Lula Marques/Fotos Públicas

O algoz da Lava Jato

O plano de Augusto Aras prevaleceu e a maior operação anticorrupção da história, com suas forças-tarefas enfraquecidas ou extintas, está asfixiada
27.11.20

O método maquiavélico para promover ações impopulares já virou lugar-comum. Para reduzir danos, o poderoso que deseja acabar com um projeto exitoso e bem avaliado, por razões que raramente são republicanas, comunica ao grande público que fará exatamente o contrário, anunciando mudanças para torná-lo melhor e mais eficiente. Só que não. É essa lógica política que o procurador-geral da República, Augusto Aras, aplicou para implodir a Lava Jato. Na última quarta-feira, 25, o chefe do Ministério Público Federal encaminhou uma proposta ao Conselho Superior da instituição para criar cargos exclusivos de combate à corrupção em todas as capitais do país. À primeira vista, como sugere o texto redigido por Aras, a ideia parece convergir com os interesses de quem quer caçar crimes e punir criminosos. Os novos procuradores seriam cedidos por um ano para as “unidades” do Paraná e do Rio de Janeiro, onde “colaborarão” com as investigações, “se inteirarão das boas práticas ali adotadas” e depois as “replicarão” em seus estados de origem. Por trás da retórica, porém, está a consumação do plano para desmontar as forças-tarefa da Lava Jato, a fórmula de sucesso que impulsionou a maior ação já feita contra crimes do colarinho branco, e extinguir definitivamente a operação que incomoda uma extensa parcela da elite política e empresarial brasileira. Uma atuação que não apenas mina o cerco à impunidade como também compromete a recuperação de milhões de reais desviados dos cofres públicos.

Não faltam motivos para desconfiar do real objetivo do procurador-geral, que já disse ser contra o modelo de força-tarefa e que pretende acabar com o “lavajatismo” para “institucionalizar” os grupos de investigação. Aras encaminhou a proposta ao subprocurador Alcides Martins, seu aliado no conselho do MPF e relator do projeto de “redesenho” da estrutura da instituição, sem consultar a Lava Jato do Rio e de Curitiba sobre suas reais necessidades. Pior: sem garantir a continuidade das duas forças-tarefas, cujos prazos de funcionamento terminam no início de dezembro e no final de janeiro, respectivamente. Com mais de 400 investigações em curso, os coordenadores dos dois grupos já pediram a prorrogação por mais um ano e a manutenção do mesmo efetivo de investigadores, com dedicação exclusiva aos casos de corrupção. Ainda não tiveram nenhuma resposta. A urgência de Aras é mesmo para viabilizar o seu plano. No ofício enviado ao conselheiro, ele afirma que pelo fato de a proposta provocar a movimentação de muitos procuradores, “os meses de final de ano são os mais propícios para a realização dessas remoções” e, por isso, há uma “premência na adoção dessa solução”. Conselheiros ouvidos por Crusoé disseram que foram pegos de surpresa com a proposta e que sua implementação ainda depende de uma análise do colegiado, o que ocorrerá nesta sexta-feira, 27. Para eles, ao apresentar a ideia em cima da hora, antes de sequer prorrogar os dois braços mais importantes da Lava Jato, Aras tenta pressionar o conselho a referendar o seu plano de asfixiar a operação até extingui-la.

O desmonte paulatino das forças-tarefas ocorre de forma pouco ruidosa, com despachos aparentemente burocráticos, mas que produzem efeitos práticos altamente danosos. O principal deles é a revogação – ou, de maneira mais sutil, a não prorrogação – das liberações para que procuradores atuem exclusivamente na Lava Jato, sob o argumento de que é preciso reduzir gastos. Na prática, todos os casos relacionados à operação são distribuídos para o gabinete de um único procurador, por conexão. Por causa do acúmulo de casos complexos, que envolvem agentes poderosos, doleiros e sofisticados métodos de lavagem de dinheiro, esse “procurador natural” solicita ao PGR o auxílio de colegas, para que se dediquem exclusivamente às investigações dos esquemas já descobertos. Foi assim que surgiu a força-tarefa de Curitiba com Deltan Dallagnol, em abril de 2014, para investigar os desvios ligados à Petrobras, e a do Rio, há quatro anos, para investigar a organização criminosa de Sérgio Cabral. É unânime entre aqueles que atuam na linha de frente do combate à corrupção a importância da dedicação exclusiva dos procuradores nesses casos. Sem isso, as chances de sucesso são drasticamente reduzidas. Desde que assumiu o comando do MPF por indicação de Bolsonaro, há pouco mais de um ano, porém, Aras caminha na contramão, apesar do discurso de “fortalecer” as investigações. A doutrina Aras já resultou no fim da Lava Jato de São Paulo, com o pedido de demissão coletiva dos integrantes da força-tarefa, em setembro, e na fragmentação da Greenfield, operação iniciada em 2016, em Brasília. para investigar desvios bilionários em fundos de pensão, na Caixa Econômica Federal, no FGTS e em aportes do BNDES.

