MarioSabino

Não é amor, é doença

06.11.20

Onde você gostaria de viver? No meu cálculo impressionista, em noventa e cinco por cento das vezes, a resposta dos brasileiros é Estados Unidos. As cinco por cento restantes dividem-se entre uns poucos países da Europa e a Austrália, muito apreciada entre os mais jovens. Eu vivi durante certo tempo na França, levado pelas circunstâncias. França, não, Paris. Quem vive em Paname aprende que a capital da França não é propriamente França. “Ah, Paris…”, dizem os interlocutores ocasionais, como se a realidade cotidiana, existencialmente, não oscilasse durante a maior parte do tempo entre aborrecida e problemática para todo mundo, independentemente da latitude em que se mora, da paisagem que se tem sob os olhos ou do dinheiro que se tem na conta (com dinheiro, obviamente, o aborrecido pode ficar menos aborrecido).

A única vez em que fiz o elogio da vida em Paris foi quando já não morava mais na cidade, para dizer que lá eu encontrava gente normal: 

Hoje embarco para Paris.

A minha Paris não tem nada a ver com a Paris dos ladrões que vão torrar o nosso dinheiro por lá. Vou a Paris para ver gente normal.

Gente normal conversa sobre assuntos que não sejam apenas dinheiro e compras.

Gente normal lê livro.

Gente normal não vai a restaurante de boné, nem se veste como prostituta (a não ser que seja prostituta).

Gente normal mantém distância regulamentar de quem não conhece. Não cutuca você ou o chama de “tio” ou “amigão”.

Gente normal diz “por favor”, “com licença” e “obrigado”. Gente normal respeita fila.

Gente normal, ao volante, dá seta quando vira à direita ou à esquerda (e a seta está sempre no sentido certo).

Gente normal freia o carro para deixar o pedestre atravessar na faixa.

Gente normal não padece com atrasos de ônibus e trens (e é informado dos horários e itinerários nos pontos e estações)

Gente normal nem sequer imagina o que é ter esgoto a céu aberto no meio das cidades.

Gente normal não nada em cocô. 

Gente normal está acostumada a ver ruas limpas.

Gente normal não tem falta de luz toda semana.

Gente normal estranha fiação aérea.

Gente normal não sabe o que é buraco no asfalto.

Gente normal não tropeça em buraco na calçada.

Gente normal se habitua à beleza. 

Gente normal dificilmente morre assassinada.

Gente normal se escandaliza com assaltos.

Gente normal despreza corruptos e os coloca na cadeia e no ostracismo.

Gente normal não diz que terrorismo é justificável.

Gente normal admira o que lhe é superior e tenta fazer igual, sem achar que sofre de complexo de vira-lata.

Paris é especial porque é normal.

Soa como idealização, mas é apenas uma crítica indireta às precariedades, mazelas e vulgaridades brasileiras. Logo depois, inclusive, quase morri de susto em Paris, enquanto assistia juntamente com o meu caçula ao jogo entre Itália e Alemanha, pela Eurocopa, na fan zone do Campo de Marte. Houve debandada geral depois de um confusão que foi tomada como ato terrorista, episódio também registrado num artigo. Não é bom viver com medo de atentado.

Escrevi Vou ver gente normal (tal era o título) em 2016, antes de muita água suja rolar por debaixo das nossas pinguelas. De lá para cá, tudo conseguiu piorar. Não só no Brasil, claro, mas é a parte que nos cabe. Fatores exógenos se juntaram a fatores endógenos e continuamos atolados no mesmo pântano material, institucional e moral, o que torna tudo mais aborrecido e problemático no plano existencial. Quando parecia que íamos nos mover um pouquinho em direção a terreno firme, afundamos mais. Não só trocamos de ladrões, como os ladrões trocados agora tentam voltar. Outro dia, um deles até foi entrevistado na televisão, como se ladrão não fosse. Para não falar do chefe da organização criminosa, condenado pela Justiça, que apoia candidato a prefeito em propaganda eleitoral, como se nada houvesse ocorrido. Mas tudo bem para muita gente: é um inocente antecipado, visto que ele pode ter a condenação cancelada por juízes mais elevados.

Este artigo desconsolado vem na sequência da notícia de que Jair Bolsonaro, na sua visita a Piranhas, cidade alagoana de nome bastante sugestivo, elogiou Fernando Collor de Mello. “Homem que luta pelo interesse do Brasil e e em especial pelo seu estado”, disse o presidente da República. Ambos inauguraram juntos um sistema de abastecimento de água. É tanta inauguração de sistema de abastecimento de água no Nordeste que já era tempo de ter água para quem leva vida severina.

Vamos deixar a caixa d’água de lado, porque a questão está mesmo na frase de Bolsonaro. É humilhante que esses senhores continuem a esculachar os cidadãos, doutor. “Homem que luta pelo interesse do Brasil”: francamente, não dá. Alagoas me evoca Graciliano Ramos e a frase inicial de Vidas Secas, a mais bela de um romance brasileiro: “Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes”. Os juazeiros, no entanto, foram queimados e restou apenas a planície avermelhada — de vergonha. Se você está cansado, imagine eu, obrigado que estou a falar de malandros quase o tempo todo. Desculpe se insisto no ponto do cansaço em alguns artigos, ora mais, ora menos literariamente, mas certa sinceridade é pressuposto do bom articulista que tento ser. E acho que sirvo de instrumento para o leitor fazer também a catarse possível.

Onde você gostaria de viver? Eu gostaria de viver bem longe desse pessoal. O sentimento de asco ainda tem espaço para crescer, o que parecia improvável. É preciso dizer, contudo, que existe um problema verificado pessoalmente por mim: saímos do Brasil, mas o Brasil resiste a sair de nós, onde quer que estejamos. Poucos escapam dessa sina. Não é amor, é doença. Nunca seremos gente normal. Se nada tenho a acrescentar neste momento, é também porque o nada faz parte do ser. Os vãos da alma são alma igualmente.

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