SergioMoro

Cortinas de fumaça

06.11.20

Nas últimas duas semanas, enquanto democratas e republicanos disputavam a presidência da maior economia do mundo, o Brasil se perdeu em discussões sobre efemeridades, algumas delas verdadeiras cortinas de fumaça que tiraram o foco dos problemas reais, como as crescentes incertezas da economia brasileira.

Surgiu a polêmica da guerra das vacinas, com a corrida entre a vacina de Oxford e a da China e o debate sobre a compulsoriedade ou não da vacinação. Bem, não há vacina com testes finalizados ainda e se desconhece a real aceitação da população a seu respeito. Então, o melhor é esperar a vacina e daí ofertá-la, antes de aprofundar a discussão sobre temas talvez desnecessários. Se a aceitação for ampla, discutir a obrigatoriedade é bobagem. Ademais, no início, será provavelmente necessária priorização de grupos, com o que a discussão sobre a compulsoriedade parece ainda mais prematura. Entendo, porém, errado desestimular a vacinação, colocando em dúvida antecipadamente, antes de qualquer teste, a eficácia ou a segurança da vacina, qualquer que seja sua procedência.

Um deputado federal do Centrão sugeriu uma nova Constituição. A atual estaria ultrapassada, engessaria a política ordinária e daria muito poder a juízes e procuradores, estes que, segundo ele, seriam o principal problema do Brasil. Não creio que a proposta deva ser levada a sério. A Constituição de 1988 não é ruim, tem partes boas, especialmente o capítulo dos direitos e garantias fundamentais. De fato, é um pouco detalhista demais na área administrativa, social e econômica, dificultando a sua adaptação segundo as necessidades do tempo. Mas, com raras exceções, todas as vezes em que a Constituição foi emendada desde 1988 não houve um enxugamento, mas a adição de textos cada vez mais detalhados. Vejam a reforma da Previdência no ano passado: as normas inseridas na Constituição são tudo menos enxutas. Por que então acreditar que uma nova Constituinte produziria um texto menor? Além disso, produzir uma nova Constituição em tempos de polarização política é tudo menos sábio. Sabe-se como começa, não se sabe como termina. Perguntem a Luís XVI a opinião dele sobre o tema. Todo mundo quer uma Constituição para chamar de sua. Melhor ficar com aquela que já conhecemos.

Agora um assunto realmente relevante. Escrevo essas linhas sem conhecer o resultado final da eleição presidencial norte-americana. Ela é, simbolicamente, tão relevante para o mundo que penso que todos no globo deveriam ter direito de nela votar. Como isso é inviável, alguns não resistem e não escondem sua preferência. Para o cidadão comum, não há problema. Para os governantes, melhor esperar o resultado e conversar com o vitorioso.

Tenho grande apreço pelos Estados Unidos. Não que não tenham os seus problemas ou não tenham feito coisas ruins no mundo. Mas o saldo ainda é imensamente positivo: são a liderança do mundo livre e um celeiro de ideias, cultura e tecnologia. Foram fundamentais para a derrota do totalitarismo do século XX, à esquerda ou à direita.

Caso as urnas confirmem o favoritismo de Joe Biden, o atual governo brasileiro, que, através do presidente Bolsonaro, se alinhou pessoalmente ao atual presidente Trump, terá que mudar de postura. Isso não necessariamente será difícil, pois a relação entre Brasil e Estados Unidos transcende questões pessoais, a ilustrar o fato de que a proximidade entre o presidente Bolsonaro e o presidente Trump não resultou em grandes vantagens comerciais para o Brasil. Será, no entanto, necessário que o governo brasileiro ajuste pelo menos a política ambiental e fortaleça a preservação principalmente da floresta amazônica, a fim de diminuir as pressões da comunidade internacional e do novo governo americano.

Quando eu estava no governo, houve de fato um esforço significativo, neste ano já sob a liderança do vice-presidente Hamilton Mourão, para reduzir queimadas e desmatamento ilegal. A Operação Verde Brasil I e II não pode ser ignorada. Como, ainda assim, a destruição da floresta tem aumentado, é preciso fazer mais. Há vários cursos de ação possíveis. O governo precisa, como ação concreta, restabelecer a capacidade operacional do Ibama e do ICMbio. Deve deixar ainda os agentes de fiscalização e da repressão trabalharem conforme a lei, sem ameaças de demissão ou exoneração caso cumpram seu dever. Multas ambientais aplicadas agora ou no passado devem ser cobradas efetivamente. Se foram injustas, podem ser revistas, mas não ignoradas. É preciso um plano para fomentar o desenvolvimento sustentável na região, tornando atrativo aos habitantes da região a conservação. Não é algo fácil, mas é evidente que a política ambiental não pode estar centrada na punição.

O principal ajuste reside no discurso e na comunicação do governo. A soberania do Brasil sobre o seu território, inclusive sobre a Amazônia, é inegável e não é passível de negociação. Mas usar esse discurso com fins exclusivamente políticos-eleitorais para o público interno não ajuda em nada na preservação do meio ambiente ou nas nossas relações internacionais, inclusive comerciais. Ao lado da ação responsável de preservação, o discurso da liderança deveria ser em favor do desenvolvimento sustentável, sensível, sim, às necessidades dos habitantes da região, mas igualmente de desestímulo às ações ilegais de desmatamento e queimadas. Claro que o discurso desacompanhado das ações é também inútil. Mas sem o discurso certo, de pouca serventia são as operações policiais ou militares na região, pois não podem estar em todo o lugar e acabam perdendo seu efeito preventivo. Enfim, o governo precisa parar de enviar mensagens ruins ou contraditórias sobre a política ambiental e eliminar essa fonte de atrito desnecessária com a comunidade internacional e com o mundo dos negócios.

Talvez a eleição de Biden force o governo a rever esse erro e a ajustar o discurso ambiental. Tenho algumas dúvidas de que isso ocorra, pois é grande a tentação de usar a questão de maneira ufanista e em favor de uma soberania não exatamente questionada. Isso pode ser um ativo eleitoral, ainda que equivocado. Agora, se o presidente Trump for reeleito, a pressão contra o Brasil não sofrerá grande modificação, ainda que o acordo do Mercosul com a União Europeia já consista em fator suficiente para justificar uma mudança de postura. Vamos acompanhar os desdobramentos. Aposto que a questão ambiental não será uma efemeridade como os demais assuntos. Na floresta, a cortina de fumaça é real.

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