SergioMoro

Breve interlúdio

04.12.20

No artigo anterior, Protegendo a democracia I, sobre projetos relevantes para o país, defendi o fim da reeleição para cargos no Poder Executivo a partir de 2023.

Assumi o compromisso de que o próximo artigo seria o segundo de uma série sobre “propostas que visam afastar esses mesmos riscos [autoritários] e assim fortalecer a democracia”.

Vou quebrar temporariamente o compromisso para um breve interlúdio.

Por mais de 22 anos atuei como juiz federal de primeira instância. Tive vários casos relevantes. Destaco, nos últimos anos, minha atuação como juiz federal responsável em Curitiba pelos processos atinentes à Operação Lava Jato. Ela gerou uma onda de anticorrupção que se alastrou por toda a América Latina. Representou o fim da impunidade, pelo menos como regra, dos crimes de corrupção no Brasil e em outros países da região. Há uma dúvida relevante: se a impunidade, como regra, será restabelecida diante de pontuais reveses nos últimos anos, mas isso ainda é uma questão em aberto.

Depois, atuei como ministro da Justiça e Segurança Pública para implementar forte agenda contra o crime organizado, a criminalidade violenta e o crime de corrupção. Tal agenda envolvia ações executivas do MJPS e dos órgãos vinculados, bem como alterações legislativas cujo carro-chefe foi o projeto de lei anticrime. Deixei o governo pelas razões já conhecidas.

Cumpri minha quarentena jurídica por seis meses e, após o seu término, aceitei o convite para ingressar no time de especialistas da empresa internacional de consultoria Alvarez&Marsal, para atuar na área de disputas e investigações.

Continuarei a fazer o que sempre fiz, especificamente promover a agenda anticorrupção e de integridade, mas agora diretamente no setor privado.

A Operação Lava Jato funcionou como um toque de despertar ou como um momento de clareza para o empresariado brasileiro. Empresas que se envolveram em práticas de suborno reiterado sofreram danos reputacionais e financeiros severos quando o sistema de corrupção foi trazido à luz. Aquelas que mais rapidamente reconheceram sua responsabilidade e celebraram acordos de leniência com as autoridades foram as que conseguiram melhor minorar os danos e iniciar o processo de recuperação. As empresas que demoraram foram mais duramente afetadas.

Implementar sistemas efetivos de compliance – de fachada não valem, já os vimos na Lava Jato –, realizar procedimentos de investigação corporativa diante da suspeita de ilícitos internos, promover procedimentos de diligência devida nos negócios, fazem parte atualmente da política de integridade que deve ser adotada por qualquer empresa séria.

As empresas não precisam esperar o Congresso, o governo ou o Judiciário para adotar políticas de integridade. As melhores, aliás, avançam, nessa área, independentemente do que acontece na política interna, e têm os olhos para o mercado internacional, cientes que devem adotar os standards de integridade no nível mais alto para que tenham condições de competir em um mundo cada vez menor.

Não se trata apenas de promover integridade e prevenir corrupção. Exige-se, entre outras coisas, conformidade com a preservação do meio ambiente – e sabemos como essa questão hoje tem importância fundamental no mercado internacional –, com o respeito e o tratamento digno dos acionistas, dos empregados, dos consumidores e das comunidades que cercam as empresas. As condutas empresariais devem levar em conta profit, people e planet, os três “pês” em um sentido bem diferente do qual usamos no Brasil.

Empresas e empresários podem fazer a diferença. Lembro do exemplo de Libero Grassi, empresário italiano que publicamente recusou-se a pagar o pizzo – a taxa de proteção – à Máfia siciliana e que, por isso, foi assassinado. Na via Vittorio Alfieri, em Palermo, há uma placa em sua homenagem que diz: “Aqui foi assassinado Libero Grassi, empresário, homem corajoso, morto pela Máfia, pela omertà das associações das indústrias, pela indiferença dos partidos e pela omissão do estado”. Apesar da tragédia, sua morte inspirou o surgimento de associações empresariais como o Adiopizzo, que se recusam coletivamente a render-se à extorsão da Cosa Nostra.

No Brasil, não precisamos chegar a tanto. O modo de fazer negócios no país pode mudar em definitivo. Hoje isso depende mais das empresas do que do poder público. O setor privado brasileiro avançou, impulsionado pela Lava Jato, e pode avançar mais ainda. Isso pode ocorrer através de ações individuais das empresas ou pelo agir coletivo delas.

Minha ida para o setor privado representa a continuidade da luta pela integridade, agora para ajudar as empresas a fazer a coisa certa. Ouvi nos últimos dias algumas críticas precipitadas. Algumas surpreendentemente vieram até mesmo de pessoas suspeitas de terem recebido suborno ou que nada fizeram contra o sistema de corrupção revelado pela Lava Jato. Esclareço: não há conflito de interesse, pois não atuarei em casos envolvendo empresas da Lava Jato. Mesmo sendo desnecessário, pois jamais ultrapassaria a linha ética, isso está explicitado no meu contrato. Ainda trabalharei em setor diferente da A&M daquele que atende as referidas empresas. Agregue-se que a A&M não defende as empresas em questão dos crimes descobertos pela Lava Jato, mas, sim, atua na reestruturação de sua governança ou na recuperação judicial, algo completamente diferente.

A única crítica que se pode fazer é que, de fato, mudei de “lado do balcão”, indo do setor público para o privado, mas os meus princípios e os meus compromissos com a integridade e a luta contra a corrupção continuam os mesmos, como sempre foram. Ajudar as empresas brasileiras e estrangeiras com políticas de integridade e anticorrupção pode fazer a diferença e transformar o país independentemente da política. Você não precisa ser juiz, ministro ou presidente para fazer a coisa certa.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO