Foto: Pedro Ladeira/FolhapressO presidente da Câmara, Rodrigo Maia, continua o mesmo: ligado ao Centrão, ele age nos bastidores para abrandar as punições a políticos encrencados com a Justiça

O coronel da impunidade

Rodrigo Maia cria na Câmara – sem muito alarde – comissões de juristas que trabalham em sigilo para tornar leis já existentes menos rigorosas com os corruptos. Vale até limitar a liberdade de imprensa. Gilmar Mendes marca presença no colegiado: sua filha é uma das relatoras
30.10.20

O Rodrigo Maia que emergiu a partir da posse de Jair Bolsonaro sob a roupagem de “moderador” e como “o cara das reformas” pode até tentar, mas nem sempre consegue camuflar o velho e conhecido Rodrigo Maia, cria do Centrão e perito em facilitar a vida de políticos enrolados com a Justiça e a dele própria. Não raro, na calada da noite. Foi assim, sem fazer alarde, que o presidente da Câmara constituiu, na última semana de novembro do ano passado, uma comissão de 15 juristas escolhidos a dedo por ele destinada a elaborar uma proposta de lei com novas regras sobre o uso de dados pessoais em inquéritos criminais. Como em Brasília o diabo costuma ter casa e comida nos detalhes, é importante situar o leitor sobre as circunstâncias em que o colegiado foi criado: naquela semana, o placar na capital federal já indicava que o plenário do Supremo Tribunal Federal iria liberar, por goleada, o compartilhamento de relatórios do Coaf com órgãos de investigação, sem a necessidade de autorização judicial.

Juridicamente, o ato do presidente da Câmara estava respaldado pela própria Lei Geral de Proteção de Dados, que foi aprovada no ano anterior e determinava a edição de uma legislação específica para tratar do uso de informações sensíveis e sigilosas em casos envolvendo defesa nacional, segurança pública e combate ao crime. Politicamente, a formatação do time de especialistas, composto majoritariamente por advogados e sob a relatoria da filha do ministro Gilmar Mendes, virou um trunfo para resgatar dentro do parlamento, na forma de lei, o espírito da liminar cassada no STF na qual o ministro Dias Toffoli paralisou por quatro meses todas as investigações do país que utilizaram dados do Coaf sem aval da Justiça, acolhendo um recurso do senador Flávio Bolsonaro, filho 01 do presidente da República.

Conforme Crusoé revelou na última quarta-feira, 28, a Comissão de Juristas que discute a chamada LGPD Penal propõe restringir o acesso de investigadores a dados pessoais classificados como sensíveis e sigilosos, entre eles justamente os relatórios do Coaf. O colegiado ainda cogita criminalizar a divulgação dessas informações por agentes públicos – o que fatalmente constrangeria criminalmente autoridades que agem a bem do interesse público – e por particulares, leia-se veículos de comunicação, no que constituiria mais um atendado à liberdade de imprensa. Vale lembrar que foi uma reportagem sobre as movimentações suspeitas de 1,2 milhão de reais identificadas pelo Coaf nas contas do ínclito Fabrício Queiroz que deu origem ao escândalo envolvendo o filho e o amigo do presidente Jair Bolsonaro, em dezembro de 2018.

Os limites para o compartilhamento de dados no âmbito criminal estão sendo discutidos sigilosamente pela comissão presidida por Nefi Cordeiro. O grupo de trabalho coordenado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça convidado por Maia já redigiu a minuta da proposta que será entregue neste mês de novembro ao presidente da Câmara — que, por sua vez, deve incorporá-la a um projeto de lei a ser votado na casa. “O grande debate será quanto nós vamos permitir à polícia e ao Ministério Público invadir nossas vidas para investigar crimes”, disse Nefi a Crusoé. “Nós vamos fazer uma proposta. A Câmara é que vai dar os limites”, completou. A julgar pelo que foi debatido até agora na comissão, os juristas vão propor que dados do Coaf, hoje enviados ao MP a qualquer momento a pedido dos procuradores, só possam ser compartilhados com autorização de um juiz, restaurando a essência da liminar de Toffoli. Caberá aos deputados, diretamente interessadas no assunto, pois a maioria na casa responde a processos na Justiça, aprovarem a ideia ou manterem a regra atual, decidida pelo plenário do Supremo.

Divulgação/STJDivulgação/STJNefi Cordeiro, ministro do STJ e integrante da comissão de Maia: “A divulgação (de dados sigilosos) entra, sim (como crime), desde que seja feita dolosamente”
Sobre a possibilidade de tornar crime a divulgação de dados sigilosos, Nefi Cordeiro indica que a discussão pode ser levada para o campo da subjetividade – e é aí que reside o perigo. “Não propriamente só por divulgar, mas por divulgar com intenção de descumprir a lei, ou seja, divulgar para prejudicar alguém que está sendo submetido a um processo criminal. A divulgação entra, sim (como crime), desde que seja feita dolosamente”, afirmou.

