A política da psicopatia

Faturar politicamente a suspensão dos estudos de uma das vacinas contra o coronavírus e rosnar para os Estados Unidos são só alguns dos sintomas da perturbação que acomete o presidente da República
13.11.20

O comportamento de Jair Bolsonaro é, mais uma vez, objeto de estupor nacional. Já havia virado uma espécie de esquete da ópera-bufa em cartaz no governo o presidente disparar declarações polêmicas para tirar os holofotes das cenas que ele prefere manter na penumbra. Quase sempre, elas eram precedidas por notícias incômodas envolvendo familiares dele ou deslizes da própria gestão. O padrão não mudou muito. No entanto, desde o início da pandemia, quando Bolsonaro se viu cada vez mais isolado na estratégia negacionista sobre a gravidade da doença que já matou mais de 160 mil pessoas no país, a prática se intensificou. Da “gripezinha” propalada na TV em pronunciamento oficial ao “e daí?” disparado a repórteres que o indagaram sobre a tragédia da pandemia, o presidente coleciona um vasto repertório de frases e atitudes incompatíveis com a compostura requerida pelo cargo. Nesta semana, contudo, ele conseguiu superar até seus próprios padrões.

Em um intervalo de apenas 24 horas, Bolsonaro comemorou como vitória política a suspensão dos testes da vacina da chinesa Sinovac contra a Covid-19 conduzidos pelo governo de São Paulo, originada por uma tragédia pessoal; disse que o Brasil teria de “deixar de ser um país de maricas” para enfrentar a pandemia do coronavírus de “peito aberto” e insinuou que o Brasil deve responder militarmente aos Estados Unidos de Joe Biden, se o presidente eleito americano retaliar o país por causa da Amazônia. São declarações e gestos que, em uma conjuntura política menos promíscua que a atual, em que o fisiológico e corruptível Centrão é o principal sustentáculo do governo no Congresso, poderiam levá-lo até a responder por crime de responsabilidade – especialmente pela parte da ópera em que ele tentou faturar politicamente em cima da suspensão dos testes da vacina.

Por mais que pareça para alguns o caminho mais fácil, naturalizar ou tratar como pilhéria a postura do presidente diante de uma tragédia nacional, como se a aceitação de um padrão de comportamento que degrada a instituição da Presidência da República e ameaça as vidas dos brasileiros não fosse muito grave, é aceitar que não há mais limites para o exercício do poder. Para além dos termos utilizados, não condizentes com o cargo que ocupa, e de tratar uma grave crise sanitária como briga política, Bolsonaro, na condição de maior autoridade do país, dissemina desinformação em doses cavalares e com efeitos alarmantes ao comemorar a interrupção dos testes da vacina comprada pelo governo do adversário João Doria e colocar em xeque sua eficácia. Pesquisas realizadas pelo Datafolha em São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Recife já detectaram sinais preocupantes de que diminuiu a disposição da população para vacinar-se.

Para o jurista Miguel Reale Júnior, o presidente cometeu mais um crime, passível de impeachment, ao celebrar a suspensão temporária dos estudos da Coronavac. Autor do pedido de impedimento de Dilma Rousseff, o ex-ministro da Justiça criticou ainda a “omissão” do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e do procurador-geral da República, Augusto Aras, sobre o comportamento “incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Afirma Reale Jr.: “No Brasil, o problema não é só não dar andamento a processos de impeachment. É que não tem uma voz de autoridade que se contraponha à calhordice desse presidente”. A voz do povo, porém, já  se faz ouvir, a julgar pelas pesquisas.

A imagem de Bolsonaro vem se deteriorando nos dois principais centros urbanos do país, São Paulo e Rio de Janeiro, um indicativo que preocupa o presidente, assim como aumenta a rejeição nas redes sociais. Segundo o último Datafolha, em São Paulo a sua aprovação oscilou para baixo, de 25% para 23%. No Rio, a avaliação do governo Bolsonaro caiu de 34% para 28%. Certamente não ajuda que o presidente tenha tripudiado sobre a morte do voluntário no teste da Coronavac.

