Um fenômeno no filhotismo
À diferença da maioria dos advogados recém-formados, eles não precisam fazer trabalhos pro bono nem negociar honorários abaixo da tabela da OAB. Também não têm que se aboletar em escritórios de terceiros ganhando salários modestos para esquentar a barriga quase que diariamente nos balcões de tribunais. Muito pelo contrário. Com pouco tempo de profissão, estacionam seus carros importados em mansões onde funcionam suas próprias bancas e faturam alto, bem alto, muitas vezes em razão apenas do sobrenome que carregam. Com o vaivém de ministros nas cortes superiores de Brasília, de tempos em tempos os integrantes desse clube seleto mudam, mas o fenômeno do filhotismo é parte integrante da paisagem e suas estrelas são filhos das excelências de toga que, mesmo sem larga experiência, costumam ser contratados a peso de ouro para atuar em disputas bilionárias nas cortes onde seus pais despacham.
Um fenômeno dentro desse fenômeno em cartaz permanentemente na cena jurídica de Brasília atende pelo nome de Eduardo Filipe Alves Martins, filho do atual presidente do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Humberto Martins. Aos 35 anos, Eduardo é o feliz proprietário de um escritório de advocacia que, apenas nos últimos três anos, faturou pelo menos 70 milhões de reais – uma cifra significativa até mesmo para os padrões das bancas mais famosas e requisitadas da capital. Ao menos uma parte desse valor levou Eduardo para dentro de uma investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, na qual ele é suspeito de receber vultosos pagamentos não por sua atuação regular em processos, mas em troca de garantir facilidades para seus clientes no STJ. Como parte desse modelo de atuação, Eduardo coleciona parcerias que, se de um lado suscitam suspeitas de conflito de interesses, por outro o ajudaram a obter decisões que mudaram radicalmente o rumo de alguns dos processos em que atuou nos últimos tempos.
Eduardo Martins era pouco conhecido do grande público até a deflagração, em setembro passado, da Operação E$quema S, um dos desdobramentos da Lava Jato no Rio de Janeiro. Depois de ter seus endereços vasculhados por policiais federais, ele foi denunciado pelo MPF por lavagem de dinheiro, exploração de prestígio e peculato, em razão de pagamentos milionários que recebeu da Fecomércio do Rio para, segundo os procuradores, usar o peso de seu nome e influenciar ministros do tribunal do qual seu pai é integrante. A dinheirama, todavia, não corresponde ao currículo do jovem advogado. Na plataforma Lattes, ele exibe apenas a graduação em direito, concluída em 2006 em uma faculdade particular de Alagoas, estado natal da família. Hoje, dizem amigos próximos, Eduardo faz mestrado em uma universidade de Portugal. Até se lançar de corpo e alma no direito, ele se dedicava ao esporte. Era mais aplaudido por seus atributos de triatleta do que propriamente pelos de advogado.
Além dos casos da Fecomércio, que o levaram a ter problemas com a polícia e a Justiça, Eduardo Martins obteve outras importantes vitórias na corte hoje presidida por seu pai. Apenas uma delas já rendeu a sua banca nada menos que 10 milhões de reais em honorários, de acordo com a quebra de sigilo fiscal e bancário do escritório, à qual Crusoé teve acesso. O pagamento é proporcional ao tamanho da querela. Trata-se de uma liminar que impediu a anulação de um contrato de 7 bilhões de reais da Prefeitura de São Paulo. Até hoje, a decisão provisória, assinada pelo ministro João Otávio de Noronha em abril de 2019, segue em vigor – jamais foi julgada no mérito ou reanalisada pelos órgãos colegiados da corte. O contrato em questão, no qual um consórcio de empresas se habilitou para operar por vinte anos o sistema de iluminação pública da capital paulista, virou caso de polícia quando a ex-chefe da autarquia responsável pela concessão, Denise Abreu, foi gravada por uma assessora falando sobre uma suposta mesada para manter o contrato.
O filho do presidente do STJ também obteve seguidas vitórias em outra batalha milionária. O caso, desta feita, envolve a atuação de políticos e a decisão a favor do pleito de Eduardo é da lavra de um desembargador cujo filho atua com ele. Ao lado de Antonio Rueda, vice-presidente do PSL e parceiro de outro filho de ministro – no caso, o advogado Otavinho Noronha, filho do ministro João Otávio de Noronha –, Eduardo Martins defende, desde a primeira instância, na Justiça Federal em Alagoas, uma empresa importadora de alho da China. A companhia se queixa da taxação do produto – atualmente, só se livram da carga tributária pesada as empresas que conseguem liminares impedindo o governo de cobrar o imposto. Sem a taxação, não há como o alho nacional competir com o importado. Produtores brasileiros e parte da bancada ruralista no Congresso têm denunciado uma espécie de “máfia das liminares” concedidas às importadoras. Atualmente, três empresas importam alho sem precisar pagar o imposto. Duas dessas decisões foram concedidas pelo hoje ministro Kassio Marques, do STF, na época em que era desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. A outra liminar beneficia justamente a importadora defendida por Eduardo Martins, em parceria com Rueda.
No caso da outra Fecomércio, a do Rio, Eduardo Martins passou a ser investigado porque, ao longo da apuração, os policiais e procuradores não encontraram sinais de que ele havia prestado serviços para a entidade que pudessem justificar os polpudos pagamentos que recebeu. Diretamente, foram 40 milhões de reais. A denúncia do MPF sustenta que a Fecomércio fluminense destinou a Eduardo outros 40 milhões de reais, por fora, por intermédio de terceiros. A se considerar essa parte da acusação dos procuradores, em sete anos Eduardo teria recebido, no mínimo, 110 milhões.
O fenômeno do filhotismo nas cortes superiores é um dos maiores tabus brasilienses. São raros os casos em que o lobby de familiares de ministros vira objeto de investigações. Quando isso acontece, quase sempre não há consequências. A apuração sobre a Fecomércio é um exemplo vivo: desde o início de outubro, ela está suspensa por força de uma liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Em setembro, uma reportagem de Crusoé mostrou que, só no STJ, há mais de 7,4 mil processos em que filhos, mulheres e sobrinhos de ministros aparecem defendendo ao menos uma das partes.
Na última quarta-feira, Crusoé tentou, sem sucesso, ouvir Eduardo Martins. “O doutor Eduardo não dá entrevista, está bem?”, disse a secretária dele. O desembargador Lázaro Guimarães, o pai do parceiro de Eduardo que concedeu a liminar em favor da importadora de alho chinês, afirmou, por meio de sua assessoria, que “tecnicamente” não estava impedido de atuar no caso. Moacir Guimarães Neto, o filho dele, afirmou que sua parceria com Eduardo Martins não teve resultados positivos e que os pagamentos que recebeu da banca do filho do presidente do STJ se referem à intermediação de um negócio no ramo imobiliário. “Os meus honorários decorreram de uma intermediação de negócio imobiliário entre um cliente meu em Pernambuco, dono de uma empresa que é proprietária de uma fazenda em Alagoas, e a empresa do doutor Eduardo Martins, que adquiriu essa fazenda. Há, inclusive, registro no contrato de compra e venda”, declarou. Antonio Rueda declarou que conhece Eduardo “há algum tempo” e que o procurou porque ele é “especializado na área civil” e tem um escritório “qualificado e reconhecido”. Humberto Martins, pai de Eduardo Martins e presidente do STJ, afirmou por meio do staff de comunicação do tribunal que “não tem nada a comentar” sobre a atuação do filho.
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