Carlos Fernandodos santos lima

A república da mentira

11.12.20

A Constituição Federal foi a grande vencedora no recente julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de reeleição dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados na mesma legislatura. Entretanto, mais que a alegria de ter prevalecido o que já estava previsto no artigo 57, o significativo e preocupante foi o placar apertado em relação à interpretação – se é que cabe alguma interpretação além do reconhecimento da literalidade do seu comando – ao texto claro e inequívoco proibindo “a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.

Essa divergência no plenário do STF só confirma o que temos falado há muito tempo. Alguns ministros do Supremo agem movidos por interesses obscuros (ou não tão obscuros assim), criando interpretações que são condizentes com sua vontade e não com a da Constituição Federal. Ou seja, primeiro decidem quais interesses desejam atender e depois criam o “juridiquês” para enfeitar a decisão.

Basta ver a lista daqueles que resolveram atropelar o texto de lei e tornar possível o sonho de Rodrigo Maia de se tornar o primeiro-ministro de fato, para entender toda a jurisprudência recente do STF. Temos um eixo de ministros (Toffoli, Gilmar e Lewandowski) que representa os interesses da classe política e do atual sistema de manutenção do poder pelo abuso sistemático do poder econômico. Esse núcleo comandou não somente a recente tentativa de burla à Constituição, como ainda, pelo mesmo motivo, vem destruindo as investigações e condenações da operação Lava Jato.

Por sua vez, o escolhido pelo atual presidente, Kássio Nunes Marques, que se alinha quase automaticamente com esse “eixo”, divergiu apenas para fazer valer a vontade de seu padrinho Jair Bolsonaro. Assim, votou contra Maia para beneficiar Arthur Lira, líder do Centrão e envolvido em escândalos de corrupção, mas torturou a Constituição Federal para satisfazer a ambição de Alcolumbre, apoiador do presidente.

Em sentido contrário da subordinação da ordem jurídica aos interesses políticos, encontram-se os ministros Fachin, Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Fux. Esses ministros aliam-se em defesa da Constituição e da subordinação da atividade política a ela. Como ministros pendulares (swing votes), há os ministros Marco Aurélio, conhecido por ser imponderável, e o calouro Alexandre de Mores, que embarcou em mais uma canoa furada ao apoiar Gilmar Mendes nessa tentativa de agradar ao grupo de Rodrigo Maia.

Aliás, Alexandre de Moraes já embarcou em sua curta carreira como membro do STF em outras aventuras contra a Constituição, como a de censurar a revista Crusoé apenas para satisfazer Dias Toffoli. Tudo isso mostra que vivemos no Supremo Tribunal Federal um equilíbrio de forças muito delicado e que a qualquer momento há risco de novas interpretações que transformem proibido em permitido, ou vice-versa, apenas para satisfazer poderosos. E é nisso, mais do que em grupelhos de autoritários fascistoides, que se encontra o risco para nossa democracia.

Esse “eixo” de ministros que representam interesses políticos é exatamente aquele que vem destruindo todos outros avanços no combate à corrupção obtidos nos últimos 20 anos. Aliás, foi justamente um acordão nacional entre Rodrigo Maia e Dias Toffoli, então presidentes da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, no começo de 2009, com a adesão posterior do próprio presidente Bolsonaro, que iniciou o paulatino desmonte dos órgãos de controle e o silenciamento de vozes discordantes, como a de Deltan Dallagnol, por meio de múltiplos procedimentos disciplinares contra ele conduzidos por subalternos da classe política. É esse “eixo” de ministros e parlamentares que apoia agora projetos para destruir a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei de Lavagem de Dinheiro.

Por fazerem de tudo para satisfazer os interesses poderosos que representam, esses mesmos ministros e parlamentares aproveitam-se de uma válida preocupação com a garantia aos acusados do devido processo legal para disfarçar seu propósito de deixar livres políticos pegos em indiscutíveis casos de corrupção. São esses mesmos ministros que se aliam a garantistas a soldo para justificar que um acusado de crime do colarinho branco fique livre, desfrutando de um padrão de vida incompatível com seus ganhos lícitos, como se não fosse perigoso para a sociedade.

E vamos engolindo essa ladainha nas manchetes dos jornais, como se realmente organizações criminosas que roubaram bilhões não só da Petrobras, mas de obras da Copa, Olimpíadas, do metrô de São Paulo e Rio de Janeiro, marmitas de presos e merendas de estudantes não fossem tão perigosas quanto traficantes de entorpecentes. Entretanto, Fernandinho Beira-Mar está preso e os colarinhos brancos investigados, acusados e até condenados por corrupção estão no poder novamente.

Infelizmente, muitos, inclusive na grande imprensa, movidos também por interesses ou ideologias ou simplesmente ingênuos, acreditam que política é esse festival de absurdos que vemos nos tribunais e no Congresso Nacional. Isso a que assistimos não é política no sentido verdadeiro da palavra, da conciliação de interesses legítimos na busca do bem comum. O que temos visto na história do Brasil são manifestações da impostura e da mentira, e as justificativas de Gilmar Mendes para trocar o “não” pelo “sim”, acompanhadas entusiasticamente por Toffoli e Lewandowski, não podem ser consideradas apenas interpretação, mas sim a manifestação mais atual dessa doença congênita à nossa formação pública: há os que podem, mesmo contra a Constituição, e há os que não podem, mesmo que com toda a lei a seu favor.

Como disse certa vez Rui Barbosa, há “uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vezes não sabem se estão ou não estão mentindo”. Precisamos escapar dessa cegueira moral ou da conveniência de nossos interesses privados e exercer clara e abertamente a crítica às decisões judiciais e aos projetos de lei que representem a manutenção de um sistema antidemocrático e não-republicano de apropriação do público pelo privado. De outra forma, iremos logo ver a Constituição tornar-se letra morta.

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