Reale Jr: “Não tem uma voz de autoridade que se contraponha à calhordice desse presidente”
Mas como, do ponto de vista psicológico, poderia ser enquadrado o comportamento do presidente da República, capaz de sem a menor cerimônia politizar a morte de uma pessoa e comemorar o passo atrás em estudos clínicos sobre uma vacina que pode pôr fim a uma pandemia que já ceifou a vida de milhares de pessoas no país? “Os traços do presidente Bolsonaro desmerecem muito a loucura. Os loucos têm ética e os traços dele são totalmente sem ética. Ele faz questão de ser antidemocrático, de dizer frases de efeito para provocar. Não gosto de patologizar uma figura pública, mas, como cidadã, posso dizer que ele tem, sim, traços de perversão”, diz a psicanalista Ana Beatriz Freire, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao se referir a Bolsonaro, a professora lembra do trabalho Psicologia das Massas, de Sigmund Freud, concluído em 1930. “Ele tem o delírio próprio de quem age como um mestre falando para seguidores”, diz ela. Bolsonaro parece ainda não ter empatia alguma com outros seres humanos que não sejam os seus filhos — um traço de psicopatia.

Os recentes arroubos tiveram início na manhã de terça-feira, 10, horas depois de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, anunciar, de forma surpreendente, a suspensão dos ensaios clínicos da Coronavac, a vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, ligado ao governo de João Doria em São Paulo. O motivo da interrupção apontado pela agência do governo federal em uma nota divulgada em seu site, na noite anterior, era a notificação de um “evento adverso grave” envolvendo um dos 10,4 mil voluntários que receberam ou a vacina ou um placebo no teste duplo cego feito pelos pesquisadores. Mas, até então, o tipo de “evento” ocorrido seria desconhecido pela própria Anvisa, segundo afirmou no dia seguinte o presidente do órgão, o almirante Antônio Barra Torres.

A morte do voluntário — por suicídio ou overdose, segundo o boletim de ocorrência — só veio a público mais tarde. Na nota à imprensa, a agência apontava sete possibilidades de intercorrência, como óbito, invalidez significativa ou anomalia congênita, sem especificar qual delas havia levado o órgão a adotar a medida severa de paralisar tudo. Mesmo diante da falta de informações oficiais, Bolsonaro não demorou a tripudiar sobre um revés que, na visão dele, enfraquecia um adversário político. “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, escreveu o presidente, em resposta a um seguidor que o questionou se o Brasil ia comprar e produzir a Coronavac.

A declaração de Bolsonaro, por óbvio, explicitou ainda mais a politização de uma discussão já amplamente explorada pelos dois lados. Em outubro, o presidente havia dito que não compraria a “vacina do Doria” e desautorizou o general Eduardo Pazuello depois que o ministro da Saúde anunciou publicamente a intenção de adquirir 46 milhões de doses do imunizante. O governador tucano, por sua vez, tem capitalizado ao máximo cada etapa dos estudos da vacina como principal alicerce de sua plataforma eleitoral para a disputa presidencial em 2022.

Mineto/Futura Press/FolhapressMineto/Futura Press/FolhapressCoronavac: o governador de São Paulo, João Doria, tem capitalizado ao máximo cada etapa dos estudos da vacina
O que se viu foi uma guerra de versões entre dois órgãos técnicos vinculados a dois governos antagônicos. O presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, disse que comunicou a Anvisa sobre o caso envolvendo o voluntário no dia 6 de novembro, dentro do prazo legal, já com a informação de que o “evento adverso grave” não tinha relação com vacina, fato que já teria sido atestado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, ligada ao governo federal. A Anvisa, por sua vez, alegou que por causa de um problema técnico ocasionado pelo hackeamento ocorrido em órgãos federais na semana passada, o comunicado do instituto só pôde ser visualizado no servidor usado para troca de ofícios com os governos estaduais no dia 9 e, ainda assim, estava “incompleto”.

