Política mofada
Nem mesmo a maior crise sanitária do século mudou a cara das campanhas no Brasil. A expectativa de que a corrida eleitoral de 2020 seria mais digital e, portanto, mais barata em razão da pandemia não se concretizou e a disputa foi tão analógica quanto as de décadas atrás. O balanço das despesas eleitorais expõe essa realidade. Contratação de cabos eleitorais, distribuição de santinhos e adesivos, publicidade em carros de som, comícios e panfletagens consumiram a maior parte dos 2 bilhões de reais do fundão eleitoral. Os candidatos a prefeito e vereador gastaram, por exemplo, 223,9 milhões de reais só com publicidade impressa, valor quase nove vezes maior que os 25,4 milhões de reais declarados para o pagamento de impulsionamento de conteúdo em redes sociais. O montante investido em contratação de atividades de militância de rua foi de 88,4 milhões de reais, quase 20 vezes mais do que os 4,7 milhões de reais pagos a empresas de criação de páginas na internet. Com a gastança com gráficas pelo Brasil afora, seria possível distribuir santinhos e adesivos para quase 1,5 bilhão de pessoas, o equivalente a 10 vezes o tamanho do eleitorado do país – e boa parte dessa montanha de papel foi parar literalmente no lixo.
A campanha baseada no corpo-a-corpo com o eleitorado, em que se gasta mais sola de sapato do que dinheiro com engajamento nas redes sociais, permite conquistar votos de moradores de áreas mais distantes dos grandes centros urbanos e de eleitores pouco afeitos à internet. Mas essa forma de pedir votos gera maior risco de irregularidades, como o caixa dois, segundo órgãos de fiscalização. É muito mais fácil desviar o dinheiro público que agora abastece os comitês a partir de contratos com gráficas e contratação de gente para distribuir santinhos, por exemplo, do que em acertos com gigantes da internet – e essa é uma das explicações para que muitos candidatos ainda torrem milhões com a campanha à moda antiga.
Entre os mecanismos mais arcaicos de captação de votos está a própria contratação dos cabos eleitorais. São pessoas pagas pelos candidatos para, uniformizadas com a logomarca dos políticos, distribuir panfletos e adesivos, segurar bandeiras às margens de ruas movimentadas ou em eventos como comícios. A Justiça Eleitoral recebeu até agora 131,8 mil notas fiscais de contratações de militantes de rua.
Uma breve análise das maiores despesas realizadas nessa rubrica indica coincidências suspeitas. Três das cinco empresas que mais ganharam dinheiro com a oferta de serviços de cabos eleitorais para campanha de 2020 atuam na área de limpeza e mantêm contratos com o poder público. A maior despesa com militantes de rua foi realizada por Emanuel Pinheiro, candidato do MDB à prefeitura de Cuiabá que disputa o segundo turno neste domingo, 29. Ele contratou a Cosmotron Construtora, Saneamento e Tecnologia por 844 mil reais para serviços como entrega de material gráfico nas ruas da capital mato-grossense. A empresa teve um contrato de coleta de lixo com uma prefeitura questionado.
Em 2018, a gastança milionária com a contratação de cabos eleitorais serviu de subterfúgio para outra irregularidade: o uso de candidaturas laranjas. Muitas mulheres receberam dinheiro do fundão eleitoral, mas as despesas declaradas em suas prestações de contas pagaram gastos de campanha de candidatos do sexo masculino. Em julho, a Polícia Federal indiciou o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, por omissão de gastos na prestação de contas. Segundo a PF, pelo menos 31 cabos eleitorais que panfletaram para o então candidato do MDB foram pagos com dinheiro da campanha de candidatas mulheres que supostamente atuaram como laranjas.
Na contratação de gráficas, o campeão de gastos é o candidato eleito para a prefeitura de Salvador, Bruno Reis, do DEM. Quase 3,2 milhões de reais, cerca de 31% dos 10,3 milhões de reais em despesas declaradas até agora pelo aliado de ACM Neto, foram repassados a gráficas. O maior contrato, de 931,5 mil reais, prevê apenas a confecção de santinhos. Outro, de 682 mil reais, foi firmado para a produção de galhardetes e bandeiras. Ao todo, foram oito contratos para a compra também de adesivos, pragões e praguinhas, como são chamados os autocolantes usados nas roupas.
Fabiano Cazeca, candidato do PROS à prefeitura de Belo Horizonte, também figura entre os políticos que registram os maiores contratos com gráfica. O empresário investiu 1,4 milhão de reais do próprio bolso. Parece não ter dado muito certo: ele conquistou apenas 2,5 mil votos. Já Elinaldo Araújo, do DEM, eleito para a prefeitura de Camaçari, na Bahia, registrou o terceiro maior gasto individual com publicidade impressa no Brasil entre os declarados até agora – foram 10 contratos com gráficas que somaram 1,7 milhão de reais. Nesse caso, pagos com dinheiro público. Com esse recurso, seria possível produzir 350 santinhos para cada um dos 160 mil moradores do município baiano. “Das nossas apurações, em regra geral, gastos com gráfica e material impresso em campanhas são o grande caminho para fraudes. Esse tipo de despesa já alimentou grandes esquemas”, afirma o procurador regional eleitoral Sérgio Medeiros, que coordena o Ministério Público Eleitoral em São Paulo. “No caso de gastos com impulsionamento de conteúdo, em que os pagamentos são feitos a grandes empresas, como Facebook e Instagram, há a emissão de nota fiscal, é tudo preto no branco. Infelizmente, apesar dos esforços de fiscalização, o gasto elevado com gráficas ainda dá azo a fraudes”, acrescenta Medeiros.
Nesse quesito, a disputa pela prefeitura de Fortaleza se destaca: os candidatos que concorrem ao segundo turno na capital cearense estão entre os que mais gastaram com campanha digital. Capitão Wagner, do PROS, gastou 2,8 milhões de reais até agora. Desse montante, a maior despesa foi com impulsionamento de conteúdo: ele repassou 526 mil reais ao Facebook e 216 mil reais ao Google para promover buscas associadas ao seu nome. Ainda assim, o candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro investiu 647 mil reais em publicidade impressa, como santinhos e adesivos. Seu rival, José Sarto, do PDT, apoiado pelos irmãos Cid e Ciro Gomes, investiu 1,1 milhão de reais em plataformas da internet.
Outra forma ainda muito usada para fazer campanhas é a publicidade em carro de som. Alheios à poluição sonora, muitos candidatos alugam trios elétricos para fazer ecoar suas mensagens aos eleitores em altos decibéis. No total, os gastos somavam 10,4 milhões de reais até o início desta semana. Um dos campeões é o candidato à prefeitura de Alagoinhas, na Bahia, Radiovaldo Costa, do PT. Dos 92 mil reais de receita de sua campanha, o petista usou 60 mil reais para contratar carro de som.
E para quem achava que os comícios não teriam vez na pandemia, as declarações à Justiça Eleitoral contrariaram as previsões: foram gastos 4,3 milhões de reais. O valor inclui montagem de estruturas e palcos, luz, telão, show pirotécnico e locução – nada mais contraditório para quem, como a esmagadora maioria dos políticos, prometeu ao eleitorado a adoção de medidas capazes de combater a disseminação do vírus.
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