Adriano Machado/Crusoé

A Abin do B

O próprio diretor-geral, Alexandre Ramagem, enviou a Flávio Bolsonaro por WhatsApp os relatórios produzidos clandestinamente pela Agência Brasileira de Inteligência para orientar a sua defesa no caso da rachadinha
18.12.20

Dono de temperamento mercurial, o presidente Jair Bolsonaro estava irascível nas primeiras semanas de agosto, na esteira da revelação de Crusoé a respeito dos cheques no valor de 89 mil reais depositados por Fabrício Queiroz e pela mulher dele na conta da primeira-dama Michelle. Àquela altura, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro cumpria prisão domiciliar e o advogado Frederick Wassef, que defendia o filho 01 do presidente, havia deixado a causa após a polícia descobrir que ele escondia Queiroz em sua casa em Atibaia, no interior de São Paulo. O caso tinha voltado com toda força ao noticiário e Bolsonaro estava ensandecido com a ampla exposição negativa de Michelle. Dois dias após ameaçar encher “a boca” de um jornalista “na porrada”, por tê-lo questionado a respeito dos pagamentos efetuados à primeira-dama, o presidente topou receber no Palácio do Planalto as duas advogadas que haviam assumido a defesa de Flávio — o senador não compareceu porque havia contraído Covid-19. A ideia era discutir um novo plano de ação que pudesse anular as provas obtidas pelo Ministério Público do Rio no esquema de rachid, que teria desviado 6 milhões de reais dos cofres da Assembleia Legislativa fluminense. Para o encontro, que ocorreu no dia 25 de agosto sem nenhum registro na agenda oficial, Bolsonaro convocou o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, e Alexandre Ramagem, o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, aparato estatal criado há 21 anos para municiar o presidente da República de informações estratégicas a fim de proteger o estado.

Uma reunião extraoficial envolvendo o chefe da Abin e um ministro para tratar de assuntos particulares do filho do presidente por si só já configuraria o completo achincalhe de Bolsonaro aos princípios basilares da administração pública, como o da impessoalidade, mas o desenrolar dessa trama transformou o episódio em um escândalo que rompe o limite da legalidade. Já se sabia que depois desse encontro, conforme mostrou a Revista Época na sexta-feira, 11, dois relatórios clandestinos que teriam sido produzidos dentro da agência de inteligência do governo contendo orientações sobre as ofensivas necessárias para anular as provas do Caso Queiroz haviam sido encaminhados a Flávio Bolsonaro via WhatsApp, um no dia 20 de setembro e outro em 8 de outubro. Na sequência, os documentos informais foram repassados para as advogadas do senador.

Nos últimos dias, Crusoé teve acesso às duas mensagens e confirmou com uma fonte primária do caso o que até agora não havia sido revelado: o material clandestino foi enviado diretamente pelo próprio diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, ao filho 01 de Bolsonaro. A informação é de extrema importância e gravidade no momento em que o governo, sob os olhares do STF, mobiliza-se para tentar esvaziar a tese de que os relatórios foram confeccionados por um órgão de estado que, sem o menor pudor e de maneira clandestina, extrapolou os seus limites legais para atender a um pedido pessoal do presidente da República em benefício de seu filho enrolado na Justiça. O próprio procurador-geral da República, Augusto Aras, reconheceu a gravidade do episódio, a despeito da ressalva de que “precisaria ser provado”. Cabe a ele investigar. Se o fizer, conhecerá o que a Crusoé contará em detalhes a seguir: como funciona a estrutura paralela, o tal “sistema particular de informações” montado por Bolsonaro na Abin. E também saberá por que a ação forjada no interior da agência de inteligência para ajudar a defesa de Flávio Bolsonaro no caso do rachid aparentemente não deixou rastros.

Lula Marques/Fotos PúblicasLula Marques/Fotos PúblicasAras sabe que o episódio é grave, mas diz que tudo “tem que ser provado”
Uma das pontas visíveis da operação são os textos enviados a Flávio Bolsonaro, taxativos quanto à finalidade do plano: “Defender FB (Flávio Bolsonaro) no caso Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. Havia uma crença entre os envolvidos – talvez mais desejo do que crença – de que o senador havia sido vítima de arapongagem dentro da Receita Federal e que isso poderia anular o processo, o que a defesa já havia tentado com outros argumentos, sem sucesso.