Paulo Lisboa/FolhapressPaulo Lisboa/FolhapressColetiva da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba em 2016: modelo de sucesso está em processo de desmonte
O plano do procurador-geral ganhou forma em julho, após a reação das forças-tarefas contra a atabalhoada investida da PGR para acessar os bancos de dados sigilosos da Lava Jato nos estados — um movimento capitaneado por Lindora Araújo, principal auxiliar do procurador na área criminal. Na ocasião, Aras lançou um edital para recrutar membros do MPF em todo o país dispostos a atuar como colaboradores nas operações, sem dedicação exclusiva, ou seja, acumulando o trabalho de combate à corrupção com as atividades de seus cargos de origem. A iniciativa foi um fracasso. Apenas doze procuradores se inscreveram. Desses, quatro foram alocados na força-tarefa de Curitiba, um reforço para o grupo de 13 investigadores que teve pouco efeito prático. Das centenas de procedimentos em curso, eles só atuam em oito casos mais “autônomos”, porque desconhecem as minúcias dos esquemas investigados há mais de seis anos pela Lava Jato, além de permanecer em seus estados acumulando os processos locais, que não têm a menor relação com os esquemas de corrupção.

Desde a saída de Deltan Dallagnol, em setembro, em meio a dois processos disciplinares e sob pressão velada de Aras, a instabilidade da força-tarefa de Curitiba só se agravou. Naquele mês, o PGR usou o poder de sua caneta para suspender uma decisão liminar de uma conselheira do Ministério Público Federal, Maria Caetana Cintra, e prorrogar a Lava Jata paranaense por apenas quatro meses. Maria Caetana havia estendido os trabalhos por um ano, como queriam os procuradores. “O Conselho Nacional (do Ministério Público) decidiu que Vossa Excelência é absolutamente incompetente para fixar prazo de prorrogação de força-tarefa de Lava Jato. Esta é uma competência exclusiva do procurador-geral da República”, disse Aras à subprocuradora na ocasião.

A falta de interesse em razão das condições de trabalho oferecidas por Aras também atingiu em cheio a Greenfield, que, assim como a Lava Jato, investigava crimes no sistema financeiro e resultou na prisão de figurões da política, como os ex-ministros Henrique Eduardo Alves e Geddel Vieira Lima, ambos do MDB. A Greenfield também se debruçou sobre a atuação do ministro Paulo Guedes em negócios com fundos de pensão antes de assumir a cadeira no governo de Jair Bolsonaro. Também foi nessa operação que a J&F, a holding da JBS controlada pelos irmãos Joesley e Wesley Batista, celebrou um acordo de leniência para devolver 10,3 bilhões de reais, abrindo caminho para a delação premiada que revelou os pagamentos ilícitos do grupo para dezenas de políticos importantes.

Gilmar F.Estevam/FolhapressGilmar F.Estevam/FolhapressCelso Três, o novo coordenador da Greenfield, reza na cartilha de Aras e é um crítico ferrenho da Lava Jato
Diante da teia de investigados que só crescia, o então coordenador da força-tarefa, Anselmo Lopes, chegou a pedir o apoio de 15 procuradores com dedicação exclusiva. O pleito nunca foi atendido. A equipe chegou a contar com cinco investigadores, mas desde que Anselmo deixou a coordenação, também em setembro, todos os procuradores perderam a exclusividade. Uma das integrantes que divide as apurações sobre esquemas envolvendo cifras bilionárias com seus processos comuns no Ceará, por exemplo, teve de participar nesta semana de uma audiência de reintegração de posse na cidade de Limoeiro do Norte, no interior do estado, cujo orçamento anual corresponde a apenas três vezes o valor de 51 milhões de reais encontrados no bunker de Geddel em Salvador.

