Os rejeitados

Se a ideia era usar as eleições municipais como prévias para 2022, Bolsonaro e Lula reúnem motivos de sobra para se preocupar: os candidatos que eles apoiam afundam nas pesquisas
30.10.20

A promessa de permanecer distante das eleições municipais e não apoiar candidatos a prefeituras e câmaras municipais já entrou para o rol de compromissos não cumpridos pelo presidente Jair Bolsonaro — ao lado de juras como o fim do toma lá, dá cá e a tolerância zero com a corrupção. O chefe do Planalto gravou vídeos de apoio a aliados que estão na disputa e escancarou sua preferência por candidatos em várias capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus e Fortaleza. Bolsonaro não disfarça, entretanto, seu receio de se entregar de corpo e alma às campanhas. O medo é de sair das urnas tachado como perdedor, sobretudo em municípios estratégicos no xadrez eleitoral para 2022. E essa possibilidade está se desenhando nos mais recentes levantamentos de intenções de votos: candidatos que tiveram as bênçãos do Planalto, nos bastidores ou de forma explícita, começam a derreter nas pesquisas e já tentam se afastar do chefe do Executivo. Antípoda preferido de Bolsonaro, com quem o mandatário sonha em polarizar em 2022, o ex-presidente Lula experimenta o mesmo infortúnio. Se há 18 anos, no auge da popularidade, o petista era o cabo eleitoral dos sonhos de políticos de esquerda, hoje a presença de Lula na propaganda eleitoral ou nos santinhos gera o efeito contrário. Como consequência do desprestígio de seu morubixaba, o PT lidera a campanha em apenas uma capital, Vitória. Só em quatro capitais, ostenta mais de 10% nas pesquisas.

A corrida eleitoral em duas das mais importantes capitais brasileiras ilustra o toque de Midas às avessas do petista e do presidente da República. No Rio de Janeiro e em São Paulo, os candidatos apoiados pela dupla, cada vez mais faces da mesma moeda, enfrentam dificuldades, algumas delas intransponíveis. Na capital fluminense, a julgar pelas tendências indicadas nas últimas pesquisas, tanto o atual prefeito, Marcelo Crivella, do Republicanos, quanto a deputada federal Benedita da Silva, do PT, devem ficar de fora do segundo turno. Os dois aparecem em segundo lugar, tecnicamente empatados com Martha Rocha, do PDT, ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Mas, enquanto a delegada decola, Crivella despenca ladeira abaixo nas intenções de voto. As pesquisas mostram que a associação com Jair Bolsonaro joga contra o prefeito. O último levantamento do Datafolha na cidade verificou a percepção dos cariocas quanto ao desempenho do presidente da República no combate à pandemia: 50% avaliam como ruim ou péssimo, 21% como regular e 28%, como ótimo ou bom. Já a gestão municipal da crise da Covid-19 foi classificada como ruim ou péssima por 56% dos moradores da cidade.

Desde agosto, quando foram realizadas as convenções partidárias, Bolsonaro foi ao Rio duas vezes e se deixou fotografar ao lado do aliado. Os dois inauguraram juntos uma escola cívico-militar e participaram de um evento da Marinha. O último encontro, em setembro, ocorreu horas depois de Crivella ser alvo de uma operação policial, o que acendeu o alerta no Planalto sobre a necessidade de evitar a vinculação. Poucos dias mais, a Justiça Eleitoral condenou o chefe do Executivo municipal por abuso de poder e o deixou inelegível – o TSE aceitou o efeito suspensivo do recurso e ele segue na disputa. Jair Bolsonaro fugiu do assédio do prefeito e tentou se esquivar de marcar presença explícita na campanha antes do primeiro turno. Na noite de quarta-feira, 29, o presidente declarou apoio de forma um tanto envergonhada. “Estou com o Crivella, mas se você não quiser votar nele, não tem problema”, disse em sua live semanal, sem deixar claro se o intuito era ajudar ou atrapalhar. Os familiares de Bolsonaro contribuem para manter sua imagem colada à do candidato do Republicanos. O senador Flávio Bolsonaro, correligionário de Marcelo Crivella, o chamou de “meu prefeito” em uma live. Rogéria Bolsonaro, ex-mulher do presidente e candidata a vereadora, gravou vídeo com seu companheiro de partido no começo de outubro e demonstrou estar em total sintonia com ele.

