo dos processos, muitos deles julgados já por mais de duas instâncias, em milhares de folhas, depoimentos, documentos, entrega espontânea de valores etc., que podem ser acessadas eletronicamente e comporão o acervo de consulta pública para os cidadãos que se interessarem, estudos acadêmicos, livros de romance ou de cunho jornalístico, filmes de cinema e séries de TV, como aliás já aconteceu.

Em época de acirradas contendas ideológicas (às vezes mais oportunistas que ideológicas) e de “verdades” construídas casuisticamente ao bel-prazer e interesses de quem nelas quer acreditar ou fazer acreditar, as versões disso tudo serão as mais diversas, as conclusões tiradas se multiplicarão, mas tudo estará lá. É questão de consultar. Talvez para grande parte da população isto não tenha grande interesse, o que explica há anos a persistência de práticas e pessoas envolvidas em corrupção no cenário político nacional e com o aval do povo. Coisa que, infelizmente, também pode ser fruto de uma incapacidade de encontrar alternativas, já agora decorrente da “banalização do mal” da corrupção em nossa sociedade, e de cinismos individuais quanto à sua inexorabilidade na cultura brasileira, apto a justificar: “as coisas são assim”, “todos agem assim” e “se tudo e todos fazem assim, não importa que mais alguns também o façam”.

Com isso, muitos dos instrumentos que possibilitaram esse descortinar mais profundo e alto da corrupção começam a ser objeto de desconstrução. Muitos intelectuais ajudam nessa desconstrução, seja por puro fisiologismo, seja por má-fé ou identificação com o malfeito, mas é difícil acreditar que por concepção epistemológico-cognitiva, ingenuidade ou crença pura ideológica. Alterações legislativas já foram desfiguradas entre o seu projeto originário e a criação a que deu vida o processo legislativo nas duas casas, como ocorreu com o projeto anticrime proposto pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Outras tantas estão em vias de ocorrer, como a anunciada alteração da lei de lavagem de dinheiro, com forte tendência a regredir para uma legislação de segunda, ou até de primeira geração – para os que não sabem, fazendo regredir o rol de crimes antecedentes à lavagem de dinheiro para um número mais limitado deles, quiçá apenas para o bom e velho tráfico de drogas.

A instrumentalização sutil e disfarçada das instituições republicanas do estado democrático de direito é o pior dos despotismos. Não se percebe, ou se julga que o que é feito é legítimo. Com isso, muitas questões cujos fundamentos são mesmo de cunho moral, como a corrupção, acabam por ser manipuladas política e juridicamente para promover meras alternâncias de pessoas no poder, já que o caráter arbitrário desse poder prossegue sendo o mesmo: a imposição deteriorada de interesses pessoais e setoriais, mas sempre de alguns, nunca do interesse público. A corrupção continua no poder!

É assim que 2020 fecha essa segunda década do milênio. Se o cenário é desolador neste fim de década, como não me parece que haja dúvidas que seja, ao menos 2021 abre uma nova. E se isso não alenta muito, dada a sua proximidade com o marco que encerra a anterior, pelo menos prospecta mais um período de esperança e renovação de projetos para a nação, cujo sucesso dependerá da nossa capacidade de aprender com os equívocos do passado.

Abel Fernandes Gomes, mestre em Direito, é desembargador federal no TRF da 2ª Região e relator dos casos da Operação Lava Jato que tramitam na corte.

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