Bolsonaro ilhado
Em dois anos, os ativos políticos responsáveis pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018 se esfacelaram. A bandeira anticorrupção já desbotada foi largada, o que custou ao presidente o apoio dos defensores da Lava Jato. Com a agenda econômica liberal patinando, quem “votou no Paulo Guedes” nas eleições presidenciais não esconde a decepção com as privatizações emperradas e as reformas que não deslancham. Até a militância mais ideológica, que sempre lhe devotou fidelidade quase canina, não apoia o chefe do Planalto com o mesmo vigor de antes e pede, sem sucesso, a volta do presidente radical do início do mandato, que criticava o Congresso e o Supremo Tribunal Federal e se dedicava a alimentar cotidianamente a “guerra cultural” nas redes. Enquanto isso, num movimento contrário em nome da sobrevivência, Bolsonaro se aninha cada vez mais no colo do establishment político que sempre criticou.
As eleições municipais de domingo, 15, reforçaram o derretimento do capital bolsonarista, no que constituiu mais um elemento de uma sequência de infortúnios. Orientado por aliados a ficar bem longe da disputa, o presidente preferiu não abdicar dos holofotes, o que o levou a pedir votos de forma mambembe para quase seis dezenas de candidatos, muitos deles sem nenhuma relevância política, como a caricata Wal do Açaí, suspeita de ter sido funcionária fantasma de seu próprio gabinete na Câmara. As cenas em que Bolsonaro, instalado na biblioteca do Palácio da Alvorada, aparecia erguendo cartazes rudimentares com as fotos de seus escolhidos durante lives, deixaram a derrota ainda mais vexatória. Só quatro candidatos a prefeito apoiados por ele foram eleitos. A pecha de perdedor colou de maneira indelével. Além disso, o tal recado das urnas é o de que a sociedade, aos poucos, vai se cansando do extremismo do qual o presidente é, ao lado dos petistas, uma das mais fiéis expressões.
A margem de Bolsonaro vai se estreitando. A popularidade turbinada artificialmente pelo coronavoucher tem data e hora para acabar. Com o cenário externo de isolamento, a China distante e os Estados Unidos agora encarados como um país situado na trincheira oposta, pouco restou para o presidente, além da aliança com o Centrão, cada vez mais primordial para o governo. Caso ele resolva prorrogar o auxílio emergencial, terão lhe sobrado dois ‘ismos’, o fisiologismo e o populismo. O risco da tentação populista é colocar em xeque o equilíbrio fiscal. Já o risco embutido no fisiologismo é o da volta desenfreada dos escândalos de corrupção: os partidos do Centrão, que ganharão cada vez mais e mais poder e dividirão o butim na Esplanada, são useiros e vezeiros em desvios que, cedo ou tarde, podem vir à tona.
O enfraquecimento político do presidente representa uma perspectiva real de ampliação ainda maior do poder do Centrão já no início do próximo ano. Com a vitória de Joe Biden na eleição dos Estados Unidos, cresceu a expectativa de que os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sejam apeados da Esplanada em uma reforma ministerial. A saída de Araújo poderia atenuar o que em Brasília se convencionou chamar de “diplomacia de conflitos”, hoje uma marca de sua gestão, apesar de a participação de Jair Bolsonaro na cúpula virtual do Brics ter servido para que ele renovasse os sinais de que o Brasil pós-Trump persistirá no isolacionismo, distante dos organismos multilaterais.
As costuras para que a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, volte à Câmara para disputar a presidência da casa pode abrir mais uma vaga ao Centrão. Outra pasta é alvo da cobiça das siglas fisiológicas. Em outubro, Bolsonaro negou peremptoriamente a possibilidade de recriação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, para abrigar Marcos Pereira, presidente do Republicanos. A nova conjuntura, entretanto, não permite mais certezas. Além de vagas extras na Esplanada, poderá haver ainda mais espaços para os novos aliados do governo em autarquias e empresas estatais, algumas delas com orçamentos mais robustos do que os de ministérios.
O bom desempenho do Progressistas é um chamariz para atrair o próprio presidente da República, que, há um ano sem partido, tem flertado nos últimos dias com a legenda, espertamente interessada em abrigá-lo. O PL e o Republicanos também surgem como opções. No entorno do presidente, todos estão convencidos de que Bolsonaro precisará de uma nova casa arrumada, estruturada e com capilaridade nacional se quiser ter algum êxito em 2022. Ou seja, o político “outsider” e “antissistema” de 2018 precisará mais do que nunca da fina flor do sistema se quiser se reeleger. Quem costura a refiliação do presidente ao antigo PP é Arthur Lira, líder do partido e candidato do coração de Bolsonaro à presidência da Câmara – Lira é chamado pelo presidente de “meu malvado favorito”.
Enquanto o martelo sobre a futura sigla não é batido, aliados de Bolsonaro se esforçam para disseminar uma narrativa rósea, diametralmente oposta ao atual cenário de debacle política. “Em 2018, o presidente Bolsonaro se elegeu contra tudo e contra todos. Não há maior exemplo de força política do que essa”, argumentou o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos. “A esquerda perdeu muito espaço no cenário político. Além disso, os partidos aliados às pautas e ideais do governo Bolsonaro saíram vitoriosos”, acrescentou o integrante do primeiro escalão bolsonarista. A avaliação de Ramos embute erros factuais e de interpretação. A maioria das legendas da base não é leal ao ideário do presidente, se é que ele existe – a fidelidade está baseada em trocas de cargos e, portanto, são politicamente frágeis. Em 2016, esses mesmos partidos franqueavam apoio ao governo Dilma Rousseff e abandonaram a petista sem hesitação quando sua popularidade despencou e a pressão popular pelo impeachment recrudesceu. Mais: a despeito do encolhimento do PT, não é possível afirmar que a esquerda sumiu do mapa político. O que houve, na verdade, é que os votos petistas acabaram migrando para outras legendas, como o PSOL, o PSB e o PCdoB. Para quem queria polarizar com o PT e com Lula em 2022, como Bolsonaro, é uma péssima notícia.
Os próprios militares, no entanto, não andam lá muito satisfeitos com o governo. Eles ajudaram o presidente a chegar ao Planalto, ocupam postos estratégicos na máquina administrativa federal e têm recebido incontáveis benesses, como reajustes e gratificações, mas o constrangimento na caserna diante de declarações intempestivas do chefe do Planalto, como a risível ameaça de reagir com “pólvora” contra supostos avanços dos Estados Unidos sobre a Amazônia, cresceu a ponto de a situação exigir uma rara declaração pública do comandante do Exército, Edson Pujol. O general afirmou em duas ocasiões que a política não deveria “entrar nos quartéis”. O timing não deixou dúvidas de que se tratava de uma indireta bem direta para o presidente.
Ilhado, Bolsonaro flerta novamente com o populismo. Foi sintomático que até o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenha afirmado que, diante de uma nova onda da pandemia, a prorrogação do auxílio emergencial não é uma possibilidade, mas “uma certeza”. O presidente da República quer um programa assistencial para chamar de seu, que o ajude a recuperar a popularidade nos rincões do país, mas não há dinheiro em caixa. O cenário preocupa, uma vez que Bolsonaro já deu fartas demonstrações de que não é muito cioso da responsabilidade fiscal. Recentemente, por exemplo, discutiu-se no governo a possibilidade de estender o chamado Orçamento de Guerra e o estado de calamidade pública para 2021. A medida abriria caminho para furar o teto de gastos. Paulo Guedes garantiu durante a semana que o governo não irá buscar essa “saída fácil”, mas, como é possível notar, atualmente, o único teto com que Bolsonaro realmente se importa é o da sua popularidade – segundo o Ibope, 54% já reprovam seu governo em São Paulo, o principal colégio eleitoral do país.
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