Em sua carta de despedida da Greenfield, Anselmo Lopes lembrou que, além de questões familiares, “pesou bastante” em sua decisão “a insuficiência de dotação de uma estrutura adequada de trabalho à força-tarefa”. Mais uma vez, Aras abriu um edital em busca de um substituto. Primeiro, com membros do MPF em Brasília, mas ninguém se habilitou. Procuradores ouvidos por Crusoé apontam os mesmos problemas para toparem a empreitada: a falta de estrutura e de apoio do PGR, o que pode fazer com que acumulem centenas de casos que jamais seriam resolvidos antes da prescrição. Aras fez, então, uma consulta a procuradores de todo o país. Na última quarta-feira, 25, a PGR divulgou que o único inscrito, Celso Antônio Três, assumirá o posto, sem precisar acumular a operação com casos de Novo Hamburgo, no interior do Rio Grande do Sul, mas também sem a obrigação de se mudar para Brasília, onde correm as ações da Greenfield. Experiente, Celso Três foi um dos responsáveis por dar partida ao caso Banestado, em 1997, que identificou pela primeira vez o esquema de evasão de divisas operado no Paraná pelo doleiro Alberto Youssef, um dos primeiros delatores da Lava Jato. Mas agora o novo coordenador da Greenfield é um crítico ferrenho das últimas ações anticorrupção realizadas no país, reproduzindo a versão de que os procuradores de Curitiba e o ex-juiz Sérgio Moro cometeram abusos para favorecer um projeto político da direita.

A portaria de Aras que indicou Celso Três foi embasada por uma decisão de seu vice na PGR, o subprocurador Humberto Jacques. No documento, o nome “força-tarefa”, abominado pela cúpula do MPF, não é mencionado uma vez sequer. Contrário ao modelo, 02 de Aras teceu críticas à Greenfield. De acordo com procuradores, se a estrutura não for incrementada, o prazo estimado para concluir os casos e atingir as metas passará de 2022 para 2042. Atualmente, há 49 ações penais e 24 investigações envolvendo 435 suspeitos, e cerca de 3 trilhões de reais — isso mesmo, trilhões — em movimentações financeiras de quebras de sigilos bancários a serem analisadas. Com o fim da força-tarefa em dezembro e a posse do novo procurador, boa parte do acervo será redistribuída para investigadores que não necessariamente têm familiaridades com os casos.

Gil Ferreira/CNJGil Ferreira/CNJLindora Araújo, braço direito de Aras na área criminal, é uma das principais peças do novo plano
O cenário que se desenha na Greenfield em Brasília já é realidade em São Paulo, onde, de fato, a Lava Jato já tem data para acabar. Desde o pedido de demissão coletiva dos procuradores da força-tarefa paulista, no fim de setembro, a procuradora natural do cargo que concentra os casos relacionados à operação, Viviane Martinez, já redistribuiu ou arquivou 29 procedimentos em caráter sigiloso, entre os quais casos envolvendo os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer e partes das delações do ex-ministro Antonio Palocci e do ex-presidente da OAS Léo Pinheiro. A meta definida por ela é “sanear” o estoque até o fim do ano. Viviane, que foi pivô da renúncia de sete procuradores da Lava Jato paulista há menos de dois meses, criticava internamente a atuação dos colegas por supostamente concentrar investigações na força-tarefa, em vez de distribuir por sorteio a outros procuradores. A queixa foi formalizada por outro procurador na corregedoria e motivou a abertura de uma sindicância no órgão que ainda não foi concluída. O grupo argumenta que todos os casos mantidos tinham conexão entre si e pediu reforço a Aras no início do ano. Em vão. Ainda estão com a herdeira dos processos da Lava Jato, que assumiu a cadeira em março deste ano, quase três anos após a criação da força-tarefa paulista, 275 investigações e ações penais envolvendo figurões da política, como o senador José Serra, os ex-ministros Gilberto Kassab, Aloysio Nunes e Alexandre Baldy, e o vice-governador Rodrigo Garcia.

O caso paulista ilustra bem um outro efeito deletério da instabilidade das forças-tarefas alimentada pela atual gestão da PGR. Isso porque a falta de segurança sobre o avanço dos casos e o cumprimento de acordos com o MPF inibe, por exemplo, as negociações de leniência e delação premiada, fundamentais para a obtenção de provas e restituição de dinheiro desviado. Só nos últimos meses, naufragaram em São Paulo duas grandes negociações envolvendo as empreiteiras Camargo Corrêa e Queiroz Galvão, cujos executivos estavam dispostos a colaborar com depoimentos e documentos sobre pagamentos de propina a agentes públicos em obras do Rodoanel e do Metrô paulista, além de construções realizadas em outros estados, como Amazonas e Ceará. O advogado de um executivo que estava negociando com os procuradores da extinta força-tarefa admitiu a Crusoé que o “caos” instaurado na Lava Jato deixou seu cliente inseguro em continuar a discutir uma delação. Considerado o eixo mais promissor da Lava Jato para os próximos anos, por ter sido o último a ser criado e envolver não somente políticos paulistas, mas grandes empresas e bancos privados, o braço da operação em São Paulo acabou antes mesmo de atingir o seu máximo, por causa da PGR, que já desidratava a força-tarefa sem prorrogar a atuação exclusiva dos procuradores e agora nem sequer acena com qualquer apoio.