Fernando Frazão/Agência BrasilFernando Frazão/Agência BrasilMarcelo Crivella, atual prefeito e candidato da família Bolsonaro no Rio: em queda livre nas pesquisas, ele corre o risco de ficar fora do segundo turno
Uma derrota de Crivella, ainda mais se confirmada sua eliminação ainda no primeiro turno das eleições, tem o potencial de abalar a imagem de Jair Bolsonaro justamente em seu domicílio eleitoral. O comando da campanha, lideranças do Republicanos e da Igreja Universal pressionaram o Planalto pela mensagem de apoio do presidente – mesmo sob o risco de piorar ainda mais a situação do candidato. Para o staff de Crivella, vale a máxima segundo a qual “perder de dois é o mesmo que perder de mil”. Por ora, não há definição sobre uma gravação de Bolsonaro para o horário eleitoral do prefeito carioca – sobretudo se o naufrágio seguir em ritmo acelerado.

Adversária de Crivella na briga por uma vaga no segundo turno contra Eduardo Paes, Benedita da Silva ganhou um respiro nas pesquisas, mas ainda enfrenta uma forte rejeição do eleitorado, assim como o atual chefe do Executivo municipal. O desgaste do PT desde o mensalão, o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula e companheiros na Lava Jato são uma conta alta demais para o partido e o preço chegou para Benedita. Mesmo assim, na semana passada, a propaganda da petista na TV foi para o tudo ou nada: exibiu um vídeo do ex-presidente Lula em que ele diz: “Benedita conhece a luta do povo pela sobrevivência. Por isso, é a melhor prefeita que o Rio pode ter”. A julgar pelos índices de rejeição de Lula na capital fluminense, pode ter sido um tiro no pé.

As duas capitais em que o PT reúne maiores chances de vitória são justamente onde figuram candidatos menos associados a Lula e à legenda. No Recife e em Vitória, as tentativas de desvinculação da imagem do ex-presidente por Marília Arraes e João Coser geraram insatisfação na cúpula petista, que cobra dos candidatos da sigla uma defesa institucional do partido – e, sobretudo, de Lula. Na largada da campanha, Marília praticamente eliminou o vermelho do material de propaganda. A estrela do PT deu lugar a um coração e, nos programas eleitorais, a deputada federal vestiu prioritariamente branco. “Uso todas as cores e vou usar vermelho quando quiser”, disse a parlamentar, após ser cobrada sobre o assunto em uma sabatina. Nos últimos dias, após a reprimenda da direção do partido, a parlamentar foi praticamente compelida a incluir Lula e o vermelho em sua campanha. Até agora, a sigla já repassou quase 1 milhão de reais do Fundão Eleitoral para Marília. A petista aparece em segundo lugar nas pesquisas, tecnicamente empatada com a Delegada Patrícia, do Podemos. Em Vitória, única capital em que o PT lidera, João Coser trocou a estrela vermelha do material de campanha por um símbolo colorido. Lula só teve destaque no programa eleitoral do candidato petista na última quarta-feira, 28, curiosamente um dia depois de o PT repassar 500 mil reais do Fundão para as contas eleitorais do capixaba.

Bruno Santos/FolhapressBruno Santos/FolhapressApoiado pelo ex-presidente Lula, o candidato do PT à prefeitura de São Paulo, Jilmar Tatto, estacionou em 4% das intenções de voto e está em sexto lugar
Na capital paulista, o PT é o retrato do seu principal líder: fora de forma política e dono de um discurso tão surrado quanto ultrapassado. Quatro anos após a saída de Fernando Haddad, derrotado por João Doria no primeiro turno de 2016, as chances de vitória da sigla na capital paulista são próximas de zero. Segundo levantamento do Datafolha divulgado na semana passada, Jilmar Tatto tem apenas 4% das intenções de voto e está em sexto lugar, 10 pontos percentuais atrás de Guilherme Boulos, do PSOL, o candidato de esquerda mais bem posicionado. Mantido esse percentual após a votação, esse será o pior desempenho do PT na eleição municipal de São Paulo desde a redemocratização – até hoje, Haddad teve a menor votação percentual da história do partido na capital, com apenas 16,7% na disputa passada. Lula, que negou apoio a Boulos e apostou as fichas na candidatura própria de Tatto, tenta aos 45 do segundo tempo se afastar do correligionário para escapar do desgaste de uma derrota acachapante. Não será possível, no entanto, dissociá-lo da débâcle eleitoral na principal capital do país, apesar dos comoventes esforços. “Quem tem que ganhar as eleições é o Jilmar”, disse o ex-presidente, em entrevista ao jornal El País, como se esquivasse da responsabilidade sobre o fiasco petista. Um fiasco com repercussão que vai muito além das fronteiras do município. “A eleição para a prefeitura de São Paulo é importantíssima porque tem um debate muito mais nacionalizado. Boa parte do que se discute nas eleições para prefeito da capital paulista aparece nas disputas nacionais, dois anos depois”, avalia Glauco Peres, cientista político e professor da USP.

