Foto: Marcos Oliveira/Agência SenadoA sabatina protocolar de Kassio Marques: muitos afagos, pouca pressão

De costas para o Brasil

Na mesma semana, o Senado aprova Kassio Marques para o STF com louvor a despeito de seu currículo e joga para debaixo do tapete o escândalo do dinheiro na cueca
23.10.20

Palco de episódios nada edificantes da nossa história, o Senado Federal não cultiva boa fama. Já foi descrito como uma confraria entre amigos e comparado a uma grande irmandade, onde quase tudo é permitido. Darcy Ribeiro, do alto de sua experiência, um dia caprichou ainda mais na analogia, que entrou para a história com algumas pequenas variações. Uma delas diz que “o Senado é igual ao céu, a diferença é que é possível usufruí-lo em vida”. Um caso não tão recente é ilustrativo dos códigos bem particulares em vigor no salão azul. Em 2001, um senador foi flagrado pela mulher em seu gabinete com uma funcionária, casada com outro servidor da casa. Para evitar um quiproquó, a funcionária foi afastada. O marido traído, acredite se quiser, acabou premiado: ganhou uma diretoria, criada só para acomodá-lo. Quando se imaginava que tudo já havia sido testemunhado, veio o senador do dinheiro entre as nádegas, em escândalo revelado por Crusoé. Como se não houvesse limites para o que parecia atingir os estertores do absurdo, veio a seguir a proteção para o protagonista do flagrante, assegurada pelos colegas. Tudo isso na mesma semana em que o país testemunhou o escrutínio complacente de Kassio Nunes Marques, o escolhido do presidente Jair Bolsonaro para a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Em poucos dias, restou escancarada uma triste realidade: a de que, ali, na chamada casa alta do parlamento, podem até mudar as pessoas, mas jamais se mudam as prioridades.

Em total desconexão com o sentimento de indignação de uma parcela importante da sociedade, os senadores iniciaram a semana articulando uma jogada ensaiada destinada a baixar a fervura da crise que se avolumava contra Chico Rodrigues. A solução encontrada foi o afastamento do senador por 121 dias. A licença acabou sendo um alívio para todo mundo no circuito político-jurídico. Para o plenário do Supremo, por não ter que julgar se confirmava ou não o afastamento do senador determinado pelo ministro Luís Roberto Barroso. Para o Senado, por não ter que votar a favor ou contra o colega, uma vez que não aprovar o afastamento deixaria a casa desguarnecida perante a sociedade e chancelar o desligamento seria interpretado como um sinal de que outras decisões semelhantes pudessem vir mais adiante para atingir outros senadores. Para o DEM, partido de Chico Rodrigues, pela oportunidade de sair pela tangente, como fez Jair Bolsonaro, depois de ter dito que mantinha com o então vice-líder do governo “quase uma união estável”.

O problema inicial era combinar com o próprio senador, relutante que estava em aceitar abrir mão do mandato, mesmo que por um tempo. Seus próprios pares, no entanto, temendo o vazamento do vídeo em poder da PF em que ele aparece com o dinheiro escondido em um lugar incomum, o que fatalmente aprofundaria o desgaste, o colocaram numa sinuca de bico: ou se licenciava ou seria cassado pelo Conselho de Ética.

Chico e o Senado, então, resolveram jogar com o tempo. Inicialmente, ele havia solicitado uma licença de 90 dias. Mas se entendeu que três meses não seriam suficientes para aplacar a crise da qual todos seriam vítimas. Por trás da articulação, ainda havia o desejo nutrido pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, do mesmo DEM, de não ter de enfrentar possíveis estilhaços do escândalo antes de sua tentativa de reeleição. Então, decidiu-se pela licença de 121 dias. Com a ampliação do período de afastamento, Chico Rodrigues só voltará a assumir o cargo após a eleição no Senado, que está marcada para o início de fevereiro do ano que vem. Assim, Alcolumbre, ao contrário do correligionário, não fica com a retaguarda descoberta. O número exato – 121 dias – ainda permitiu a convocação do suplente de Chico Rodrigues, Pedro Rodrigues, que vem a ser filho dele, repetindo a estratégia adotada por ACM no longínquo 2001, quando, acusado de ordenar a violação do painel eletrônico do Senado, deixou a vaga para o rebento ACM Júnior. Ao fim e ao cabo, a manobra assegurou ao senador do dinheiro sujo prazo suficiente para ele se esconder dos holofotes e garantir a blindagem do próprio Senado.

