MarioSabino

Memórias do Torto

13.11.20

Eu pensei em Dante Alighieri quando ouvi Jair Bolsonaro dizer que “O que ele falou sobre os Estados Unidos é opinião dele. Eu nunca conversei com o Mourão sobre assuntos dos Estados Unidos, como não tenho falado sobre qualquer outro assunto com ele”. Foi no dia em que o sujeito comemorou a suspensão dos testes com a vacina comprada pelo governo de João Doria e ainda ameaçou responder com “pólvora” a eventuais retaliações comerciais de Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, por causa das queimadas na Amazônia. Hamilton Mourão havia afirmado que, quando chegasse o momento certo, o presidente reconheceria Joe Biden como o vencedor da disputa com Donald Trump:

O presidente está aguardando terminar esse imbróglio aí, essa discussão (sobre) se tem voto falso ou se não tem voto falso, para dar o posicionamento dele. Não julgo que corra risco (de a demora em reconhecer Joe Biden prejudique as relações com os Estados Unidos). Vamos aguardar, né? É uma questão prudente aí, espero. Acho que nesta semana definem-se as questões que estão pendentes, aí a coisa volta ao normal e nos preparamos para o novo relacionamento que tem que ser estabelecido.

Hamilton Mourão, então, levou a patada do chefe. Levou outra também nesta semana abundante: o presidente subiu nas tamancas depois que o Estadão revelou que o Conselho Nacional da Amazônia, presidido pelo vice-presidente, elaborou um documento que prevê a expropriação de “todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do crime de grilagem ou de exploração de terra pública sem autorização”. Furibundo, Jair Bolsonaro publicou nas redes sociais que era “mais uma mentira do Estadão ou delírio de alguém do governo. Para mim a propriedade privada é sagrada. O Brasil não é um país socialista/comunista”.

Crime de grilagem e exploração de terra pública sem autorização têm a ver com propriedade privada tanto quanto assalto à mão armada guarda relação com doação filantrópica, mas sabe como é que é: se tem Hamilton Mourão no meio, está errado, só pode ser coisa dos vermelhos. A apoiadores, Bolsonaro voltou a abordar a história revelada pelo Estadão, com a graça e elegância habituais: “A propriedade privada é sagrada, não existe nenhuma hipótese neste sentido. Se alguém levantar isso aí, eu simplesmente demito do governo. A não ser que essa pessoa seja indemissível”. Mourão, previsivelmente, tentou acalmar a besta fera. Disse que, se fosse o presidente, também teria ficado irritado, porque a proposta é apenas um estudo e ele deveria ter reforçado o sigilo sobre o texto. Um fofo.

A dinâmica da relação entre ambos é esta: Jair Bolsonaro fala uma asneira estrepitosa ou comete um atentado qualquer ao pudor, os jornalistas correm para ouvir Hamilton Mourão, seja ele alvo ou não — e o vice-presidente tenta consertar o estrago causado pelo presidente com platitudes, o que não o livra de uma tapona. Se o vice-presidente fosse pomposo, poderia até funcionar como um Conselheiro Acácio para o governo. Diante do espetáculo de grosserias a que se assiste, há de se reconhecer as virtudes de um acaciano. Mas não vou saltitar pelos séculos para ir de Dante Alighieri a Eça de Queiroz, não se preocupe.

No quadro de um país governado por gente lunática, Hamilton Mourão transformou-se, ora veja só, em personalidade de centro. Em entrevista a O Globo, Sergio Moro disse, em resumo, que o Brasil precisava de um governo que não fosse extremista de direita ou de esquerda, e tascou o vice-presidente entre os políticos que poderiam figurar numa chapa equidistante de Jair Bolsonaro e Lula, em 2022. Eu entendo: apesar de ter apreço por um lorde como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e até ter aventado a possibilidade de um autogolpe do atual presidente, Hamilton Mourão é uma ilha de sensatez num arquipélago de insânia. 

