A Abin do B
Dono de temperamento mercurial, o presidente Jair Bolsonaro estava irascível nas primeiras semanas de agosto, na esteira da revelação de Crusoé a respeito dos cheques no valor de 89 mil reais depositados por Fabrício Queiroz e pela mulher dele na conta da primeira-dama Michelle. Àquela altura, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro cumpria prisão domiciliar e o advogado Frederick Wassef, que defendia o filho 01 do presidente, havia deixado a causa após a polícia descobrir que ele escondia Queiroz em sua casa em Atibaia, no interior de São Paulo. O caso tinha voltado com toda força ao noticiário e Bolsonaro estava ensandecido com a ampla exposição negativa de Michelle. Dois dias após ameaçar encher “a boca” de um jornalista “na porrada”, por tê-lo questionado a respeito dos pagamentos efetuados à primeira-dama, o presidente topou receber no Palácio do Planalto as duas advogadas que haviam assumido a defesa de Flávio — o senador não compareceu porque havia contraído Covid-19. A ideia era discutir um novo plano de ação que pudesse anular as provas obtidas pelo Ministério Público do Rio no esquema de rachid, que teria desviado 6 milhões de reais dos cofres da Assembleia Legislativa fluminense. Para o encontro, que ocorreu no dia 25 de agosto sem nenhum registro na agenda oficial, Bolsonaro convocou o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, e Alexandre Ramagem, o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, aparato estatal criado há 21 anos para municiar o presidente da República de informações estratégicas a fim de proteger o estado.
Uma reunião extraoficial envolvendo o chefe da Abin e um ministro para tratar de assuntos particulares do filho do presidente por si só já configuraria o completo achincalhe de Bolsonaro aos princípios basilares da administração pública, como o da impessoalidade, mas o desenrolar dessa trama transformou o episódio em um escândalo que rompe o limite da legalidade. Já se sabia que depois desse encontro, conforme mostrou a Revista Época na sexta-feira, 11, dois relatórios clandestinos que teriam sido produzidos dentro da agência de inteligência do governo contendo orientações sobre as ofensivas necessárias para anular as provas do Caso Queiroz haviam sido encaminhados a Flávio Bolsonaro via WhatsApp, um no dia 20 de setembro e outro em 8 de outubro. Na sequência, os documentos informais foram repassados para as advogadas do senador.
Nos últimos dias, Crusoé teve acesso às duas mensagens e confirmou com uma fonte primária do caso o que até agora não havia sido revelado: o material clandestino foi enviado diretamente pelo próprio diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, ao filho 01 de Bolsonaro. A informação é de extrema importância e gravidade no momento em que o governo, sob os olhares do STF, mobiliza-se para tentar esvaziar a tese de que os relatórios foram confeccionados por um órgão de estado que, sem o menor pudor e de maneira clandestina, extrapolou os seus limites legais para atender a um pedido pessoal do presidente da República em benefício de seu filho enrolado na Justiça. O próprio procurador-geral da República, Augusto Aras, reconheceu a gravidade do episódio, a despeito da ressalva de que “precisaria ser provado”. Cabe a ele investigar. Se o fizer, conhecerá o que a Crusoé contará em detalhes a seguir: como funciona a estrutura paralela, o tal “sistema particular de informações” montado por Bolsonaro na Abin. E também saberá por que a ação forjada no interior da agência de inteligência para ajudar a defesa de Flávio Bolsonaro no caso do rachid aparentemente não deixou rastros.
A narrativa foi apresentada pelas advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach no encontro com Bolsonaro, em agosto. Segundo elas, a investigação do MP do Rio fora iniciada após uma devassa ilegal nos dados fiscais no senador feita por um grupo de auditores da Receita Federal do Rio. A origem oficial do inquérito, contudo, é o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, que apontou as movimentações financeiras atípicas de 1,2 milhão de reais nas contas de Queiroz e de dezenas de assessores de outros gabinetes da Alerj, a partir de comunicações enviadas pelo Itaú, banco onde eram pagos os salários dos funcionários da casa.
É quando entra em ação a estrutura paralela montada dentro da Abin para atuar conforme os interesses do clã Bolsonaro. Mesmo na condição de diretor-geral da agência de inteligência, Ramagem, afirmam interlocutores que acompanham o caso, sabia que não poderia se valer dos trâmites oficiais do órgão para ajudar na defesa do filho do presidente. Por isso, acionou, nas palavras de servidores concursados do órgão, a central bolsonarista da Abin, criada extraoficialmente e alheia ao procedimento padrão da agência para “levantar antecedentes” e “montar dossiês” a pedidos expressos do governo. A estrutura foi batizada de Coordenação-geral de Credenciamento de Segurança e Análise de Segurança Corporativa e tem como chefe o agente da PF Marcelo Bormevet. Defensor aguerrido do presidente nas redes sociais e amigo de Carlos Bolsonaro, o filho 02, o policial integrou com Ramagem a equipe de segurança de Bolsonaro durante a campanha de 2018 e é chamado na Abin de o “homem do capitão”.
