MarioSabino

O fim do mundo

04.12.20

Chegamos a este final de ano bem mais pobres do que éramos nos estertores de 2019, com as exceções de praxe. A economia ruiu, empresas respiram por aparelhos, a fila do desemprego estendeu-se dramaticamente e, apesar dos pensamentos mágicos infantis, as perspectivas não são as melhores para o 2021 que se avizinha, pelo menos nestas latitudes. É claro que poderia ser pior se não houvesse vacinas contra a Covid-19. A velocidade da recuperação, no entanto, dependerá do ritmo da imunização em massa e da comprovação da efetividade dos diferentes compostos na escala necessária de bilhões de pessoas. No segundo aspecto, há que ser otimista. Dois meses atrás, a expectativa era que a eficácia das vacinas em desenvolvimento giraria em torno de 50%, mas elas alcançaram mais de 90% nos testes clínicos. Resta saber por quanto tempo durará a proteção. Não é improvável que tenhamos de nos vacinar regularmente contra a doença, assim como ocorre com a gripe. De qualquer forma, fomos salvos pelo gongo da ciência.

A minha introdução banal pode ser arrematada com outra constatação trivial repetida todos os dias nos jornais: a de que a pandemia deixou ainda mais claras as diferenças sociais dentro dos países e também entre as nações. Por falta de moradias decentes, reservas financeiras próprias e ausência de assistência médica, os cidadãos pobres sofreram e morreram mais. Quanto aos países, alguns dos ricos tiveram índices gerais de óbitos até mais elevados do que os dos desvalidos, mas eles pagaram o preço de ter populações mais idosas e, portanto, mais suscetíveis à doença, além de contar com estatísticas mais precisas. No entanto, por serem justamente mais ricos, a vacinação em massa será rápida — está prevista para começar neste dezembro — e suas economias deverão voltar a crescer dentro de relativo curto espaço de tempo.

Todas essas banalidades inevitáveis nas análises diárias de economistas, sociólogos e jornalistas não apagam uma certeza que, com a pandemia, talvez tenha se alargado um pouco para além dos círculos científicos onde cultivá-la é quase obrigação profissional: a certeza de que a nossa existência como espécie tem data para terminar. Ela pode estar ainda bem longínqua, haverá inúmeras vitórias até lá, as nossas fontes de energia terão se tornado inteiramente sustentáveis, seremos capazes de destruir meteoros antes que eles atinjam o planeta, mas essa data deverá chegar muito antes que o Sol se transforme numa Gigante Vermelha e engula a Terra; muito antes que a galáxia de Andrômeda colida com a Via-Láctea.

Na nossa arrogância como espécie, transformamos o fim do mundo — entenda-se a nossa extinção — em entretenimento de Discovery Channel, visto que as hecatombes espaciais estão previstas para ocorrer daqui a bilhões de anos, e mesmo as ameaças virais e bacterianas que nos rodeiam ainda parecem todas suplantáveis. O triunfo sobre a Covid-19, por exemplo, seria outra prova da capacidade de nos perpetuarmos. A arrogância é compreensível: como o homem é o único ser que têm consciência de que vai morrer, é preciso tentar ignorar que a espécie também perecerá, e não apenas por obra de nós mesmos, como na época da Guerra Fria.

Posso dar a impressão de encarnar aqui um daqueles malucos que gritam que o fim do mundo é inevitável e, portanto, deveríamos deixar de cultivar o progresso, parar com tudo e rezar. De novo, não é nada disso. Trata-se do contrário. A beleza de apreender a inevitabilidade do fim como espécie é compreender que a nossa humanidade reside na ação. Existiremos enquanto agirmos. Enquanto continuarmos a tentar transformar utopias em fatos, no plano pessoal e coletivo. Há ações e utopias boas e más, mas o pressuposto da moralidade é o movimento. Na cena derradeira do filme Melancholia, de Lars Von Trier, as duas irmãs protagonistas improvisam uma cabana para aguardar o fim iminente. É uma construção simbólica poderosa para a nossa condição.

Volto ao jornalismo. E você volte ao que estava fazendo, por favor. Existamos na banalidade, na perseguição de objetivos que nos impusemos e também nas grandes conquistas, como é o caso das vacinas contra a Covid-19, até que a natureza decida que todos já demos o que tínhamos de dar. Estamos mais pobres neste momento, mas quem sabe não de espírito.

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