Não sei se ele é de centro, mas que o homem parece centrado, isso parece. Tão centrado que, para Jair Bolsonaro, ele é de esquerda. O vice-presidente indemissível vive sendo demitido moralmente por Jair Bolsonaro, porque o paranoico hospedado no Palácio do Planalto tem certeza de que Hamilton Mourão trama para substituí-lo na cadeira presidencial. A coisa chegou a tal ponto que acho que o vice-presidente deveria realmente fazer isso. Por que não? As lealdades têm de ser recíprocas, e a única lealdade de Jair Bolsonaro é para com os filhos. 

A trama até pode não dar certo, mas seria mais divertido do que levar embaixador europeu para sobrevoar floresta tropical. Todos os conspiradores reunidos na casa de Hamilton Mourão, em volta de uma garrafa de bom whisky: o vice-presidente não tem certa nostalgia do passado? Nada mais anos 1970 do que conspirar bebendo whisky. Como ele não vai conspirar, ao contrário do que acredita o presidente, a minha verdadeira sugestão a Hamilton Mourão é outra: vingar-se por escrito, com RG, CPF, título de eleitor e carteira de vacinação em dia.

Há quatro anos, escrevi como a vingança foi o motor de acontecimentos fundamentais da história recente do Brasil: Eduardo Cunha vingou-se de Dilma Rousseff ao aceitar o pedido de impeachment da petista; Pedro Collor vingou-se de Fernando ao relatar o esquema do irmão com Paulo César Faria; Roberto Jefferson vingou-se do PT quando revelou o mensalão. Se houvesse um William Shakespeare no Brasil e os personagens não fossem tão rasos ou estúpidos, todos esses episódios poderiam virar temas de “peças de vingança”, assim como Hamlet. Mas também não vou saltitar para ir a William Shakespeare, inclusive porque já estou chegando a Dante Alighieri.

Como se não tivesse mais o que fazer, eu estava lendo um ensaio sobre a vingança na literatura toscana dos séculos XII e XIII, quando me ocorreu que, para vingar-se, Hamilton Mourão poderia escrever um livro sobre a sua experiência no governo Bolsonaro. Não sou louco de comparar Dante Alighieri ao vice-presidente, apenas acho que ele pode ser fonte de inspiração vingativa com a sua Divina Comédia. Dante Alighieri colocou um monte de inimigos políticos no Inferno. Um deles foi Farinata degli Uberti. O autor o condenou ao círculo infernal onde padecem os ateístas e heréticos. Dante não era indemissível como Mourão: foi exilado de Florença por obra do partido de Farinata degli Uberti. Restou-lhe vingar-se poeticamente para a glória da literatura italiana.

Não tenho informação nenhuma sobre a minha desconfiança, mas tendo a crer que Hamilton Mourão já está escrevendo um livro. Só espero que não seja poesia, porque há glórias suficientes na literatura brasileira. Comecei a desconfiar disso ao assistir à famosa reunião ministerial de 22 de abril, a última com Sergio Moro no Ministério da Justiça, que Celso de Mello mandou divulgar. O vice-presidente não abre a boca e parece rascunhar o tempo todo. De vez em quando, um meio sorriso aparece em seus lábios, como o de um autor que se vê diante de um achado. Pela amostra da reunião servida em horário nobre da televisão, imagino a quantidade de histórias que Hamilton Mourão tem para contar sobre o governo de Jair Bolsonaro.

Daria um livraço, estou certo, desde que fosse divinamente revelador e condimentado. Da campanha aos últimos dias de mandato, serviço completo. O exílio do vice-presidente não é como o de Dante Alighieri. Ninguém pode impedi-lo de fazer figuração diária no escritório, e ele deve ter gente no Planalto que lhe repassa uma grande quantidade de informações relevantes e constantemente atualizadas sobre o maluco. Um tijolão a ser lançado em 2023 nas livrarias e na cabeça de Jair Bolsonaro, que já deu a entender que não comporá outra chapa com Hamilton Mourão — não existe vingança melhor. E, ainda por cima, renderia um bom dinheiro de adiantamento, dado que o sucesso de vendas seria bruto, líquido e certo. Talvez o capitão até se animasse a ler um segundo livro na vida.

Se Hamilton Mourão vier a publicar um catatau sobre o governo no qual está exilado, sugiro o título Memórias do Torto. Para bom entendedor.

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