Agência SenadoAgência SenadoO senador do dinheiro nas nádegas: colegas atuaram para controlar a crise
Resolvido o problema que envolveu, por repugnante e escatológico, até as partes mais íntimas de um de seus integrantes, o Senado partiu para passar pano sobre outra estripulia patrocinada diretamente pelo presidente da República: a sabatina de Jorge Oliveira, o Jorginho, amigo de longa data do mandatário do país, que o indicou para o Tribunal de Contas da União para julgar suas próprias contas antes mesmo da existência de uma vaga formal – o atual titular da cadeira, ministro José Múcio, só se aposentará em 31 de dezembro deste ano.

A sabatina realizada pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado foi marcada por muita bajulação e pouquíssimas perguntas capazes de tirá-lo da zona de conforto. No decorrer da sessão, senadores compararam Jorginho a um lorde e rebateram as críticas sobre as sabatinas serem “homologatórias”. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, do MDB, o classificou como um “construtor de consensos”, enquanto o rodado Esperidião Amin, do Progressistas, disse que o único papel do Senado era dizer “não temos nada contra”.

Ao comentar uma queixa de Omar Aziz, do PSD, sobre o que chamou de “rigidez” da corte de contas, Jorginho falou o que a maioria ali queria ouvir: o tribunal não poderia “ter a face meramente repressiva, punitiva”. Para bom entendedor… O léxico da impunidade se espraiou pelo colegiado. Telmário Mota, do PROS, sapecou esta, como quem suplicasse a Jorginho mudanças na maneira de atuar do TCU: “Estamos destruindo os nossos políticos por poucas coisas”. Jorge Oliveira, aparentemente, aquiesceu. “O tribunal precisa orientar para o bem comum”, disse. O bem comum dos políticos, pelo visto. Não deu outra: Jorge Oliveira, o pupilo do presidente, foi aprovado por 23 a 3 na Comissão de Assuntos Econômicos e por 53 a 7 em plenário.

O script seria reproduzido no dia seguinte durante a sabatina de Kassio Nunes Marques, o escolhido de Bolsonaro para ocupar a vaga aberta no STF com a aposentadoria de Celso de Mello. Enquanto caças da FAB davam rasantes no céu de Brasília, Kassio plainava em voo de cruzeiro na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Durante todo o tempo, sob o beneplácito da maioria dos presentes, o desembargador federal falou muito mais para dentro do que para fora. Fez afagos no establishment que o abençoou, no Centrão que o apadrinhou, na ala do STF que o endossou e em Jair Bolsonaro que o indicou. Em suma, saiu da sabatina com a mesma estatura que entrou: a de alguém que se adequará sob medida aos interesses do status quo e que, como ministro do Supremo, vai jogar conforme a música dos inquilinos do poder de turno. Era isso o que se esperava dele e foi isso o que ele demonstrou.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéJorge Oliveira, escolhido para o TCU: outra sabatina amistosa no Senado
O primeiro a chegar à CCJ, antes mesmo de a sessão começar, foi um ansioso Ciro Nogueira, líder do Centrão e um dos padrinhos pesos-pesados da nomeação do desembargador para o STF. Na largada, Kassio entoou um discurso que soou como música aos ouvidos de Ciro e de seus fiéis escudeiros: criticou o ativismo judicial, como se sua indicação não fosse fruto de convescotes de ocasião embalados por música caipira, enalteceu os garantistas do Supremo, inclusive se disse um deles, e defendeu “correções” na Lava Jato, reforçando o que já havia dito anteriormente a respeito da operação. Para completar, ainda criticou “intervenções judiciais prévias às eleições” e afirmou não ter qualquer objeção contra a imposição de quarentena para juízes que queiram candidatar-se – a declaração tinha como alvo o ex-ministro Sergio Moro, por óbvio.

