Carlos Fernandodos santos lima

Precisamos reformar a política e não a Constituição

30.10.20

Ricardo Barros, atual líder do governo Bolsonaro, ex-ministro da Saúde no governo Temer e membro da base de apoio de Dilma, Lula e Fernando Henrique Cardoso, um dos mais proeminentes representantes do que há de pior da política brasileira, o Centrão — um agrupamento que suporta qualquer governo desde que bem remunerado —, propôs esta semana o golpe definitivo contra a democracia brasileira: uma nova Assembleia Constituinte.

“Mas, Carlos Fernando, um plebiscito não é um mecanismo essencialmente democrático? Como isso seria um golpe?”, podem questionar os caros leitores. Antes de mais nada, uma nova constituição deve decorrer de um rompimento da ordem constitucional anterior, ou seja, de um momento em que as soluções apresentadas pela velha constituição não tenham mais condições de resolver os problemas atuais da sociedade que pretende reger.

Assim acontece agora com o Chile, pois a atual constituição chilena é fruto do regime militar de Pinochet, ou seja, é uma imposição aos chilenos de um preço para que os militares deixassem espontaneamente o poder. Assim, enquanto a nossa Constituição Federal é resultante de uma escolha democrática, mesmo que imperfeita, pode-se dizer que somente agora o Chile está rompendo com a ditadura. Os problemas atuais da sociedade chilena e que estão levando parte significativa da população para as ruas, portanto, precisam ser equacionados finalmente pela vontade maior do povo.

Aliás, foi por compreender que uma constituição ganha legitimidade quanto mais próxima do povo que no Chile houve a opção popular por uma assembleia constituinte exclusiva, composta por cidadãos, não partidária, e com igualdade de representação por gênero. Os chilenos não estão cometendo o erro de nosso processo constituinte, que permitiu uma assembleia não exclusiva, dominada pelos políticos brancos e homens, imiscuindo a política rasteira nas grandes discussões constitucionais. Note-se inclusive que não foi por coincidência que ali nasce o nefasto Centrão.

Aqui no Brasil, com certeza, o desejo de Ricardo Barros não é o de uma constituinte exclusiva, aberta para cidadãos em candidaturas avulsas. A ideia de Ricardo Barros, não duvidem, é a de transformar o atual Congresso Nacional, esse mesmo legislativo repleto de investigados, denunciados e até condenados por corrupção, na nova Assembleia Constituinte. Teríamos, enfim, que engolir a participação exclusiva da classe política no processo, com seus interesses particulares e privados, quando não criminosos.

E um desses interesses criminosos é revelado pelo mesmo Barros sem qualquer pudor. O seu maior desejo é o de acabar com a interferência dos órgãos de controle sobre o que ele chama de “política”. Em um país com uma impunidade secular de poderosos, Ricardo Barros pretende agora explicitá-la, torná-la regra constitucional, destruindo a independência do Ministério Público e do Judiciário, transformando-os em sinecuras cujo único objetivo seria de encarcerar a população mais pobre, negra ou parda, mas nunca de fazer cumprir as leis para quem detém poder político ou econômico. Enfim, o desejo de Ricardo Barros é o de dar um golpe, implantando um governo do corrupto, para o corrupto e pelo corrupto.

Entretanto, não se pode negar que temos problemas graves ameaçando nossa legitimidade constitucional. Cada vez mais a Constituição brasileira é uma colcha de retalhos formada por um processo de emenda constitucional descontrolado e vulgarizado. É só ver o processo de dois turnos em cada casa, Câmara dos Deputados e Senado Federal, pensado para permitir uma maior reflexão sobre as mudanças e suas consequências, e que foi transformado em uma brincadeira de votações pela manhã e à tarde do mesmo dia.

Além disso, a opção do constituinte de 1988 por uma lei maior detalhada tem sido levada ao extremo, pois grupos de interesses procuram hoje cimentar seus interesses particulares na Constituição, de modo a garantir-lhes os benefícios do estado em detrimento dos demais cidadãos. Assim, esses agrupamentos políticos, comandados principalmente por Rodrigo Maia, somente falam nas reformas que objetivam manter o estado vivo, mas tísico, funcionando o suficiente para que o sistema parasitário sugue os recursos públicos. Nós, brasileiros, somos para eles apenas animais em currais cujo objetivo é o de os alimentar com o suor de nosso trabalho.

A única forma de resgatarmos a Constituição Federal desse sequestro que os políticos impõem é a de procedermos a uma ampla e profunda reforma política. Precisamos diminuir a necessidade de recursos lícitos e ilícitos do atual sistema político-eleitoral-partidário. Para isso, é preciso compreender que uma estrutura de 33 partidos políticos – pelo menos até esta semana segundo o site do TSE – é insustentável. Um partido político deve representar uma visão de país, e não contas bancárias a serem abastecidas com dinheiro público ou conseguidos com a venda de apoio e tempo de televisão.

Precisamos democratizar os partidos, impondo-lhes diretrizes claras que impeçam o seu controle apenas por caciques partidários, como se partidos políticos fossem apenas propriedades particulares. Temos que incentivar a participação popular nessas agremiações, fazendo com que haja a filtragem de lideranças que possam contribuir com o processo democrático em seus mais diversos níveis. Mesmo com os avanços da democracia direta, não podemos prescindir dessa função de criação de lideranças que os partidos políticos possuem, pois é justamente a capacidade de compor interesses diversos e legítimos através de um processo de diálogo de lideranças informadas e imbuídas de interesse público que define o melhor sentido a política.

A conclusão a que se chega é a de que precisamos revolucionar o país, não com uma nova constituição, mas com o retorno aos seus princípios básicos: igualdade de todos perante a lei – com o fim de uma casta de poderosos que abusa das facilidades do sistema jurídico para burlá-lo; a tripartição dos poderes, especialmente com o respeito pelo Judiciário como instância final de decisão sobre conflitos, mas também com a restauração dos limites de competência entre as diversas instâncias e com o retorno à colegialidade e à circunspecção e cautela das decisões dos tribunais; e com um assertivo esforço para que o estado seja um grande equalizador, por cima, e nunca por baixo, das condições de saúde e educação dos brasileiros, para que esses possam se desenvolver como pessoas e cidadãos. Infelizmente, não são esses os objetivos do adesista Ricardo Barros.

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