Criada em julho deste ano por um decreto de Bolsonaro, a coordenação comandada por Bormevet fica alojada dentro do Centro de Inteligência Nacional, o CIN, responsável por planejar e executar atividades de inteligência para identificar e conter “ameaças à segurança e à estabilidade do estado e da sociedade” decorrentes de atividades criminosas. A estrutura sob a batuta de Bormevet tem origem em um setor que já existia na agência e era responsável por levantar a ficha pretérita de pessoas que seriam contratadas pelo governo, poderiam frequentar o Palácio do Planalto e todos aqueles que cultivam alguma relação com o poder público. A diferença é que antes o setor era chefiado por um oficial da Abin, responsável por acessar os bancos de dados da agência e produzir os relatórios, a partir de pedidos feitos pela própria presidência, via GSI, por algum ministério ou estatal. Tudo pelas vias legais e registrado no Sistema Brasileiro de Informação, o Sisbin, protegido por sigilo. Quando a demanda não condizia com a função por questões políticas, por exemplo, o pedido era negado. Foi justamente para poder fugir do procedimento legal e agir às escuras, longe dos olhos do aparato oficial do estado e das autoridades, que Ramagem nomeou Bormevet e outro policial federal para a coordenação sob o guarda-chuva do CIN. Desde então, os pedidos, muitos deles nada republicanos, passaram a ser enviados diretamente e sem intermediários do gabinete de Ramagem para o “homem do capitão”, que ocupa uma sala no primeiro andar da sede da Abin, em Brasília, em frente a uma escada por onde os servidores do segundo andar precisam passar para se deslocar no prédio.
O diretor da Abin se aproveitou dessa informalidade para negar o fato mais de uma vez. Em resposta a um pedido de esclarecimentos feitos pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, Ramagem afirmou que a agência “não emitiu relatórios de inteligência” para a defesa de Flávio ou “qualquer documento relacionado ao tema”, sem mencionar a informação encaminhada por ele pelo aplicativo de celular ao senador, com orientações para o caso Alerj. Ao STF, parlamentares da Rede pediram acesso às mensagens de WhatsApp trocadas entre ambos. Chefe do GSI, a quem a Abin está vinculada, Augusto Heleno disse que a notícia era uma “narrativa fantasiosa”, mas confirmou o encontro das advogadas com o presidente em agosto, alegando que havia um suposto risco à segurança da família presidencial em jogo e que isso justificaria a presença dele e de Ramagem. Segundo Heleno, após o relato das advogadas, ele entendeu que não era o caso de atuação da Abin e nenhuma providência foi tomada pelo órgão.
As mensagens enviadas a Flávio com alternativas a serem adotadas por sua defesa para pressionar a Receita e o Serviço Federal de Processamento de Dados, o Serpro, a fornecerem as informações solicitadas pelas advogadas do senador, incluindo a sugestão de substituição de pessoas acomodadas em postos estratégicos no Fisco e até a demissão do Corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, evidenciam que o plano de criar uma “Abin paralela” denunciado pelo ex-ministro Gustavo Bebianno foi levado adiante.
Em junho de 2019, Carluxo emplacou Ramagem no comando da Abin. Delegado da PF desde o início dos anos 2000, ele virou amigo do vereador durante a campanha de 2018, quando o policial chefiou a equipe de segurança de Bolsonaro após o atentado sofrido pelo presidente em Juiz de Fora, Minas Gerais. Desde então, os laços com a família presidencial se estreitaram. Ele foi o escolhido do presidente para assumir o comando da PF em abril, após a demissão do ex-ministro Sergio Moro em razão da interferência de Bolsonaro na corporação. A nomeação de Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal acabou, no entanto, barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, por “desvio de finalidade”. Em setembro, já com plenos poderes na Abin, o chefe do órgão nomeou o agente da PF Marcelo Bormevet para trabalhar com ele em Brasília, o mesmo que hoje é apontado como o “pai” dos relatórios enviados a Flávio. O “homem do capitão” não seria o único da escolta de Bolsonaro na campanha a integrar os quadros da agência de inteligência. No mesmo dia, a pedido de Ramagem, o Ministério da Justiça efetivou a requisição do agente Flávio Antônio Gomes para ser o superintendente da Abin em São Paulo. Neste ano, a pasta também efetivou a ida do papiloscopista da PF João Paulo Dondelli para trabalhar na Presidência da República — hoje ele é diretor do Departamento de Projetos Especiais do Ministério das Comunicações. Ou seja, todo o quarteto, “o delegado federal e os três agentes”, que integrou a chamada “Equipe Messias” em 2018, como foi batizada a escolta do então candidato a presidente Jair Messias Bolsonaro, está de volta à ativa. Só que agora, à exceção de Dondelli, que passou a atuar nas Comunicações, a serviço da Abin do B de Ramagem. Augusto Aras precisa cumprir o seu papel como PGR e investigar o caso que, segundo ele próprio reconheceu, é muito grave.
Em nota enviada a Crusoé, a Abin diz que “nenhum relatório foi produzido com tema, assunto, texto ou o título exposto, tampouco a forma e o conteúdo dispostos correspondem a relatórios confeccionados por servidores em atividade na ABIN”. Segundo a agência de inteligência, “as notícias apontam desvio de finalidade, respaldadas apenas em trechos mal redigidos, com linguajar atécnico e sem relação com a atividade de inteligência. Nenhum documento, relatório ou informe de defesa em processo criminal foi transmitido por qualquer meio a parlamentar federal ou a sua defesa através do Diretor-Geral, Diretores, Coordenadores ou Assessores”. Ainda de acordo com a Abin, o órgão acionou sua Corregedoria interna e a Advocacia-Geral da União para que adotem medidas capazes de elucidar a verdade dos fatos. Imprescindível a apresentação dos supostos relatórios às autoridades públicas, para complementação das apurações cabíveis, demonstração de não vinculação a servidores dos quadros da ABIN e consequente apuração de responsabilização pela desinformação”.
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