Adriano Machado/CrusoéComo de hábito, Gilmar convidou nomes proeminentes do Judiciário e também da política

Virada no STF barra o golpe branco

Por 6 votos a 5, maioria no Supremo impõe derrota ao relatório de Gilmar Mendes e proíbe reeleição de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre
07.12.20

Ministros do Supremo Tribunal Federal têm, como função primordial, zelar pela aplicação da Constituição Federal e, na data da posse, como manda o rito, assumem o compromisso de “bem e fielmente” cumprir os deveres do cargo. Tão logo passaram a integrar a instância máxima do Judiciário, entretanto, as decisões de boa parte dos ministros muitas vezes contrariaram a promessa feita perante à sociedade. A cena esteve prestes a se repetir embalada pelo voto a favor da reeleição de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia para a presidência do Senado e da Câmara, respectivamente, divulgado ainda na sexta-feira, 4, do ministro-relator Gilmar Mendes. Ele foi acompanhado integralmente por Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e, com ressalvas, por Kassio Marques – este último defendeu ser vedada a reeleição “de quem já esteja ou venha a ser reeleito”, tese que, se houvesse prevalecido, impediria o presidente da Câmara de concorrer novamente, mas não o do Senado.

Durante o fim de semana, no entanto, deu-se a virada. Por 6 a 5, o STF decidiu não dar permissão para a reeleição de Davi Alcolumbre ao comando do Senado. A Rodrigo Maia foi imposta uma derrota ainda maior: por causa do voto de Kassio Marques, a votação terminou 7 a 4 contra a recondução do político do DEM à presidência da Câmara.

A divergência foi aberta pelo ministro Marco Aurélio na própria sexta-feira, 4. “A tese não é, para certos segmentos, agradável, mas não ocupo, ou melhor, ninguém ocupa, neste Tribunal, cadeira voltada a relações públicas. A reeleição, em si, está em moda, mas não se pode colocar em plano secundário o § 4º do artigo 57 da Constituição Federal”, escreveu no voto. O voto do decano do Supremo foi acompanhado pelas ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber e, neste domingo, 6, a maioria se formou com os votos adicionais do presidente da corte Luiz Fux e dos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.

Um dos votos mais contundentes contra a reeleição de Maia e Alcolumbre foi proferido na noite de sábado, 5, pela ministra Rosa Weber, no qual afirmou que o impedimento de reeleição numa mesma legislatura estava expresso na Constituição Federal – e, portanto, não haveria margem para outras interpretações. “Este Supremo Tribunal Federal, enquanto seu guardião por força de expresso texto constitucional, não pode legitimar comportamentos transgressores da própria integridade do ordenamento constitucional, rompendo indevidamente os limites semânticos que regem os procedimentos hermenêuticos para vislumbrar indevidamente, em cláusula de vedação, uma cláusula autorizadora”, escreveu.

Fux, o último dos ministros a votar, na condição de presidente da corte, seguiu na mesma linha, ao afirmar que, uma vez instado a se pronunciar, o STF deve preservar a Constituição Federal transformando o texto em “norma concretamente obedecida no mundo real”. “Com efeito, não compete ao Poder Judiciário funcionar como atalho para a obtenção facilitada de providências perfeitamente alcançáveis no bojo do processo político-democrático, ainda mais quando, para tal mister, pretende-se desprestigiar a regra constitucional em vigor”, afirmou em seu voto.

Os ministros analisavam uma ação direta de inconstitucionalidade em que o PTB, de Roberto Jefferson, pedia que o STF reafirmasse o que a Constituição estabelece de forma cristalina: os presidentes da Câmara e do Senado, assim como os demais integrantes das Mesas Diretoras, não podem ser reeleitos em uma mesma legislatura. Por decisão de Gilmar Mendes, relator do processo, o debate ocorreu no plenário virtual, sem a necessidade de os magistrados se reunirem por videoconferência transmitida ao vivo, defendendo suas posições aos olhos da população — no modelo escolhido, todos depositaram seus votos, por escrito, no sistema do Supremo.