Até o momento, afirma o presidente da Comissão, a proposta está “mais voltada” para criminalizar atos praticados por agentes públicos, o que já seria uma forma de intimidá-los, mas não descarta a inclusão de “particulares”, como a imprensa. “Até agora (o anteprojeto) está indo assim, vamos ver se termina ainda envolvendo só agentes públicos ou não”, completou. Hoje, a lei define que a violação ao sigilo judicial ocorre quando cometida por pessoas que têm acesso legal ao conteúdo protegido e dever funcional de preservá-lo, como servidores e advogados, e não prevê punição a jornalistas que publicam a informação sigilosa.

Em julho, o grupo realizou um seminário internacional para debater as regras aplicadas em outros países da Europa, da América Latina e nos Estados Unidos. Na ocasião, o ministro Nefi Cordeiro abriu o encontro virtual agradecendo o empenho de Rodrigo Maia para o funcionamento da comissão. Embora a minuta do anteprojeto que será votada internamente no próximo dia 9 ainda esteja mantida em segredo, justamente para evitar críticas antecipadas, o caminho traçado pelos juristas reflete o perfil dos integrantes do colegiado, indicados por Rodrigo Maia com auxílio de Nefi Cordeiro. Dos 15 membros, sete ainda exercem a advocacia e apenas dois representam o Ministério Público. Seis dos integrantes são ou já foram professores do Instituto Brasiliense de Direito Público, o IDP, fundado pelo ministro Gilmar Mendes. Entre eles, está Laura Schertel Mendes, filha do ministro e relatora do anteprojeto da LGPD Penal. No seminário internacional realizado pela comissão em julho, Laura moderou o painel de debate sobre “garantias constitucionais” no uso de dados em investigações criminais, a maior preocupação da comissão. “Não dá para imaginar, embora pareça sedutora a ideia, que a polícia e o Ministério Público podem tudo. Em nenhum lugar do mundo se pensa assim. Ninguém pode entrar no seu domicílio, invadir seu celular, ver os seus informantes sem uma delimitação legal. Nós precisamos desses limites como garantias mínimas”, afirma o ministro Nefi Cordeiro. Quem atua à frente de investigações já está com o sinal de alerta aceso: acredita que as restrições vão dificultar especialmente o combate ao crime organizado, em que o acesso a dados é fundamental para suprir a carência de testemunhas na produção de provas.

Essa não é a única comissão de juristas criada por Rodrigo Maia para propor regras que, ao fim e ao cabo, podem abrandar as punições para quem é flagrado em malfeitos. No início de setembro, o presidente da Câmara instalou um grupo de trabalho destinado a debater mudanças na Lei de Lavagem de Dinheiro. Sancionada em 1998, a legislação pune o criminoso que tenta ocultar ou dissimular a origem, a natureza ou a movimentação de recursos financeiros obtidos ilegalmente, com pena que vai de três a até dez anos de prisão. Pela natureza dos recursos, o crime de lavagem de dinheiro está quase sempre atrelado a um crime anterior, como corrupção ou peculato. Assim como na comissão da proteção de dados, o colegiado também é presidido por um ministro do STJ, Reynaldo Soares da Fonseca, e tem como relator uma pessoa ligada a Gilmar Mendes, o desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que já atuou como juiz de instrução no gabinete do ministro no STF. Também há predomínio de advogados no grupo de 44 juristas — são 24, além de 13 que integram o Judiciário e sete representantes do Ministério Público. Só que, neste caso, os conflitos de interesses são explícitos. Entre os integrantes, estão defensores de réus da Operação Lava Jato, acusados por corrupção e, acredite, lavagem de dinheiro.

Foto: Adriano Machado/CrusoéFoto: Adriano Machado/CrusoéGilmar Mendes está presente na comissão de juristas por meio de sua filha. Outros integrantes do colegiado criado por Maia atuaram em seu instituto
Logo na primeira reunião, realizada por meio de videoconferência com acesso restrito aos participantes da comissão, criminalistas conhecidos por defenderem notórios políticos acusados de lavagem de dinheiro escancararam suas intenções. Gamil Foppel, defensor do ex-ministro Geddel Vieira Lima, condenado a 14 anos e 8 meses de prisão pelos 51 milhões de reais encontrados pela Polícia Federal em um apartamento em Salvador, em 2017, propôs que a lavagem de dinheiro só deve ser alvo de ação quando o crime que a antecedeu já for objeto de condenação do investigado. Ou seja, por essa lógica, Geddel e seu irmão, o ex-deputado Lúcio Vieira Lima, não poderiam ter sido condenados pela Segunda Turma do STF no ano passado por lavagem de dinheiro, já que não havia uma sentença anterior por corrupção. Já o criminalista Antonio Pitombo, que defendeu réus no mensalão e atuou na defesa do delator Sergio Machado, ex-presidente da Transpetro, defendeu uma redução da pena máxima para o crime de lavagem de dinheiro de dez para seis anos de reclusão. Mas foi do juiz Marllon Sousa, que já atuou no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a proposta mais ousada até agora. O magistrado é a favor da suspensão do processo para quem reparar o dano, ou seja, devolver o dinheiro ocultado, mesmo quando já foi formalmente investigado e acusado pelo crime. Após o pagamento da multa, a pena seria reduzida a serviços comunitários.

