Sérgio A. Castro/FlickrAs despesas com cartões corporativos somaram quase 42 milhões de reais em 2020

O drible do cartão

O escândalo da tapioca não impediu que funcionários do governo continuassem usando cartões corporativos para despesas exóticas ou mesmo para compras vultosas que deveriam ser feitas por licitação
27.11.20

Uma funcionária encarregada de administrar as residências oficiais da Presidência da República, entre elas o Palácio da Alvorada, visitou uma refinada loja de velas e essências perfumadas de Brasília no último dia 17 de setembro. Saiu de lá com uma sacola de produtos, depois de pagar 62 reais com um cartão corporativo do governo federal. A mesma servidora fez outras 124 compras semelhantes em estabelecimentos como ótica, loja de bicicletas, de tecidos, de artigos para cama, mesa e banho, de cabides e araras para roupas, além de produtos de utilidade doméstica, como taças e louças, em um total de 68,3 mil reais. Ela está entre os 3.782 funcionários do governo federal que têm em mãos um cartão corporativo. A despesa total das faturas desses cartões somou 41,9 milhões de reais em 2020 – mesmo com a pandemia, que deixou em casa quase todo o funcionalismo público, o montante é praticamente igual ao despendido no ano anterior.

Em 2007, uma tapioca de 8,30 reais comprada pelo então ministro Orlando Silva às expensas do contribuinte gerou uma crise política. Treze anos depois, os cartões de crédito oficiais ainda reúnem uma infinidade de despesas questionáveis, feitas com pouquíssima transparência. Crusoé identificou gastos em lojas de artigos de festas, produtos para piscinas, clínicas veterinárias, estúdio de pilates, academia de ginástica, drogarias e farmácias de manipulação, supermercados, livrarias e até funerária. Como o governo não publica documentos como notas fiscais ou justificativas para os gastos, a caixa preta inviabiliza qualquer controle por parte do contribuinte e abre brechas para abusos e irregularidades.

Além da gastança registrada em nome de servidores públicos, sem detalhamento, há outro problema ainda mais grave, porém antigo: o crescimento contínuo de desembolsos sigilosos realizados pela Presidência da República. Até agora, as despesas secretas com o cartão corporativo já são 20% superiores às registradas no ano passado. De janeiro a novembro, as faturas confidenciais do Planalto subiram de 13 milhões de reais para 15,5 milhões de reais em comparação com o mesmo período de 2019. Entre 2017 e 2018, durante o governo de Michel Temer, o gasto médio anual da Presidência com cartões foi de 10,6 milhões de reais.

Sob a gestão Jair Bolsonaro, esse valor cresceu 35%. A justificativa de que todos os gastos são secretos para garantir a segurança da família presidencial não tem embasamento legal: no final do ano passado, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional um dispositivo jurídico de 1967 que autorizava o sigilo indiscriminado das despesas da Presidência da República, e, sobretudo, do Gabinete de Segurança Institucional. “O Estado Democrático de Direito instaurado pela Constituição de 1988 estabeleceu, como regra, a publicidade das informações referentes às despesas públicas, prescrevendo o sigilo como exceção, apenas quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Quanto maior for o sigilo, mais completas devem ser as justificativas para que, em nome da proteção da sociedade e do Estado, tais movimentações se realizem”, diz o acórdão da decisão do STF, publicado em dezembro de 2019 e até hoje descumprido pelo Palácio do Planalto.

O governo Bolsonaro reduziu o número de portadores de cartões corporativos, mas o volume de gastos permanece intacto – tanto em 2018 como em 2019, o total anual de despesas, incluindo as declaradas por todos os ministérios, foi de 52,2 milhões de reais. No período, o número de servidores autorizados a quitar despesas com cartão corporativo caiu de 6 mil para 5,3 mil. A gastança levou o Tribunal de Contas da União a abrir uma auditoria para investigar as despesas secretas da Presidência. O TCU baixou a medida em junho, com previsão de análise completa de todos os gastos secretos a partir de 2017, o que abrange, portanto, as gestões Temer e Bolsonaro – como o procedimento tramita em sigilo no tribunal, não é possível saber o que já foi feito até agora. Em outro processo, os técnicos do tribunal já haviam esmiuçado os dados até 2016. Há três anos, a corte determinou ao Planalto que, ao final dos mandatos presidenciais, as despesas de caráter reservado fossem publicadas na internet. Os ministros cobraram ainda que o governo divulgasse imediatamente, logo após cada compra, as informações de aquisições de alimentos, materiais de higiene e limpeza. À época, porém, a Advocacia-Geral da União e a Secretaria-Geral da Presidência recorreram, o acórdão foi suspenso e o processo foi esquecido.

Leopoldo Silva/Agência SenadoLeopoldo Silva/Agência SenadoO TCU abriu uma auditoria para investigar as despesas secretas da Presidência
“Transparência e publicidade são regras gerais da administração pública. O agente político responsável pela gestão de recursos públicos, ou seja, de dinheiro do povo, deve em regra prestar contas de todos os gastos e, com o cartão corporativo, não deve ser diferente”, defende o senador Fabiano Contarato, da Rede, autor da representação apresentada ao TCU. Em julho, Contarato apresentou um projeto de lei que prevê aumento da transparência dos gastos com cartões da Presidência e proíbe o sigilo integral da fatura, quando apenas alguns dos gastos forem classificados como ultrassecretos, secretos ou reservados. Por causa da pandemia, a proposta está parada.