A narrativa foi apresentada pelas advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach no encontro com Bolsonaro, em agosto. Segundo elas, a investigação do MP do Rio fora iniciada após uma devassa ilegal nos dados fiscais no senador feita por um grupo de auditores da Receita Federal do Rio. A origem oficial do inquérito, contudo, é o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, que apontou as movimentações financeiras atípicas de 1,2 milhão de reais nas contas de Queiroz e de dezenas de assessores de outros gabinetes da Alerj, a partir de comunicações enviadas pelo Itaú, banco onde eram pagos os salários dos funcionários da casa.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressO esquema de rachid de Flávio desviou 6 milhões de reais, segundo o MP
Na reunião do dia 25 de agosto no Planalto, Bolsonaro teria questionado Ramagem se a Abin sabia dos tais desvios de conduta no Fisco, onde agentes teriam usado “senhas invisíveis” para acessar dados de contribuintes com o objetivo de subsidiar futuras investigações. A resposta negativa do chefe da agência de inteligência fez surgir um silêncio quase sepulcral entre os presentes. Na visão de quem participou do encontro, o clima de constrangimento da reunião instigou Ramagem a entrar de cabeça no caso, para tentar corrigir a “falha” perante o chefe. O diretor da Abin teria ficado com uma cópia da representação apresentada naquele mesmo dia à Receita Federal pelas defensoras de Flávio. O objetivo era ter acesso a todas as pesquisas realizadas nos sistemas internos do órgão envolvendo o nome do senador, da mulher dele e das empresas do casal desde 2015.

É quando entra em ação a estrutura paralela montada dentro da Abin para atuar conforme os interesses do clã Bolsonaro. Mesmo na condição de diretor-geral da agência de inteligência, Ramagem, afirmam interlocutores que acompanham o caso, sabia que não poderia se valer dos trâmites oficiais do órgão para ajudar na defesa do filho do presidente. Por isso, acionou, nas palavras de servidores concursados do órgão, a central bolsonarista da Abin, criada extraoficialmente e alheia ao procedimento padrão da agência para “levantar antecedentes” e “montar dossiês” a pedidos expressos do governo. A estrutura foi batizada de Coordenação-geral de Credenciamento de Segurança e Análise de Segurança Corporativa e tem como chefe o agente da PF Marcelo Bormevet. Defensor aguerrido do presidente nas redes sociais e amigo de Carlos Bolsonaro, o filho 02, o policial integrou com Ramagem a equipe de segurança de Bolsonaro durante a campanha de 2018 e é chamado na Abin de o “homem do capitão”.

Criada em julho deste ano por um decreto de Bolsonaro, a coordenação comandada por Bormevet fica alojada dentro do Centro de Inteligência Nacional, o CIN, responsável por planejar e executar atividades de inteligência para identificar e conter “ameaças à segurança e à estabilidade do estado e da sociedade” decorrentes de atividades criminosas. A estrutura sob a batuta de Bormevet tem origem em um setor que já existia na agência e era responsável por levantar a ficha pretérita de pessoas que seriam contratadas pelo governo, poderiam frequentar o Palácio do Planalto e todos aqueles que cultivam alguma relação com o poder público. A diferença é que antes o setor era chefiado por um oficial da Abin, responsável por acessar os bancos de dados da agência e produzir os relatórios, a partir de pedidos feitos pela própria presidência, via GSI, por algum ministério ou estatal. Tudo pelas vias legais e registrado no Sistema Brasileiro de Informação, o Sisbin, protegido por sigilo. Quando a demanda não condizia com a função por questões políticas, por exemplo, o pedido era negado. Foi justamente para poder fugir do procedimento legal e agir às escuras, longe dos olhos do aparato oficial do estado e das autoridades, que Ramagem nomeou Bormevet e outro policial federal para a coordenação sob o guarda-chuva do CIN. Desde então, os pedidos, muitos deles nada republicanos, passaram a ser enviados diretamente e sem intermediários do gabinete de Ramagem para o “homem do capitão”, que ocupa uma sala no primeiro andar da sede da Abin, em Brasília, em frente a uma escada por onde os servidores do segundo andar precisam passar para se deslocar no prédio.

Agencia SenadoHá indícios de que a “Abin Paralela” de Bolsonaro funcione na sede da agência
Tão logo a notícia sobre os “relatórios de inteligência” produzidos pela Abin para ajudar a defesa de Flávio Bolsonaro foi publicada pela revista Época, os oficiais da Abin creditaram a ação a Bormevet. Não bastasse o canal direto com o gabinete de Ramagem, a suspeita de que o agente da PF é o “pai” dos informes encaminhados a Flávio foi reforçada depois que se descobriu que as mensagens com as orientações transmitidas ao senador não cumpriam minimamente os padrões da agência. Todos os oficiais da Abin, no curso preparatório, aprendem a formular os relatórios de acordo com as normativas do órgão. Somente alguém de outra carreira, como um agente da PF, entendem funcionários graduados do órgão de inteligência, poderia ter sido responsável por aqueles informes, que além de não apresentarem numeração não exibiam sequer a diagramação padronizada do órgão – além de terem sido enviados a Flávio Bolsonaro em formato de texto, via WhatsApp.

