Carlos Fernandodos santos lima

Um já foi…

13.11.20

“Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos, pelo mesmo motivo.” Essa máxima, ora atribuída a Eça de Queiroz, ora a Benjamin Franklin, encerra uma verdade quase universal. A ela se junta outra também bastante famosa: “O poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”. As duas mostram a essência da natureza humana e o quanto, justamente por isso, é preciso cuidar da institucionalidade da democracia, não a confundindo jamais com caudilhismo ou messianismo. O que importa são instituições e não pessoas. O poder não pode jamais tornar-se carne, sob pena de se tornar injusto.

Entretanto, temos dificuldade de perceber instituições da mesma maneira que vemos, cheiramos e ouvimos pessoas. Para serem percebidas como boas e necessárias, as instituições precisam se consolidar no imaginário social de modo que sejam consideradas como se sempre tivessem existido, fazendo com que a sociedade não compreenda outra estrutura social que não aquela que essas instituições representam. Mas a democracia brasileira ainda está longe dessa institucionalidade, pois é recente e incompleta, tendo muito a ser aperfeiçoada para que se torne efetivamente sólida.

Os exemplos de democracias consolidadas ao redor do planeta, inclusive, têm sofrido imensos ataques. O obscurantismo sempre existiu entre boa parte da população, que prefere recorrer ao preconceito, ao pensamento mágico e a um sentimento de pertencimento a um grupo, do que pensar sobre entidades abstratas como liberdade, justiça ou igualdade. Infelizmente, a internet deu voz a todas essas emoções negativas, permitindo a manipulação desses sentimentos por demagogos e populistas. Muito do que é certo em termos de políticas públicas e economia é contraintuitivo, e a ciência, para muitos, é uma questão de crença, não de método. É difícil navegar racionalmente nestes novos tempos, mas as instituições são a garantia de que desvios graves não serão aceitos.

Assim está acontecendo agora nos Estados Unidos, pois a tentativa de assalto às instituições democráticas por Donald Trump está fadada ao fracasso. Biden é o novo presidente americano e tomará posse em janeiro de 2021, independentemente do desejo de seu adversário, mesmo porque a democracia não depende da vontade de um eventual detentor do cargo de chefe de governo. Infelizmente, o egocentrismo de Trump o torna incapaz de ver que sua retórica do ódio perdeu as eleições. E não só a eleição majoritária, mas também a do Colégio Eleitoral; e perdeu por uma margem significativa em ambos. Tenta agora espernear, o que é livre, mas demonstra apenas a sua pequenez pessoal e seu desapreço pela democracia. Esse comportamento encontra eco nas hordas de seguidores fanáticos, estressando ainda mais um país bastante dividido.

Mesmo com tudo isso, a eleição de Biden traz ventos de esperança para o Brasil. Mas primeiro é preciso reconhecer a força política do pensamento conservador, tanto aqui quanto lá. Não se trata de um pensamento liberal clássico, respeitoso com a liberdade pessoal e defensor intransigente do livre mercado. Trata-se mais de uma negação ao pluralismo, centrando-se em supostos valores únicos da sociedade ocidental, essencialmente nacionalista e cristã, combinado com um antiesquerdismo obscurantista e rotulador. Enfim, temos aí um extremismo de direita que se contrapõe como num espelho ao seu simulacro de extrema-esquerda.

Mas, apesar dessa situação, fica claro que há muito espaço para um candidato de centro, capaz de conciliar um pensamento econômico mais moderno com a percepção de que o Brasil é extremamente injusto e desigual. Aliás, nem sequer esses pensamentos são exatamente opostos entre si. Um estado menor e que custe mais barato para os contribuintes, uma base de impostos mais justa, um sistema político partidário limpo com eleições mais baratas, distribuição direta às famílias de auxílios temporários para superar a pobreza extrema, educação pública de qualidade para equalizar oportunidades profissionais e um sistema de saúde informatizado e preventivo, tudo isso é moderno e pouco importa se de direita ou de esquerda. Precisamos de políticas que funcionem para a população. Não importa se a vaca é branca, preta ou malhada, mas sim que dê leite.

Também precisamos, depois de dois monumentos intelectuais que foram Dilma e Bolsonaro, de um presidente capaz de formar uma frase completa com sentido, baseada em dados técnicos e na melhor ciência. Alguém capaz de reconciliar a política com a moralidade pública, desfazendo essa relação incestuosa entre o interesse público e o privado. Não se trata ainda de estabelecer um candidato centrista, mas de discutir, como recentemente fizeram Moro e Luciano Huck, o futuro deste país. Tudo o que não precisamos agora é novamente um embate entre extremistas como foi na última eleição. Não podemos mais precisar tapar o nariz para votar no candidato menos malcheiroso.

A escolha de Biden foi justamente essa busca pelo centrismo. Foi a de uma figura que, se lhe falta carisma, transmite segurança, se lhe faltam arroubos retóricos, inspira confiança, se lhe falta o vigor da juventude, traz a experiência. Como ele mesmo afirma, é um político de transição para uma nova geração, mas principalmente é um político da reconciliação com as instituições democráticas, republicanas e com a ciência, tudo aquilo que também sempre inspirou a república brasileira. Um candidato centrista pode não entusiasmar, mas agora precisamos mais de políticos que sejam confiáveis, inteligentes, capazes de ouvir e ponderar opiniões diversas — e que, principalmente, sejam moralmente íntegros, qualidades que de nenhuma forma se aplicam a Jair Bolsonaro.

A mensagem que fica é que precisamos da mesma vacina aqui no Brasil, e não estou falando da vacina da Covid, tão necessária. Precisamos de uma vacina contra o ódio e contra o preconceito. O Brasil tem que se curar dessas doenças que colocam em risco a democracia e a saúde pública — incluindo a saúde mental dos brasileiros. Não se trata de transigir com o errado, nem aceitar a realidade política como ela é, mas de caminhar para mudanças dentro do sistema, mesmo que mais lentamente do que gostaríamos. Para isso, como nos Estados Unidos, é preciso demitir o presidente. Jair Bolsonaro, assim como seu reflexo na extrema-esquerda, Lula, não podem voltar a governar em 2023, pois suas retóricas são de exclusão e revanchismo. Precisamos voltar a ter diálogo e esperança: um já foi, e agora cabe aos brasileiros demitir o outro e colocar uma pessoa centrada no lugar.

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