Isac Nóbrega/PR

Bolsonaro ilhado

Os ativos políticos que ajudaram na ascensão do presidente se esfarelaram. E agora só restam a ele o Centrão e o velho recurso do populismo barato
20.11.20

Em dois anos, os ativos políticos responsáveis pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018 se esfacelaram. A bandeira anticorrupção já desbotada foi largada, o que custou ao presidente o apoio dos defensores da Lava Jato. Com a agenda econômica liberal patinando, quem “votou no Paulo Guedes” nas eleições presidenciais não esconde a decepção com as privatizações emperradas e as reformas que não deslancham. Até a militância mais ideológica, que sempre lhe devotou fidelidade quase canina, não apoia o chefe do Planalto com o mesmo vigor de antes e pede, sem sucesso, a volta do presidente radical do início do mandato, que criticava o Congresso e o Supremo Tribunal Federal e se dedicava a alimentar cotidianamente a “guerra cultural” nas redes. Enquanto isso, num movimento contrário em nome da sobrevivência, Bolsonaro se aninha cada vez mais no colo do establishment político que sempre criticou.

As eleições municipais de domingo, 15, reforçaram o derretimento do capital bolsonarista, no que constituiu mais um elemento de uma sequência de infortúnios. Orientado por aliados a ficar bem longe da disputa, o presidente preferiu não abdicar dos holofotes, o que o levou a pedir votos de forma mambembe para quase seis dezenas de candidatos, muitos deles sem nenhuma relevância política, como a caricata Wal do Açaí, suspeita de ter sido funcionária fantasma de seu próprio gabinete na Câmara. As cenas em que Bolsonaro, instalado na biblioteca do Palácio da Alvorada, aparecia erguendo cartazes rudimentares com as fotos de seus escolhidos durante lives, deixaram a derrota ainda mais vexatória. Só quatro candidatos a prefeito apoiados por ele foram eleitos. A pecha de perdedor colou de maneira indelével. Além disso, o tal recado das urnas é o de que a sociedade, aos poucos, vai se cansando do extremismo do qual o presidente é, ao lado dos petistas, uma das mais fiéis expressões.

A margem de Bolsonaro vai se estreitando. A popularidade turbinada artificialmente pelo coronavoucher tem data e hora para acabar. Com o cenário externo de isolamento, a China distante e os Estados Unidos agora encarados como um país situado na trincheira oposta, pouco restou para o presidente, além da aliança com o Centrão, cada vez mais primordial para o governo. Caso ele resolva prorrogar o auxílio emergencial, terão lhe sobrado dois ‘ismos’, o fisiologismo e o populismo. O risco da tentação populista é colocar em xeque o equilíbrio fiscal. Já o risco embutido no fisiologismo é o da volta desenfreada dos escândalos de corrupção: os partidos do Centrão, que ganharão cada vez mais e mais poder e dividirão o butim na Esplanada, são useiros e vezeiros em desvios que, cedo ou tarde, podem vir à tona.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéPartidos do Centrão já estão de olho na possível vaga de Ricardo Salles
As agremiações que compõem o bloco versado na prática de apoiar governos em troca de cargos com orçamentos bilionários não estão nem nunca estiveram preocupadas com o decoro e as consequências da falta dele. As siglas, na verdade, experimentam o melhor dos mundos: ganharam força política com a conquista de mais mandatos municipais e enxergam na fragilidade do governo uma oportunidade para tornar o preço da sustentação no Congresso ainda mais salgado. Em maio, Bolsonaro já havia promovido um feirão de cargos para o grupo. Entregou a próceres do Centrão, por exemplo, o valioso Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, a Fundação Nacional de Saúde, com orçamento superior a 3 bilhões de reais, e o igualmente bilionário Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

O enfraquecimento político do presidente representa uma perspectiva real de ampliação ainda maior do poder do Centrão já no início do próximo ano. Com a vitória de Joe Biden na eleição dos Estados Unidos, cresceu a expectativa de que os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sejam apeados da Esplanada em uma reforma ministerial. A saída de Araújo poderia atenuar o que em Brasília se convencionou chamar de “diplomacia de conflitos”, hoje uma marca de sua gestão, apesar de a participação de Jair Bolsonaro na cúpula virtual do Brics ter servido para que ele renovasse os sinais de que o Brasil pós-Trump persistirá no isolacionismo, distante dos organismos multilaterais.

As costuras para que a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, volte à Câmara para disputar a presidência da casa pode abrir mais uma vaga ao Centrão. Outra pasta é alvo da cobiça das siglas fisiológicas. Em outubro, Bolsonaro negou peremptoriamente a possibilidade de recriação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, para abrigar Marcos Pereira, presidente do Republicanos. A nova conjuntura, entretanto, não permite mais certezas. Além de vagas extras na Esplanada, poderá haver ainda mais espaços para os novos aliados do governo em autarquias e empresas estatais, algumas delas com orçamentos mais robustos do que os de ministérios.

Reprodução/TwitterReprodução/TwitterO assessor Filipe Martins reconhece a derrota eleitoral e fala em autocrítica
O cacife da turma anda alto: os partidos do bloco elegeram cerca de 2 mil prefeitos nas eleições municipais, o que se traduzirá em aumento do poder de barganha. O PSD, do ex-ministro Gilberto Kassab, é um dos partidos do Centrão que ganharão mais estatura a partir de janeiro. A sigla elegeu quase 40% dos candidatos a prefeito que lançou. Hoje, o PSD tem 539 municípios e, a partir de janeiro, comandará 650 – um aumento de 20%. O partido elegeu ainda 5,6 mil vereadores, o que equivale a uma média de um representante para cada município brasileiro. Outro destaque das eleições, o Republicanos registrou um crescimento vertiginoso. O partido, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus e que integra a base aliada do governo, saltou de 105 para 208 prefeituras, um aumento de quase 100%. Já o Progressistas, comandado pelo senador Ciro Nogueira, conta com 495 prefeitos e passará a comandar 682 cidades no ano que vem. O desempenho foi assombroso: o antigo PP elegeu mais de 45% de todos os candidatos a prefeito que lançou. O partido levou em primeiro turno a administração de duas capitais – Marquinhos Trad ganhou em Campo Grande; Alexandre Kalil, em Belo Horizonte – e segue na disputa do segundo turno em Goiânia, com o senador Vanderlan Cardoso.