O diretor da Abin se aproveitou dessa informalidade para negar o fato mais de uma vez. Em resposta a um pedido de esclarecimentos feitos pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, Ramagem afirmou que a agência “não emitiu relatórios de inteligência” para a defesa de Flávio ou “qualquer documento relacionado ao tema”, sem mencionar a informação encaminhada por ele pelo aplicativo de celular ao senador, com orientações para o caso Alerj. Ao STF, parlamentares da Rede pediram acesso às mensagens de WhatsApp trocadas entre ambos. Chefe do GSI, a quem a Abin está vinculada, Augusto Heleno disse que a notícia era uma “narrativa fantasiosa”, mas confirmou o encontro das advogadas com o presidente em agosto, alegando que havia um suposto risco à segurança da família presidencial em jogo e que isso justificaria a presença dele e de Ramagem. Segundo Heleno, após o relato das advogadas, ele entendeu que não era o caso de atuação da Abin e nenhuma providência foi tomada pelo órgão.

As mensagens enviadas a Flávio com alternativas a serem adotadas por sua defesa para pressionar a Receita e o Serviço Federal de Processamento de Dados, o Serpro, a fornecerem as informações solicitadas pelas advogadas do senador, incluindo a sugestão de substituição de pessoas acomodadas em postos estratégicos no Fisco e até a demissão do Corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, evidenciam que o plano de criar uma “Abin paralela” denunciado pelo ex-ministro Gustavo Bebianno foi levado adiante.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéGustavo Bebianno revelou as tratativas para criar um aparato de inteligência
Em março deste ano, doze dias antes de morrer após sofrer um mal súbito, o ex-advogado de Bolsonaro que foi demitido do governo depois de um entrevero com Carlos Bolsonaro, afirmou que o filho 02 do presidente tinha apresentado a ideia de criar um aparato dentro da agência de inteligência para satisfazer interesses políticos e pessoais do clã presidencial. Nas palavras de Bebianno, Carluxo apareceu com os nomes de “um delegado federal e três agentes” para compor o aparato. O ex-ministro e o general Santos Cruz, que à época era secretário de Governo e depois foi demitido, teriam alertado Bolsonaro de que a ideia poderia levar ao impeachment do presidente. Segundo Bebianno, Bolsonaro “não enfrentou o assunto e a coisa foi cozinhada”. Os fatos, contudo, sempre teimosos, mostram que não. O plano foi levado adiante.

Em junho de 2019, Carluxo emplacou Ramagem no comando da Abin. Delegado da PF desde o início dos anos 2000, ele virou amigo do vereador durante a campanha de 2018, quando o policial chefiou a equipe de segurança de Bolsonaro após o atentado sofrido pelo presidente em Juiz de Fora, Minas Gerais. Desde então, os laços com a família presidencial se estreitaram. Ele foi o escolhido do presidente para assumir o comando da PF em abril, após a demissão do ex-ministro Sergio Moro em razão da interferência de Bolsonaro na corporação. A nomeação de Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal acabou, no entanto, barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, por “desvio de finalidade”. Em setembro, já com plenos poderes na Abin, o chefe do órgão nomeou o agente da PF Marcelo Bormevet para trabalhar com ele em Brasília, o mesmo que hoje é apontado como o “pai” dos relatórios enviados a Flávio. O “homem do capitão” não seria o único da escolta de Bolsonaro na campanha a integrar os quadros da agência de inteligência. No mesmo dia, a pedido de Ramagem, o Ministério da Justiça efetivou a requisição do agente Flávio Antônio Gomes para ser o superintendente da Abin em São Paulo. Neste ano, a pasta também efetivou a ida do papiloscopista da PF João Paulo Dondelli para trabalhar na Presidência da República — hoje ele é diretor do Departamento de Projetos Especiais do Ministério das Comunicações. Ou seja, todo o quarteto, “o delegado federal e os três agentes”, que integrou a chamada “Equipe Messias” em 2018, como foi batizada a escolta do então candidato a presidente Jair Messias Bolsonaro, está de volta à ativa. Só que agora, à exceção de Dondelli, que passou a atuar nas Comunicações, a serviço da Abin do B de Ramagem. Augusto Aras precisa cumprir o seu papel como PGR e investigar o caso que, segundo ele próprio reconheceu, é muito grave.

 

Em nota enviada a Crusoé, a Abin diz que “nenhum relatório foi produzido com tema, assunto, texto ou o título exposto, tampouco a forma e o conteúdo dispostos correspondem a relatórios confeccionados por servidores em atividade na ABIN”. Segundo a agência de inteligência, “as notícias apontam desvio de finalidade, respaldadas apenas em trechos mal redigidos, com linguajar atécnico e sem relação com a atividade de inteligência. Nenhum documento, relatório ou informe de defesa em processo criminal foi transmitido por qualquer meio a parlamentar federal ou a sua defesa através do Diretor-Geral, Diretores, Coordenadores ou Assessores”. Ainda de acordo com a Abin, o órgão acionou sua Corregedoria interna e a Advocacia-Geral da União para que adotem medidas capazes de elucidar a verdade dos fatos. Imprescindível a apresentação dos supostos relatórios às autoridades públicas, para complementação das apurações cabíveis, demonstração de não vinculação a servidores dos quadros da ABIN e consequente apuração de responsabilização pela desinformação”.

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