RuyGoiaba

Breve história da ascensão dos idiotas

20.11.20

O sucesso de gente idiota é um problema antigo — talvez tão antigo quanto a humanidade, mas sua história é essencialmente a mesma há quase um século. Em 1929, José Ortega y Gasset publicou na imprensa espanhola e depois reuniu em livro os textos que viriam a compor seu clássico A Rebelião das Massas. Por desonestidade ou burrice, o homem-massa que Ortega critica no livro às vezes é lido como antepassado do “pobre que ousa viajar de avião”, clichê eterno dos discursos de Lula. Mas esse homem-massa não é o proletário, e sim o homem médio, medíocre, o menino mimado que começara a mandar na Europa na década de 1920. Claro, eram os anos da ascensão do fascismo, de um lado, e do stalinismo, do outro: clowns to the left of me, jokers to the right.

Clicando no botão fast forward para uns 40 anos depois, chegamos a Nelson Rodrigues, que provavelmente nunca leu Ortega y Gasset — ou, se leu, não o citava —, dizendo a mesma coisa nos seus termos: era a “ascensão flamejante do idiota”. Transcrevo trecho de crônica dele em 1968: “O idiota sempre se comportara como idiota. Era de uma modéstia exemplar, de uma humildade total. (…) De repente, em nossa época, o idiota explode. Na minha infância, não passava do curso primário e já se dava por muito satisfeito. Nascia, crescia, namorava e morria sem jamais pensar por conta própria. Podiam pichar-lhe o túmulo com a seguinte inscrição: ‘Nunca pensou’. O idiota era quase um santo”.

Com esse “o idiota explode”, o dramaturgo pretendia dizer que, naquele momento, os imbecis mandavam no mundo, tinham “as melhores mulheres” e “mais condecorações que um arquiduque austríaco”: tratava-se da ascensão social, econômica, cultural e política da — por assim dizer — categoria.

Como, meu Deus do céu, como pudemos achar que o (lá vem lugar-comum) ADVENTO DA INTERNET melhoraria esse estado de coisas? Eu me lembro bem das pessoinhas indignadas quando, em 2015, num discurso na Universidade de Turim, o saudoso Umberto Eco disse que as redes sociais davam voz a uma “legião de imbecis”. “Normalmente, eles (os imbecis) eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”, declarou o escritor e semiólogo, acrescentando que o drama da internet era “ter promovido o idiota da aldeia a portador da verdade”. Oh, que antidemocrático!

E, no entanto, Eco acertou tão na mosca que, na mesma ocasião, defendeu que os jornais empregassem “equipes de especialistas” para filtrar as informações da rede — coisa que hoje todo grande veículo faz (ou tenta fazer) com iniciativas de checagem do tipo “fato ou fake”, em meio à chuva de fake news que vêm de todos os lados. O que infelizmente é fato, amigos leitores — não fake —, é que os idiotas da aldeia agora têm, cada um, seu megafone, seu caixotinho e a plena consciência de que são legião. A “democratização da informação” degenera em idiocracy, como a do filme homônimo: atualizados, o homem-massa de Ortega y Gasset e o idiota flamejante de Nelson Rodrigues agora (já há algum tempo, na verdade) elegem Débi & Loide, políticos feitos à sua imagem e semelhança.

Mas há como colocar a pasta de dente de volta dentro da bisnaga? Não há, embora seja basicamente isso que certas tentativas de “regulação” das redes defendem; elas são um tipo de idiotice bastante próprio do autoritarismo. E, por mais que eu me empenhe em ser um pessimista schopenhaueriano, não deixo de achar que os males da democracia se corrigem mesmo com mais democracia. Além disso, o megafone e o caixotinho das redes sociais, ou do WhatsApp, não são o mundo inteiro: nessa hora é bom lembrar que os oligofrênicos que fizeram buzinaço “contra o isolamento” ao lado de hospitais aqui em São Paulo não conseguiram reunir muito mais que 10% na eleição municipal recente.

Enfim, os idiotas da aldeia não podem ganhar sempre. Até porque, no caso deles, muitas vezes a natureza cuida, matando um e aumentando o QI médio da humanidade. Deixo aqui os meus mais sinceros votos de que não procriem.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Tenho que agradecer publicamente a Guilherme Boulos por ajudar a esquerda a contribuir com este espaço, que ultimamente vinha sendo mais frequentado por bolsonaristas e trumpistas. Em recente sabatina promovida pelo Estadão, o psolista e candidato a prefeito de São Paulo deu a seguinte — e genial — receita para resolver o déficit da Previdência do município: fazer mais concursos. “Fazer concurso é uma forma de arrecadar mais para a Previdência pública e você equilibrar as contas com os inativos. Então, é isso que eu vou fazer”, sapecou.

Como ninguém pensou nisso antes, amigos da Rede Globo? E por que não fazer concursos para contratar 100% da população de São Paulo, para a Previdência ter superávit? Infelizmente, esses 12 milhões de funças também terão de receber salários, explodindo a folha de pessoal no presente e contratando para o futuro um déficit estratosférico. Mas nada que o desejo de mudança do povo paulistano não resolva! Um novo mundo — abolindo a matemática — é possível.

Reprodução/Facebook/Guilherme BoulosReprodução/Facebook/Guilherme BoulosAlguém podia perguntar a Boulos se ele acha matemática básica coisa de burguês

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