O relatório de Gilmar, que terminou derrotado, foi publicado ainda na madrugada de quinta para sexta-feira, 4. Em 63 páginas, o ministro considerou “que os membros das respectivas Casas do Congresso Nacional” teriam “a prerrogativa de, em sede regimental, por questão de ordem ou mediante qualquer outro meio de fixação de entendimento próprio à atividade parlamentar, deliberar especificamente sobre a matéria”. Ao fixar a tese, fazendo da Constituição letra morta, Gilmar afirmou que não caberia interferência do Judiciário na autonomia do Legislativo, argumentando que a reeleição para o comando do Congresso trata-se do que, no jargão jurídico, é chamado de questão interna corpores. “O parlamento deve gozar de espaço de conformação organizacional à altura dos desafios postos pela complexidade da dinâmica política. Em verdade, determinadas conjunturas e situações de fato podem não apenas reputar desejável, como também exigir que a vedação à recondução para o mesmo cargo da Mesa possa ser objeto de exceção: desde que assim a Casa do Congresso Nacional repute necessário para fins de preservação de sua autonomia constitucional”, escreveu.

Apesar da linha de argumentação de Gilmar Mendes, o histórico de decisões do Supremo mostra que ministros já optaram pela interferência em questões internas do parlamento quando as investidas de congressistas desrespeitaram a Constituição. Um exemplo ocorreu em 2017, logo após o STF decretar o afastamento de Aécio Neves, do PSDB de Minas Gerais, do mandato. À época, em um acordo de delação premiada, o empresário Joesley Batista entregou uma gravação de 30 minutos em que o tucano pedia 2 milhões de reais para, supostamente, pagar sua defesa na Lava Jato.

Senadores articularam para que a deliberação sobre a manutenção ou derrubada da medida cautelar fosse fechada. Foram impedidos por decisão de Alexandre de Moraes, que, citando a Constituição, determinou votos nominais e abertos na análise do caso. A Carta Magna não diz que modelo deve ser adotado. Até 2001, o artigo 53 estabelecia votação secreta, mas a expressão foi suprimida pela Emenda Constitucional 35, deixando, assim, o formato em aberto.

O mesmo ocorreu no caso da prisão de Delcídio Amaral, em 2015. O então presidente do Senado, Renan Calheiros, tentou realizar a votação de forma sigilosa, mas acabou impedido por decisão de Fachin. “Não havendo menção no art. 53, § 2.º, da Constituição, à natureza secreta da deliberação ali estabelecida, há de prevalecer o princípio democrático que impõe a indicação nominal do voto dos representantes do povo”, escreveu o ministro.

A história está repleta de episódios semelhantes. Mesmo assim, a ala garantista do STF alardeava que era preciso dar um basta na judicialização epidêmica de temas e conflitos para que a decisão política prevalecesse. Balela. O ativismo judicial deve ser combatido quando o Judiciário comete excessos, como nos momentos em que legisla, algo que o STF tem feito ao longo dos anos, a exemplo de quando equiparou, por analogia, a homofobia e a transfobia ao crime de racismo — embora se trate de uma causa justa, apenas o Congresso pode criar novos tipos penais e tipificação criminal por analogia é teratológico. A judicialização contumaz, porém, não pode ser usada como motivo para o descumprimento ipsis litteris da Carta Magna. Foi isso que os seis ministros que votaram contra a reeleição de Maia e Alcolumbre conseguiram, ao fim e ao cabo, evitar.

Nos próximos dias, começará uma nova etapa da corrida pelo comando das duas casas do Congresso. Agora, no próprio parlamento. Não importam os protagonistas, as regras não podem mudar a depender da qualidade deles ou das conveniências desse ou daquele grupo. O governo Jair Bolsonaro joga ao lado de Arthur Lira, integrante do Progressistas e um dos principais expoentes do Centrão. Ao longo da semana, o partido do parlamentar articulou um manifesto contrário à reeleição, ao lado de partidos de oposição. Gilberto Kassab, presidente do PSD, e Valdemar Costa Neto, que lidera o PL, também estão no time de Lira, ajudando-o com o aval do governo. O alagoano espera contar ainda com Avante, PSC, PTB, Patriota e Pros.

