Marcos Oliveira/Agência Senado

O advogado fantasma

A incrível história do processo em que Kassio Marques receberá milhões a título de honorários sem ter assinado nenhuma petição
23.10.20

A escolha do desembargador federal Kassio Marques pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir a cadeira de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal embute algumas rumorosas inovações no meio jurídico. Como mostrou Crusoé, o novo integrante da corte será o primeiro a ter um plágio em seu currículo, além de um “pós-doutorado” conquistado por meio da participação em um simples ciclo de palestras. Outra marca será a ascensão à mais alta corte do país de um legítimo representante de uma linhagem de advogados – Kassio tinha um escritório em Teresina antes de se tornar magistrado – especializados em atuar fora dos autos. Esse tipo de advocacia ganhou destaque no noticiário recentemente em razão de Frederick Wassef, o espalhafatoso advogado da família Bolsonaro, com seus milhões de reais recebidos da JBS sem nunca ter assinado uma petição sequer em processos da empresa. Um processo que trata do pagamento de um precatório milionário no Piauí revela que o novo ministro era adepto desse padrão de atuação. Sem nunca ter assinado uma petição sequer – segundo ele, por “opção à época” – em uma disputa entre funcionários e o governo piauiense, Kassio Marques tornou-se “dono” de um pedaço do precatório que deve lhe render ao menos 4 milhões de reais.

O caso começou em 1987, quando servidores estaduais acionaram judicialmente o governo do Piauí em busca de um acréscimo em seus vencimentos mensais com base na lei do gatilho salarial. No ano anterior, o então ministro da Fazenda Dilson Funaro havia estabelecido um reajuste automático nos salários sempre que a inflação alcançasse os 20% ao ano. Os funcionários públicos, representados pelo advogado Jorge Azar Chaib, venceram a causa depois de mais de uma década e tornaram-se credores do estado. Os valores se transformaram em precatório e a parte destinada a Chaib, morto em 2010, foi parar no seu espólio. Segundo dados do portal do Tribunal de Contas do Piauí, o precatório a ser pago chega a 25,5 milhões de reais. O nome do novo ministro do Supremo aparece pela primeira vez em algo relacionado ao processo em uma escritura particular de cessão de crédito, de fevereiro de 2019, em que a família de Jorge Chaib repassa a ele 3,7 milhões de reais da bagatela e mais 2,5% do valor total líquido do precatório ainda a ser recebido.

Para justificar a cessão dos valores a receber para Kassio Marques, que já era desembargador quando o documento foi juntado aos autos, uma integrante da família explicou que Kassio atuou entre 2008 e 2011 como advogado na disputa. E fez uma revelação interessante. Disse que ele não assinava os expedientes no processo porque, à altura, era juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí. Sim, foi o que você leu: o novo ministro do Supremo Tribunal Federal atuava como advogado quando era juiz e preferia que seu nome não constasse dos autos.

A declaração em que Liana Chaib atesta os “serviços” de Kassio
Diz um trecho do documento ao qual Crusoé teve acesso: “Além de se responsabilizar pela elaboração de teses jurídicas e minutas de petições, também colaborou em estratégia de atuação, não tendo sido subscritor de petições apenas em razão do fato de que, à época e a despeito da inexistência de qualquer impedimento, exercia a função de magistrado eleitoral juntinho TRE/PI ocupando a vaga destinada aos juristas optando por delegar tal obrigação a advogados parentes da família do autor ou eventualmente a outros por eles indicados, destacando-se que o então causídico prestou consultoria e outros atos privativos de advogados”. A declaração é assinada por Liana Chaib, filha de Jorge Chaib, o advogado que abriu caso. O papel foi anexado ao processo para justificar o direito de Kassio Marques a uma parcela do valor do precatório.

Chama atenção o fato de Kassio ter atuado por quase quatro anos em um processo sem nunca ter assinado uma petição, embora, como diz a justificativa da herdeira de Chaib, não houvesse nenhum tipo de impedimento legal para isso – como juiz eleitoral, em vaga destinada a representante da OAB, ele poderia continuar atuando como advogado em causas não relacionadas com a corte.

A atuação do novo ministro no processo foi literalmente oculta. Não é apenas o nome dele que não aparece nos autos — não há também qualquer registro da atuação de outros integrantes do escritório que ele mantinha àquela altura na capital do Piauí. Para entender como se deu a atuação “fora dos autos”, Crusoé procurou Kassio Marques. Por meio de sua assessoria de imprensa, ele confirmou ter direito a uma parte do crédito milionário do precatório, mas observou que ainda não recebeu nenhum valor. A assessoria admitiu não haver nenhum documento no processo assinado por ele, mas não explicou qual foi exatamente o papel do novo ministro no caso nem apresentou os relatórios supostamente produzidos por ele. Também disse que Kassio não deixou o nome registrado no processo porque essa foi uma “opção à época”.

Carlos Aidar/SFCarlos Aidar/SFA sede do TJ do Piauí: Kassio atuou quando o caso passou pela corte
A atuação de Kassio se deu no período em que a ação tramitou no Tribunal de Justiça do Piauí, onde ele tinha bom trânsito. Na primeira instância, os servidores ganharam. O estado foi condenado a pagar o aumento salarial automático, além de 15% do valor da ação a título de honorários para o advogado – no caso, Jorge Chaib. O governo recorreu, mas a Primeira Câmara Especializada Cível do TJ do Piauí negou os pedidos de reconsideração. Foi justamente nessa etapa do processo que Kassio atuou nos bastidores. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, onde o estado Piauí também perdeu. Em 2004, o caso transitou em julgado. Na sequência, com a causa ganha, os servidores partiram para a execução da sentença. Pediram o pagamento e o valor se transformou em precatório. No site do TJ do Piauí, o precatório do qual Kassio Nunes Marques tem um quinhão ocupa a posição de número 1194 na fila de pagamento.

O modelo Wassef praticado por Kassio Nunes no processo deixou irado outro advogado, Daniel Meneses, que tenta na Justiça ficar com parte dos valores sob a alegação de ter atuado por 15 anos formalmente no processo ao lado de Jorge Chaib. Meneses chegou a protocolar uma petição no processo com acusações contra o novo ministro do STF ao atrelar a cessão dos valores pela família Chaib a Kassio Nunes a uma decisão de 2019 que ele tomou como desembargador do TRF-1. Trata-se de uma decisão na qual Kassio liberou um empréstimo tomado pelo governo do Piauí junto à Caixa. Segundo o advogado, os valores poderiam ser utilizados para pagar precatórios – o que poderia beneficiar o próprio Kassio. A assessoria do ministro nega qualquer relação entre a decisão e o caso do precatório. O fato é, que assim como Wassef, o novo dono da cadeira de Celso de Mello receberá alguns milhões por um processo em que seu nome nunca apareceu.

Com reportagem de André Spigariol

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