Caso sejam aprovadas pelo colegiado, as propostas integrarão um relatório a ser entregue a Rodrigo Maia para fundamentar um projeto capaz de alterar a lei de lavagem de dinheiro instituída há 22 anos. Mais uma vez, ao longo de sua trajetória política, Maia coloca em marcha um conhecido modus operandi: o de atuar nos bastidores, longe dos holofotes, para aprovar matérias de seu interesse e propostas capazes de atender às conveniências dos grupos que lhe prestam reverência, juram fidelidade e asseguram sustentação política. O grande problema dos debates dentro do Parlamento promovidos por Maia é que você sabe como eles começam, mas nunca como eles terminam. Em novembro de 2016, por exemplo, sob a presidência de Rodrigo Maia, a Câmara aprovou o pacote de medidas anticorrupção, defendido pelo Ministério Público Federal, com a inclusão de uma emenda votada durante a madrugada instituindo a punição a juízes e promotores por abuso de autoridade. Após muita pressão popular, os parlamentares até aceitaram criminalizar o caixa 2 de campanha, prática disseminada entre eles. Mesmo assim, o texto aprovado estabeleceu sanções a investigadores que, por exemplo, abrirem inquérito sem indícios mínimos de prática de algum delito ou provocarem dano moral ao investigado.

Em dezembro do ano passado, o roteiro se repetiu com a mutilação do pacote anticrime enviado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro ao Congresso. Ficou de fora, por exemplo, a essencial prisão após condenação em segunda instância. Agora, Maia promete votar a Proposta de Emenda Constitucional da Segunda Instância até o fim do ano, quando encerra seu mandato de presidente, mas tem protelado o retorno da comissão especial da PEC, cujos trabalhos foram suspensos no início da pandemia. Para variar, há uma pegadinha em curso. Conforme mostrou O Antagonista nesta semana, sob os olhares complacentes de Maia, foi desencadeada uma articulação para desfigurar a PEC por meio da apresentação de emendas no plenário, os chamados destaques, vulgarmente conhecidos como “jabutis”, exatamente como foi feito há quatro anos com o pacote anticorrupção. Há propostas para restringir acordos de delação premiada, limitar o poder de investigação do Ministério Público e até para criar novos recursos contra a própria execução da pena após condenação em segunda instância.

Interessado em se manter na presidência da Câmara ou no mínimo eleger seu sucessor, que há quem diga que possa ser Baleia Rossi, do MDB, Rodrigo Maia não faz apenas o jogo do Centrão e de parlamentares enrolados com a Justiça, ao criar comissões de juristas capazes de amortecer as punições. A depender do ritmo de tramitação do futuro projeto da lei de lavagem de dinheiro, é possível que o próprio presidente da Câmara seja beneficiado pela alteração na legislação. Rodrigo Maia e o pai, o vereador carioca César Maia, são investigados pelos crimes de corrupção e lavagem em um inquérito aberto no Supremo em 2017, a partir da delação premiada de executivos da Odebrecht. Ambos são acusados de terem recebido 1,6 milhão de reais em pagamentos ilícitos feitos pela empreiteira entre os anos de 2008 e 2014. Em agosto do ano passado, a PF concluiu um relatório afirmando que “há elementos concretos e relevantes no sentido da existência de materialidade e autoria dos crimes investigados”. Segundo a polícia, Maia incorreu no crime de lavagem de dinheiro por ter recebido 350 mil reais em doações eleitorais da Odebrecht declaradas como recursos provenientes do Grupo Petrópolis, dona da cervejaria Itaipava, e duas distribuidores de bebidas usadas pela gigante da construção civil para dissimular o financiamento de campanhas políticas. Procurado pela reportagem, o presidente da Câmara não respondeu até o fechamento desta edição.

Em depoimento prestado em abril de 2018, Maia negou as acusações, mas o inquérito prossegue. Durante as investigações, a PF também avançou sobre os indícios de corrupção, como entregas de dinheiro em espécie feitas por um delator ao parlamentar num apartamento no bairro da Gávea, no Rio. Mas essa ação só foi possível porque os policiais conseguiram levantar dados como a propriedade do imóvel, os números de telefone usados por Maia à época e os registros de entrada e saída dele na sede da Odebrecht. E, veja só, é justamente esse tipo de dado pessoal que a outra comissão criada pelo presidente da Câmara pretende restringir. Apesar da roupagem moderna, Rodrigo Maia se comporta como um coronel. O coronel da impunidade.

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