Proteção à vista
Em um intervalo de poucos dias, duas empresas anunciaram que suas vacinas alcançaram alta eficácia contra a Covid-19, trazendo uma lufada de esperança para um mundo que já registrou 1,3 milhão de mortos e já enfrenta uma segunda onda da doença. Nesta quarta, 18, a farmacêutica americana Pfizer, em parceria com a alemã BioNTech, disse que sua vacina teve uma eficácia de 95%. Dois dias antes, a americana Moderna anunciou um índice de 94,5%. Os dois laboratórios pretendem pedir a aprovação da agência americana de medicamentos nos próximos dias, para iniciar a vacinação de milhões de americanos ainda neste ano. No Brasil, os primeiros pedidos de registro à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, devem ser apresentados em dezembro ou na primeira quinzena de janeiro. A partir de então, a Anvisa tem até 60 dias para avaliar as vacinas. Com o aval da agência, algumas delas já estarão prontas para distribuição.
Pfizer e Moderna foram as primeiras a divulgar dados sobre eficácia porque começaram os seus estudos clínicos antes. A agilidade está ligada ao método diferente — e totalmente novo — para desenvolver os seus imunizantes. Em vez de usar um vírus atenuado ou inativo, as duas companhias apenas tiveram de fazer o download do código genético do vírus, que foi disponibilizado pelos cientistas chineses na internet ainda em janeiro. “Entre obter o sequenciamento do genoma e inocular o primeiro voluntário, a Moderna demorou só 42 dias. É uma rapidez espantosa, que nunca tínhamos visto antes”, diz a imunologista Keity Souza Santos, da Faculdade de Medicina da USP.
De posse do código genético do coronavírus, Moderna e Pfizer construíram um RNA mensageiro capaz de produzir a mesma proteína que está na espícula do vírus real. A espícula, também chamada de espinho, é aquele braço em formato de “T” que envolve todo o vírus e o ajuda a penetrar nas células humanas. Ao receber o RNA mensageiro, o corpo produz uma proteína idêntica à que existe no coronavírus. O processo não oferece risco algum para a saúde, porque o vírus não está presente. Ao deparar com uma proteína estranha, o organismo cria anticorpos capazes de destruí-la. Se a pessoa, mais tarde, for contaminada de verdade, essa infantaria ataca a espícula e o vírus não consegue penetrar nas células.
A eficiência das duas vacinas foi comprovada após testes que envolveram dezenas de milhares de pessoas nos últimos meses, em vários países. Algumas tomaram a vacina. Outras, um placebo. Ninguém foi avisado em que grupo estava. No estudo da Pfizer, 170 pessoas tiveram a Covid-19. Ao olhar para suas planilhas, os cientistas descobriram que 162 delas tinham tomado o placebo. Apenas oito tinham recebido de fato a vacina. A Moderna, por sua vez, divulgou resultados parciais. De um universo de 30 mil voluntários, 95 desenvolveram a doença ao longo de dois meses. Noventa estavam no grupo placebo. Os cinco que tomaram a vacina não desenvolveram sintomas graves.
Entre todas as competidoras, a Coronavac é a que tem o método mais antigo. A vacina usa um vírus inativado. É semelhante, portanto, às da gripe ou da raiva. “Se a Coronavac chegar a 60%, já será uma grande vitória. Quando o vírus é inativado pelo calor ou por componentes químicos, ele perde um pouco da sua forma, o que o torna menos capaz de provocar uma boa resposta imunológica”, diz o imunologista Gustavo Cabral, do Departamento de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. O pesquisador, que também trabalha no desenvolvimento de uma vacina, defende o uso da Coronavac por outros motivos. O principal deles é a capacidade de a vacina ser facilmente armazenada e transportada. O produto nem sequer precisa de temperaturas negativas. As da Pfizer e da Moderna, que usam o RNA mensageiro, precisam de temperaturas negativas de -75 graus e -20 graus, respectivamente.
Outro ponto a favor da Coronavac é a segurança. “Vacinas com vírus inativado são mais conhecidas. Em teoria, elas têm menor toxicidade e causam menos problemas graves”, diz o infectologista Renato Grinbaum, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, a SBI. Como as vacinas deverão ser aprovadas sem que os estudos tomem o devido tempo tradicional, de três a cinco anos, é provável que a preocupação com a segurança prevaleça. Como os idosos são um dos grupos que mais precisam ser protegidos, a Coronavac poderia furar a fila de aprovação na Anvisa.
O Instituto Butantan espera pedir o registro da Coronavac na Anvisa entre o final de dezembro e a primeira quinzena de janeiro. A agência então terá 60 dias para concluir a avaliação. No limite, o prazo se encerraria em meados de março. Assim que o aval for dado, a vacinação pode começar. Até dezembro, o Instituto Butantan deve receber da China 46 milhões de doses da Coronavac, das quais 6 milhões prontas para aplicação – o primeiro lote, com 120 mil, chegou a São Paulo nesta semana. Outras 15 milhões de doses devem chegar até fevereiro.
Entre o vanguardismo das vacinas que usam o RNA mensageiro e a tradição da Coronavac, há um grande grupo intermediário que usa vetores virais. Essa técnica foi usada em uma vacina aprovada pela Organização Mundial de Saúde no ano passado, contra o ebola, o que, em tese, pode encurtar os trâmites na Anvisa. A vacina russa Sputnik V emprega um adenovírus capaz apenas de gerar uma leve gripe e que pode ser manipulado pelos cientistas. Nele, é inserido um pedaço do coronavírus. Ao entrar no corpo, esse vírus montado em laboratório provoca o sistema de defesa humano a produzir anticorpos. Ainda neste mês, a vacina russa deverá começar a ser produzida em uma fábrica da União Química, em Brasília. A vacina da Johnson & Johnson, que também tem conversado com o governo brasileiro, segue o mesmo sistema dos russos. A da Universidade de Oxford, em parceria com o laboratório AstraZeneca, usa estratégia semelhante, mas optou por um adenovírus comum em chimpanzés. Uma fábrica está sendo montada na Fiocruz, no Rio de Janeiro, e as primeiras doses deverão ser entregues ao Ministério da Saúde em fevereiro. O pedido de registro deve acontecer em janeiro e a vacinação poderá começar em março.
A profusão de vacinas é uma ótima notícia para todos. Mais de 40 delas já estão em estudos clínicos em todo o mundo. No Brasil, com uma população de 210 milhões, seria impraticável contar com apenas uma opção para imunizar toda a população, com duas doses por pessoa. “Para acabar com a pandemia, vamos precisar do maior número de vacinas possível”, diz Gustavo Cabral. Aquelas de maior eficiência, como as que usam o RNA mensageiro, poderiam ser distribuídas nas grandes cidades, onde há melhores condições de armazenagem. As outras, como a Coronavac, mais resistentes, poderiam chegar aos povoados mais distantes e quentes. “Não faz sentido uma briga de vacinas, pois precisamos de todas elas”, afirma Cabral.
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