Proibido de se reeleger, Maia envidará todos os esforços agora para emplacar seu sucessor. Seu bloco, por ora, está fraturado. Entre as opções, os nomes mais fortes do grupo são Marcos Pereira, do Republicanos, e Baleia Rossi, do MDB. Correm por fora, ainda, Aguinaldo Ribeiro, do Progressistas, e Luciano Bivar, do PSL. Com cerca de 130 deputados, a esquerda ainda não se convenceu de nenhum dos nomes postos e, pelas contas do parlamento, será o “fiel da balança”, dando a vitória a quem apoiar. O atual presidente da Câmara recebeu integrantes da oposição em um jantar para discutir as eleições na terça-feira, 1º. No encontro, ouviu pedidos por posiçōes de destaque na Mesa Diretora e em comissões importantes.

No Salão Azul, Alcolumbre, que planejava a própria recondução ao cargo desde 2019, viu sua hegemonia se dissolver enquanto crescia a resistência de parlamentares ao movimento inconstitucional. As críticas, antes restritas aos integrantes do “Muda, Senado”, passaram a ecoar entre nomes graúdos do Salão Azul, como Tasso Jereissati, do PSDB, e Jaques Wagner, do PT.

Com uma bancada de 13 senadores, o MDB fazia jogo duplo. Apesar de parecer estar ao lado de Alcolumbre, a legenda já avisava antes mesmo da decisão do Supremo que não ia embarcar em uma “reeleição com liminar” e que não havia abandonado o projeto de candidatura própria. No partido, os nomes mais fortes são os de Eduardo Braga e Renan Calheiros. Caciques da sigla ainda apostam que Simone Tebet pode crescer entre as negociações devido à capacidade de agregar forças.

No “Muda, Senado”, Jorge Kajuru, do Cidadania, e Major Olímpio, do PSL, colocaram-se à disposição para a disputa, mas muito dificilmente reuniriam os votos necessários para se tornarem competitivos. Tasso Jereissati e Antonio Anastasia, do PSD, são citados como potenciais concorrentes, embora ambos tenham afirmado aos mais próximos que não pretendem topar a missão.

Enquanto as principais lideranças do país discutem eleições internas previstas para fevereiro, o Brasil permanece à deriva em meio à mais grave crise sanitária do século. No parlamento, não há pistas sobre quando a Lei Orçamentária Anual de 2021 será votada. Caso esse texto fique pendente, o governo inicia o ano que vem podendo executar, por mês, somente 1/12 do que está previsto na proposta enviada ao Congresso. Além disso, projetos apontados pelo Ministério da Economia como essenciais para a retomada econômica, como a autonomia do Banco Central, o novo marco regulatório do gás e o projeto de cabotagem, conhecido como BR do Mar, proposta que busca facilitar a navegação comercial da costa brasileira, seguem parados. Nem mesmo a regulamentação do Fundeb, principal mecanismo de financiamento da educação básica brasileira, passou pelo crivo do plenário.

Na quinta-feira, 3, o ministro da Economia, Paulo Guedes, atribuiu a um “impasse político” causado pela disputa pela presidência da Câmara a paralisação das discussões sobre a reforma tributária no Congresso. Segundo o chefe da equipe econômica, enquanto parlamentares governistas querem a aprovação do projeto do Banco Central e da reforma administrativa, Maia e Aguinaldo Ribeiro priorizam a mudança do sistema tributário. Em meio às divergências, nenhuma proposição anda.

O engessamento das pautas mostrava claramente que as propostas não eram vistas por Maia e Alcolumbre como tão urgentes quanto as eleições de fevereiro. Frustradas suas expectativas, ancoradas no desejo irrefreável do DEM, partido de ambos, de dar as cartas na sucessão de Bolsonaro em 2022, espera-se agora que o Congresso volte a olhar menos para projetos de poder do que para os anseios da população.

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