RuyGoiaba

Expiando a culpa burguesa

24.12.20

“A Vida de Tina” é a coisa mais divertida que apareceu no Instagram nos últimos tempos: procurem. É uma série de filminhos, de um minuto cada um, feita pelas atrizes Isabela Mariotto e Júlia Burnier. A Tina do título —interpretada por Isabela, mas dublada por Júlia com a voz mais afetada possível— é uma perfeita caricatura do que se pode chamar de “esquerda cirandeira”. Em um dos filmes, depois de olhar as notícias em seu celular, a personagem diz: “Tanta coisa horrível acontecendo no mundo! Eu preciso tomar uma atitude! Preciso transformar o mundo com a minha arte!” (a “arte”, três folhas pautadas de caderno coladas em uma parede, é pomposamente batizada de “Fronteiras”).

Em outro episódio, Tina decide “tomar a atitude” de militar nas redes depois de ver seus conhecidos do Instagram usando filtro de árvore nos seus avatares. Ela conversa com uma amiga pelo celular (“tem que colocar, Clara, tem que colocar a arvorezinha. Senão parece que você é alienada!”), posta uma foto seminua com os dizeres “SOS mata atlântica” e comenta: “A cada curtida que eu ganhei, sinto que a gente tá mais próxima do fim do desmatamento!”. Os filmes terminam com Tina sorridente, com flores na mão, ao som da versão de João Gilberto para “Corcovado” —emoldurada pelos dizeres “expiando a culpa burguesa”.

Isabela é atriz do Teatro Oficina, o que me faz supor que não seja exatamente uma pessoa “de direita” e tenha pleno conhecimento de causa (ou, em termos atuais, lugar de fala) para compor a personagem. Ainda assim, a personagem parece ter incomodado algumas pessoas, sobretudo na academia. É óbvio que isso aconteceu porque as atrizes acertaram no alvo: gente como eu (jornalista, paulistano, vila-madalenense assintomático) conhece uma porção de Tinas que parecem viver intensamente o estereótipo da esquerda cirandeira. E “expiação de culpa burguesa” é um conceito perfeito para explicar boa parte da arte feita no Brasil: os pobres-de-cinema-brasileiro são santos muito mais próximos da verdade que nós (e desumanizados na exata medida dessa beatificação).

Na semana passada, houve um episódio exemplar de “Tina da vida real”: uma revista petista publicou reportagem sobre a cantora paulistana Mariana Aydar dizendo que ela “dava protagonismo ao marginalizado forró”. A grita nas redes sociais foi grande e justa: é preciso estar com a cabeça MUITO enterrada num buraco hipster no Baixo Augusta para chamar de “marginalizado” um gênero musical popularíssimo há décadas —não só no Nordeste como em todo o Brasil— e cujos praticantes atuais, como Xand Avião e Barões da Pisadinha, são bem mais populares que a própria Mariana. As aspas da cantora na matéria não ajudam: ela se diz feliz com o Grammy Latino, “um prêmio para o forró, que é uma música onde existe muito preconceito” (talvez a intenção tenha sido falar em preconceito CONTRA o forró, mas não é isso que a frase diz), e depois afirma que queria colocar “a mulher como protagonista, porque o forró é um ambiente extremamente machista” —mesmo com mulheres como Marinês e Anastácia fazendo sucesso desde bem antes de Mariana nascer. O que seria do forró sem os civilizadores do Sudeste que vão ensiná-lo a se desconstruir, né, gente?

Depois tanto a cantora como a revista tentaram consertar —mas, se paternalismo fosse droga, acho que essa reportagem seria uma overdose capaz de matar Keith Richards e Iggy Pop de uma tacada só. Talvez seja um ótimo exemplo da desconexão da esquerda-Baixo-Augusta com o Brasil aí fora; enquanto isso, o país elege (oh, surpresa! Como isso pôde acontecer?) esse cretino “gente como a gente” que diz que a melhor vacina contra a Covid-19 é o vírus. Tem nada, não. Em 2022, essa turma voltará a oferecer um pedaço de bolo e “dois dedos de prosa” para virar votos. Vai funcionar tão bem quanto em 2018.

(Ah, sim, “A Vida de Tina” tem um episódio “Eu amo o Nordeste”, que resume bem todos os clichês do gênero: “É um povo que tem uma força, sabe? Guerreira.” “Não pode falar difícil, sabe? A cultura precisa ser popular, senão as pessoas não entendem.” No fundo, nem se trata de sátira: é um documentário.)

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A BRASILEIRICE DA SEMANA

Nesta semana, o termo não é exatamente goiabice: é essa coisa bem brasileirinha das OTORIDADES do STF e do STJ mandando ofício à Fiocruz pedindo para furar a fila da vacina contra a Covid-19. Naturalmente, uma vez flagrados, vieram com a conversa “vejam bem, não é furar fila, só queremos garantir a imunização dos servidores etc.” —o que é exatamente dividir o país entre brasileiros de primeira classe (aqueles com vacina previamente garantida, bonitinha) e o populacho que ainda nem sabe se e quando vai ser vacinado.

Já que ninguém leva a sério minha sugestão de trocar o “ordem e progresso” da bandeira por “crime ocorre nada acontece feijoada”, sejam sinceros e assumam o “farinha pouca, meu pirão primeiro”. É muito mais fiel à essência da brasilidade.

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AVISO DE FÉRIAS

Deixo a melhor notícia para o final: com a próxima Crusoé dedicada à perspectiva para o ano que vem, esta coluna só voltará a sair na segunda quinzena de janeiro, quando retorno de férias. Feliz Natal e um ótimo Ano Novo: em 2021, quero ver todo mundo vacinado e fingindo que me lê (e gosta). Au revoir!

Pedro Ladeira/FolhapressO plenário do STF —onde, como diria George Orwell, todos os brasileiros são iguais, mas alguns são muito mais iguais que os outros (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

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