Para Jair Bolsonaro, o cenário é nebuloso no centro político do país, o que pode prejudicar sua largada na corrida pela reeleição. A relação com Celso Russomano, do Republicanos, está tumultuada e criou-se uma repulsa mútua – o presidente teme vincular-se ao deputado federal em queda nas pesquisas, e o candidato agora esconde o seu mais novo padrinho político, visto como responsável pelo mau desempenho do parlamentar. Convencido de que o apoio de Bolsonaro mais prejudicou do que colaborou com sua campanha, Russomano decidiu tirar todas as menções ao chefe do Planalto de sua propaganda política. Os jingles criados pelo marqueteiro Elsinho Mouco, ligado a Michel Temer, eliminaram o presidente. Na próxima semana, Russomanno cogita voltar com Bolsonaro ao programa, numa jogada arriscada: a intenção seria a de trazer a militância bolsonarista para a sua trincheira na reta final da campanha, numa espécie de “ou vai ou racha”. O presidente parece ter topado essa estratégia: na quarta-feira, pediu votos para o aliado em sua live. “Celso Russomano é a minha pedida para São Paulo. Quem não escolheu ainda e puder escolher, a gente agradece”, declarou, sem demonstrar muita empolgação. Para terminar de rasgar a promessa de não-interferência na disputa municipal, o chefe do Planalto ainda deu pitaco no pleito gaúcho e declarou achar “o fim da picada” o voto em Manuela D’Ávila, do PCdoB.

Danilo Verpa/FolhapressDanilo Verpa/FolhapressDepois de perder a primeira posição nas pesquisas, o deputado federal Celso Russomano, do Republicanos, tirou Bolsonaro dos jingles do programa eleitoral
Nos últimos dias, em vez de ostentar o apoio do presidente da República, Celso Russomano optou por ataques aos adversários. Uma das provocações guarda relação justamente com o segundo malvado favorito de Bolsonaro: o governador de São Paulo, João Doria. O tucano, até agora, não marcou presença na campanha de Bruno Covas. Nas andanças pela periferia da cidade, Covas tem preferido andar a tiracolo com Marta Suplicy, que rompeu com o seu partido, o Solidariedade, para apoiar o tucano. “Cadê o Doria? Vocês viram o Doria por aí? Será que o prefeito esconde o governador com medo de ele atrapalhar?”, questionou Russomano, no programa eleitoral da última segunda-feira. “O jogo sujo vai começar”, limitou-se a responder o atual prefeito de São Paulo, segundo o qual o governador aparecerá na “hora apropriada”. A ver.

A rejeição ao presidente se reproduz em Belo Horizonte, onde o candidato de Bolsonaro, Bruno Engler, do PRTB, está parado nos 3% das intenções de voto, enquanto o atual prefeito, Alexandre Kalil, do PSD, tem 60% e caminha para se eleger no primeiro turno. No começo de outubro, Jair Bolsonaro gravou um vídeo em apoio ao deputado federal aliado. “Não vou fazer campanha para você, mas se eu fosse eleitor mineiro, votaria em você, pode ter certeza disso. Eu acho que em Minas, todos ganham”, afirmou o presidente ao lado de Engler. Na quarta-feira, 28, o chefe do Planalto revelou, em conversa com apoiadores, que “gostaria de ter uma participação nas eleições municipais, em alguns municípios”, e citou o deputado federal do PRTB mineiro. “Belo Horizonte me interessa, gosto muito do Bruno Engler, que pode fazer um bom trabalho caso chegue à prefeitura. Discretamente vou começar a apoiá-lo”, disse Bolsonaro, e acrescentou: “Tem chance”. Falta combinar com o eleitor.

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