O novo plano de Aras para “fortalecer” o combate à corrupção no país com a proposta de criação de um cargo exclusivo em cada capital surge no momento em que as equipes da Lava Jato em Curitiba e no Rio se organizam para estruturar seus respectivos grupos de atuação especial contra o crime organizado, conhecidos como Gaeco, para receber o acervo da Lava Jato caso Aras decida mesmo acabar com a operação. Como essa organização pode ser feita pelas chefias do MPF em cada estado, ela ficaria imune a qualquer ingerência política da cúpula da PGR em Brasília. No mês passado, Aras chegou a manifestar em uma reunião com o procurador Alessandro de Oliveira, sucessor de Deltan na Lava Jato de Curitiba, a preferência pelo Gaeco no lugar das forças-tarefas, depois que sua ideia de concentrar as investigações em uma Unidade Nacional Anticorrupção, a Unac, sob seu comando, perdeu força no Conselho do Ministério Público, que discute a adoção de um modelo independente que seja blindado dos interesses do chefe de plantão da instituição. Mas já há quem veja na nova proposta de combate à corrupção de Aras uma forma de manter estruturas regionais diretamente subordinadas a ele, o que enfraqueceria os grupos especializados a serem criados.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressO procurador-geral com Bolsonaro, que o escolheu: discurso de campanha do presidente foi para as calendas
No Rio, onda a Lava Jato acumula mais de 2 mil processos, a proposta de criação do Gaeco já está sob análise da chefia local. Ainda assim, os investigadores esperam que a força-tarefa seja prorrogada por pelo menos um ano, para que possam acompanhar as ações judiciais e a executar novas operações decorrentes de apurações já em curso. Com doze procuradores, o grupo pode ter obtido uma “sobrevida” após ter feito praticamente 99% da investigação que resultou na operação da PGR contra o governador Wilson Witzel, afastado do cargo por decisão do Superior Tribunal de Justiça, após suspeita de corrupção, e alvo de um processo de impeachment na Assembleia Legislativa. Witzel, até aquele momento, era um dos principais desafetos políticos de Bolsonaro, o responsável pela indicação de Aras para comandar o MPF em 2019.

Se dentro do próprio Ministério Público a Lava Jato vem sofrendo um grande revés, fora de lá a operação segue sob fogo cerrado. Do Supremo Tribunal Federal, onde os investigadores sofreram suas maiores derrotas nos dois últimos anos, sob a gestão do ministro Dias Toffoli, continuam partindo tiros potentes, disparados pela conhecida ala garantista da corte. Na terça-feira, 24, os ministros da Segunda Turma, que julgam os casos da operação, decidiram manter sob sua batuta o julgamento de ações já em tramitação, contrariando uma mudança de regimento apresentada pelo presidente Luiz Fux e aprovada pelo demais magistrados, em outubro, para enviar ações penais contra parlamentares com foro para o plenário. A medida de Fux foi vista como um sopro de esperança para a Lava Jato no STF, que vinha acumulando derrotas na Segunda Turma e imaginava um cenário ainda mais desolador com a posse do ministro Kassio Marques na vaga do decano Celso de Mello.

A nova manobra foi articulada pelo ministro Gilmar Mendes e acompanhada por Ricardo Lewandowski e pelo próprio Kássio. Carmen Lúcia não participou da sessão. Edson Fachin, relator da Lava Jato na corte, foi voto vencido. Com isso, a Segunda Turma garantiu para si, entre outros casos, o julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro, pedida por Lula, e recurso do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, contra a operação do Ministério Público do Rio que investigou o esquema de rachid em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio. Na quinta-feira, 26, Fux reagiu, contestando a manobra capitaneada por Gilmar e dizendo que não permitirá a desconstrução da Lava Jato no Supremo. “Todas as ações penais e todos os inquéritos passarão pela responsabilidade do plenário, porque o STF tem o dever de restaurar a imagem do país a um patamar de dignidade da cidadania, de ética e de moralidade do próprio país”, afirmou o presidente. A ver até onde ele conseguirá fazer frente às poderosas forças que atuam contra a operação, inclusive no próprio Ministério Público.

Com reportagem de Fabio Serapião e Luiz Vassallo

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