Entre os gastos da Presidência, poucos aparecem detalhados no Portal da Transparência – as compras da zeladora das residências oficiais detalhadas no início desta reportagem são uma exceção. Apenas motoristas e seguranças, que realizam despesas sistemáticas com combustível, e alguns funcionários a serviço de ex-presidentes da República têm os desembolsos detalhados publicamente. Em outros ministérios, o registro de informações sobre as compras é mais recorrente. Em agosto, um servidor da Superintendência Regional do Trabalho de Minas Gerais, órgão vinculado ao Ministério da Economia, gastou 3,2 mil reais em diárias em um hotel na praia de Boa Viagem, em Recife – todos os servidores em trânsito recebem diárias do governo para pagar hospedagem, alimentação e locomoção. Na lista de despesas, há dezenas de gastos com hotéis em redes de luxo, como Atlantica, Meliá e Marriot. Também em agosto, um servidor do Ibama de Goiás gastou 83,88 reais em uma loja de brinquedos. No mês anterior, um funcionário da Embrapa entregou notas fiscais de uma loja de guitarras.

O cartão corporativo do governo federal também foi usado por um servidor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro para quitar uma despesa de 624 reais em uma loja de cosméticos. Já um funcionário da Receita Federal gastou 595 reais em uma perfumaria, em São Paulo. Apesar de o segmento dos estabelecimentos levantar suspeita sobre os gastos, as despesas podem ter ocorrido dentro da legalidade. O problema é que a falta de detalhamento dos desembolsos impede o controle público, um dos pilares da Lei de Acesso à Informação. Assim, não é possível verificar se viagens em aviões particulares feitas por servidores do IBGE no Acre, por exemplo, ou visitas a um consultório odontológico feitas por um servidor da Polícia Civil do Distrito Federal, têm relação com as atividades desenvolvidas pelos funcionários – as viagens de táxi aéreo custaram 900 reais e o policial de Brasília gastou pouco mais de 2 mil reais.

Os cartões corporativos também foram usados para centenas de compras em grandes redes varejistas, como a Havan, de Luciano Hang. Uma delas, de 3,8 mil reais, foi efetuada por um servidor do Comando da Aeronáutica na filial de Anápolis da rede. Constam ainda da lista um pagamento de 1.046 reais a uma academia de ginástica e outro de 26,6 mil reais com um estúdio de pilates na região de Campinas – ambos realizados por servidores do Ministério da Defesa. O rol de despesas com o cartão do governo também tem 168 pagamentos em churrascarias, 521 em farmácias e 1.646 em postos de gasolina.

Patrícia Santos/Estadão ConteúdoPatrícia Santos/Estadão ConteúdoEm 2007, uma tapioca comprada pelo então ministro Orlando Silva provocou uma crise política
Pela legislação, os cartões corporativos do governo federal devem ser usados para quitar despesas enquadradas como suprimentos de fundo, que são uma espécie de adiantamento concedido a alguns servidores previamente autorizados, mediante o cumprimento de uma série de requisitos. Em primeiro lugar, as despesas devem ser excepcionais e imprevisíveis. O empenho é feito em nome do servidor e não há obrigatoriedade de licitação. Os pagamentos devem observar, entretanto, os mesmos princípios que regem a administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, assim como o princípio da isonomia e da aquisição mais vantajosa para os cofres públicos.

O cartão só pode ser usado para a compra de material de consumo quando o produto não estiver disponível no almoxarifado do órgão público e quando não existirem fornecedores contratados ou registrados – hoje, com as atas de registro de preços, é possível identificar fornecedores aptos para atender boa parte das necessidades. A lei também veda o fracionamento de despesas, ou seja, a realização de numerosas pequenas compras, que poderiam ser feitas em volume maior e com preços mais vantajosos, por meio de concorrência. Por fim, os responsáveis pelas despesas devem observar se elas estão vinculadas de fato às atividades do setor e, obviamente, se atendem o interesse público. A lei também autoriza o uso dos cartões para contratar pequenos reparos, conserto de móveis, serviços gráficos e confecção de carimbos ou chaves, por exemplo.

Na lista de despesas com o cartão corporativo do governo estão dezenas de compras de produtos e materiais hospitalares, realizadas por instituições como universidades federais, pelo Hospital das Forças Armadas e pelo Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia do Ministério da Saúde, que adquiriu, por exemplo, produtos no valor de 94,9 mil reais sem licitação. A empresa que fez a venda é investigada pelo Ministério Público do Distrito Federal em uma operação que apura fraudes em contratos de testes de Covid-19. Para o professor de Economia da Universidade de Brasília e especialista em gastos públicos Roberto Piscitelli, muitas despesas realizadas com cartão corporativo poderiam ser licitadas. “O uso do cartão revela, no mínimo, falta de planejamento, açodamento e improvisação. Ele virou pretexto para que essas despesas sejam realizadas de forma extraordinária. Produtos hospitalares e medicamentos, por exemplo, deveriam ser comprados em quantidades maiores, com regularidade, por meio de licitação, com transparência, competitividade e com menor preço, certamente”, afirma o economista.

Indagada sobre o sigilo dos gastos do Planalto, a despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal, a Secretaria de Comunicação da Presidência não deu resposta até a publicação desta reportagem. O Ministério da Economia também não respondeu se tem planos para melhorar a fiscalização das despesas com os cartões corporativos ou para reduzir o seu uso em compras que poderiam ser licitadas.

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