O bom desempenho do Progressistas é um chamariz para atrair o próprio presidente da República, que, há um ano sem partido, tem flertado nos últimos dias com a legenda, espertamente interessada em abrigá-lo. O PL e o Republicanos também surgem como opções. No entorno do presidente, todos estão convencidos de que Bolsonaro precisará de uma nova casa arrumada, estruturada e com capilaridade nacional se quiser ter algum êxito em 2022. Ou seja, o político “outsider” e “antissistema” de 2018 precisará mais do que nunca da fina flor do sistema se quiser se reeleger. Quem costura a refiliação do presidente ao antigo PP é Arthur Lira, líder do partido e candidato do coração de Bolsonaro à presidência da Câmara – Lira é chamado pelo presidente de “meu malvado favorito”.

Enquanto o martelo sobre a futura sigla não é batido, aliados de Bolsonaro se esforçam para disseminar uma narrativa rósea, diametralmente oposta ao atual cenário de debacle política. “Em 2018, o presidente Bolsonaro se elegeu contra tudo e contra todos. Não há maior exemplo de força política do que essa”, argumentou o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos. “A esquerda perdeu muito espaço no cenário político. Além disso, os partidos aliados às pautas e ideais do governo Bolsonaro saíram vitoriosos”, acrescentou o integrante do primeiro escalão bolsonarista. A avaliação de Ramos embute erros factuais e de interpretação. A maioria das legendas da base não é leal ao ideário do presidente, se é que ele existe – a fidelidade está baseada em trocas de cargos e, portanto, são politicamente frágeis. Em 2016, esses mesmos partidos franqueavam apoio ao governo Dilma Rousseff e abandonaram a petista sem hesitação quando sua popularidade despencou e a pressão popular pelo impeachment recrudesceu. Mais: a despeito do encolhimento do PT, não é possível afirmar que a esquerda sumiu do mapa político. O que houve, na verdade, é que os votos petistas acabaram migrando para outras legendas, como o PSOL, o PSB e o PCdoB. Para quem queria polarizar com o PT e com Lula em 2022, como Bolsonaro, é uma péssima notícia.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéGuedes descarta furar o teto, mas Bolsonaro quer um programa assistencial para chamar de seu
Integrante da ala radical e olavista de carteirinha, o assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, fez uma leitura menos apaixonada e mais assentada na realidade do quadro político. “Muitos se perguntam por que candidatos apoiados por cabos eleitorais de peso foram derrotados. A resposta é simples: perderam porque eleição municipal é base, é construção, não é improviso. Não adianta chegar às vésperas da eleição e dar carteirada nem tentar levar no grito”, afirmou. “Com uma abstenção elevada, a constância da mobilização esquerdista falou mais alto. A esquerda ressuscitou, a motivação permanente ($$$) dos partidos fisiológicos se impôs mais uma vez e permitiu que eles voltassem a crescer”, escreveu nas redes sociais o pupilo de Olavo de Carvalho. Ele também defendeu uma “autocrítica” – nesse caso específico, pairam dúvidas sobre suas reais intenções. Há quem diga no governo que, por trás da “autocrítica”, existe o interesse da ala ideológica em puxar Bolsonaro de volta para o radicalismo, privilegiando a “guerra cultural” em detrimento dos acordos pragmáticos com os integrantes da velha política e dos acertos de coxia com os militares, alvos recorrentes da turma.

Os próprios militares, no entanto, não andam lá muito satisfeitos com o governo. Eles ajudaram o presidente a chegar ao Planalto, ocupam postos estratégicos na máquina administrativa federal e têm recebido incontáveis benesses, como reajustes e gratificações, mas o constrangimento na caserna diante de declarações intempestivas do chefe do Planalto, como a risível ameaça de reagir com “pólvora” contra supostos avanços dos Estados Unidos sobre a Amazônia, cresceu a ponto de a situação exigir uma rara declaração pública do comandante do Exército, Edson Pujol. O general afirmou em duas ocasiões que a política não deveria “entrar nos quartéis”. O timing não deixou dúvidas de que se tratava de uma indireta bem direta para o presidente.

Ilhado, Bolsonaro flerta novamente com o populismo. Foi sintomático que até o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenha afirmado que, diante de uma nova onda da pandemia, a prorrogação do auxílio emergencial não é uma possibilidade, mas “uma certeza”. O presidente da República quer um programa assistencial para chamar de seu, que o ajude a recuperar a popularidade nos rincões do país, mas não há dinheiro em caixa. O cenário preocupa, uma vez que Bolsonaro já deu fartas demonstrações de que não é muito cioso da responsabilidade fiscal. Recentemente, por exemplo, discutiu-se no governo a possibilidade de estender o chamado Orçamento de Guerra e o estado de calamidade pública para 2021. A medida abriria caminho para furar o teto de gastos. Paulo Guedes garantiu durante a semana que o governo não irá buscar essa “saída fácil”, mas, como é possível notar, atualmente, o único teto com que Bolsonaro realmente se importa é o da sua popularidade – segundo o Ibope, 54% já reprovam seu governo em São Paulo, o principal colégio eleitoral do país.

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