Entre os documentos que faltavam, estaria o boletim de ocorrência no qual constava a causa da morte do voluntário da vacina. No documento, obtido por Crusoé, a Polícia Civil de São Paulo registra que o participante da pesquisa, um farmacêutico de 32 anos, foi encontrado morto no dia 29 de outubro dentro de seu apartamento pelo zelador do prédio, que arrombou a porta a pedido do companheiro do rapaz que estava viajando e não conseguia contato com ele. Não havia sinais de violência no imóvel. O envio da documentação complementar à Anvisa, incluindo um relatório do Comitê Internacional Independente da vacina da Sinovac, formado por especialistas estrangeiros que analisam a eficácia e a segurança do estudo de forma imparcial, levaram a agência sanitária a autorizar a retomada dos ensaios clínicos pelo Butantan no dia seguinte.

Bastaram algumas horas para que a polêmica envolvendo a guerra da vacina ganhasse concorrência no noticiário, novamente pela língua solta de Bolsonaro. “Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas, pô”, afirmou, durante evento sobre turismo na terça-feira, 10. Na mesma cerimônia, Bolsonaro ameaçou usar “pólvora” contra os Estados Unidos, na discussão sobre a defesa da floresta amazônica. “Apenas na diplomacia não dá. Quando acaba a saliva, tem que ter a pólvora”, afirmou Bolsonaro.

O dado espantoso é que o presidente falava à vera. Como se não fosse  absurdo o país enfrentar a maior potência militar do planeta, que detém armas nucleares e investe 2,5 mil vezes mais do que o Brasil nas Forças Armadas. O país de Bolsonaro, não custa lembrar, tem apenas um – um! – caça de última geração em condições operacionais. As Forças Armadas nacionais estão há tempos sucateadas.

Marcelo Gonçalves/FolhapressMarcelo Gonçalves/FolhapressWassef esteve no Planalto no dia em que o presidente estava mais alterado: terá sido esse o gatilho?
A psicanalista Ana Beatriz enxerga “uma espécie de fanatismo” nas declarações de Bolsonaro sobre os Estados Unidos. “Quem acredita ser Napoleão, o faz verdadeiramente”, diz a professora. “É uma loucura funcional”, resume o professor Christian Dunker, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Para ele, diante da perda de popularidade e com a reeleição em risco, Bolsonaro tenta contornar sua incompetência política com atos e declarações que denotem “virilidade”, como a declaração contra os Estados Unidos. “Ele quer dar provas de coragem e faz isso chamando os cidadãos de maricas ou falando da possibilidade de guerra contra os americanos”, explica. “Para o presidente, é um golpe perder o apoio imaginário dos Estados Unidos. A preocupação dele é como será visto pelo eleitorado. Bolsonaro está refém do personagem que criou.”

Vistas pelo ângulo político, as declarações polêmicas em série de Bolsonaro tiraram um pouco dos holofotes um dos assuntos mais indigestos para o presidente, o caso Queiroz. O presidente rompeu o estilo paz e amor que havia adotado desde a consolidação da aliança com o Centrão no Congresso e com a ala garantista do Supremo Tribunal Federal justamente no momento em que o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou o senador Flávio Bolsonaro pelo desvio de 6,1 milhões de reais no suposto esquema de rachid na Assembleia Legislativa do Rio. Curiosamente, no dia em que proferiu os desvarios, o ex-advogado do presidente Frederick Wassef foi flagrado entrando no estacionamento do Palácio do Planalto, conforme informou o jornal Folha de S.Paulo. A pergunta é: o que Wassef teria ido dizer ao presidente?

Convenhamos que a presença do ínclito Wassef no Planalto, pela repercussão que gera e riscos que envolve, não seria para trocar amenidades. Algo importante e provavelmente urgente deveria estar em pauta. Terá sido esse o gatilho para mais uma atitude tresloucada do presidente? Quando o advogado desembarcou no Planalto, a cerimônia em que Bolsonaro disparou seu palavrório já tinha terminado, mas certamente, àquela altura, ele já sabia da visita — em entrevista a GloboNews, Wassef teve o desplante de dizer que “não foi ao palácio”, mas que, sim, “passou” no estacionamento, encontrou algumas pessoas e saiu. “Minha vida aqui é uma desgraça. É problema o tempo todo. Não tenho paz para absolutamente nada”, desabafou o presidente. Não, Bolsonaro, quem não tem paz são os brasileiros.

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