Seus pares demonstraram vontade em agradar, não em escrutinar. Como num jogo combinado, a maioria levantou para ele cortar. Em dado momento, Kassio Marques ficou tão à vontade que se dedicou a filosofar. “O Poder Judiciário cuida do ontem” e “o Congresso Nacional e o Executivo cuidam do amanhã”, afirmou, depois de questionado sobre “o vale-tudo da Lava Jato”. Como virou passeio, muitos senadores inscritos para perguntar abriram mão de suas falas. O deputado Marcel van Hattem, do Novo, sintetizou o clima reinante no colegiado: “Isso aqui é cartas marcadas, está aprovado já. A maioria vai ficar elogiando e não fazendo as perguntas que deveriam fazer. Parece mais uma pelada de várzea num Maracanã lotado”. O senador Jorge Kajuru faria coro horas depois. “A sabatina fica patética pelo festival de sabujices e não de perguntas”, disse.

Um dos poucos a fazer a arguição pública, como prevê a Constituição, o senador Alessandro Vieira, do Cidadania, perguntou sobre o trabalho da mulher de Kassio Marques, indicado ao STF, em gabinetes no Senado. O desembargador piauiense deu voltas. Alheio à realidade nacional, mas atento à realidade dos ali presentes, começou falando da dificuldade de, segundo ele, se viver em Brasília com 10 mil reais, pagando aluguel e com dois filhos em escola particular. Depois, acrescentou não saber dizer “com exatidão” como a mulher foi parar no gabinete de Elmano Férrer, senador também do Piauí, como o desembargador e sua família. E o que ela fazia no gabinete? “Não sei dizer. É alteração de gabinete toda hora. Não sei o que é que ela desempenha, não tenho essa informação para lhe dar, não sou a pessoa certa para lhe responder.”

Indagado sobre os indícios de plágio em sua dissertação de mestrado, revelados por Crusoé, o desembargador disse que não poderia ser criminalmente acusado porque o advogado Saul Tourinho Leal, autor de artigos com extensos trechos idênticos a seu trabalho, negou a acusação. “O próprio tipo da lei exige a ofensa de quem eventualmente foi plagiado”, argumentou. Depois admitiu, sem que a maioria prestasse a devida atenção, que recebeu arquivos digitais de Tourinho Leal para elaborar sua dissertação de mestrado. Como mostramos em reportagem publicada no último dia 7, a pesquisa apresentada à Universidade Autônoma de Lisboa em 2015 possui diversos trechos plagiados de artigos escritos por Tourinho Leal em 2011, inclusive com os mesmos erros de português.

Mesmo assim, nos raros momentos em que a situação ficou desconfortável para Kassio, sempre havia um governista pronto para lançar uma boia de salvação. Fernando Bezerra Coelho, o líder do governo, chegou a propor a mudança no modelo da sabatina para que as perguntas dos senadores passassem a ser feitas em bloco. O rito havia sido adotado pelo presidente da Comissão de Assuntos Econômicos, Omar Aziz, durante a sabatina de Jorge Oliveira no dia anterior. Simone Tebet, a presidente da CCJ, no entanto, se negou a mudar as regras com o jogo em andamento. Não foi o suficiente para alterar o clima totalmente favorável a Kassio. Depois de mais de dez horas, o placar tanto no colegiado quanto no plenário refletiu a atmosfera de jogo jogado a reinar desde o início da peleja: 22 a 5 e 57 a 10, em favor do futuro ministro Nunes Marques, como ele deseja ser tratado oficialmente daqui por diante. Como é possível notar, nada mudou no velho Senado de guerra. No resumo pornográfico da semana imposto pelos senadores, os que deveriam experimentar o seu rigor institucional saíram de lá, para permanecer nas palavras da velha raposa da política nacional, como se estivessem no céu.

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